domingo, 26 de setembro de 2010

Carroceiro — um poema de Raquel Naveira

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O carroceiro,
Homem-cavalo,
Puxa a carroça pela rua;
Será que dá dinheiro
Esse monturo de plásticos,
Papeis,
Cacos
E sucatas?

O carroceiro,
Cavalo-homem,
Chafurdou lixeiras,
Caçambas,
Em busca de metais,
Latas,
Restos de carros alegóricos,
Criou um mundo brasileiro
Que carrega às suas costas.

Lá vai o carroceiro,
Trotando,
Subindo ladeira,
Passando entre os carros;
Os olhos ardem,
O estômago pesa,
Engole fumaça,
Tudo nebuloso
Em meio ao chuvisqueiro.

Lá vai o carroceiro:
Bermuda,
Boné,
Camisa xadrez
Colada ao corpo;
Mal-estar
De viver assim,
Preso por ferros
A uma carroça,
Seu cativeiro.

Lá vai o carroceiro:
Dor nas pernas,
Nos joelhos,
Caminha rumo à favela,
Cortada por trilhos,
O trem passa,
As garrafas tremem,
Seu destino é de andadeiro.

Lá vai o carroceiro:
Empapado de suor
E gotas de esperança,
Logo virá a noite,
Quente,
Cheia de mosquitos
E sonhos de cachaceiro.

Lá vai o carroceiro,
Entre os entulhos
Esconde a faca,
A foice,
Porque há de se defender
Dos roubos,
Das armadilhas
Dos embusteiros.

Lá vai o carroceiro,
Disputa espaço
Entre as buzinas e as guinadas,
Ouve estranhas risadas
Que sobem dos bueiros.

Lá vai o carroceiro
Entre luzes
E gases,
O cheiro é acre
E escorre óleo no aguadeiro.

Alguém quase o atropela,
Xinga-o de maconheiro,
Ele cospe saliva verde,
Rumina a tristeza:
De quem será herdeiro?
Do homem?
Do cavalo?
Do tráfico negreiro?

Puxa carroça,
O carroceiro.
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Raquel Naveira
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2 comentários:

Paula Sant' Anna disse...

bem forte. mais do que esperava.
tanto quanto a reportagem que não sai na primeira página do jornal para não ferir os olhinhos dos leitores.
apesar do descostume, bom para esses tempos.

Stefanie Figueiredo disse...

Que retrato!