sábado, 2 de outubro de 2010

O Começo do Fim, texto de Carla Mühlhaus

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Li no jornal outro dia que o filósofo italiano Giorgio Agamben acredita que, para enxergarmos o presente, não podemos estar totalmente imersos nele. Não sei se é preciso ser filósofo para saber disso. Hilda Hilst e Duchamp também sabiam essa como ninguém. Eu não sou artista nem filósofa e nem muitas outras coisas, mas confesso que já desconfiava. Não podíamos passar sem essa piada, não seria coerente. Nossos roteiristas são muito criativos e se entediam facilmente. A vida precisa ser mais difícil.
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Devo seguir na contramão do italiano, no entanto. Decidi mergulhar no presente e tentar entendê-lo, tarefa que foi sempre muito difícil. Principalmente lendo os jornais todos os dias pela manhã, misturando cafeína com o chumbo das manchetes chicletes. Manchete chiclete é aquela que faz uma pastinha puxa-puxa com o cérebro e nos dá de aperitivo o gostinho de saber do que se trata. Mas a comida é sempre falsa, não tem nada de autêntico e ainda corrói os dentes por dentro sem que a gente perceba – quando menos se espera, comendo um trivial pãozinho pela manhã, eles caem sem a menor cerimônia. E antes de você se desdentar é um tal de kani se fazendo de lagosta, jaca virando estrogonofe de frango e tantas outras contrafações que vocês não seriam capazes de imaginar. Essa do estrogonofe de jaca é coisa de vegetariano e as intenções são até boas, mas vai dizer isso para o estômago.
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Vejamos. Li também que um historiador inglês disse que, a não ser que mudemos algumas coisas, estaremos no Começo do Fim. Não sei bem de que coisas ele estava falando, mas sem dúvida o aquecimento do planeta devia estar incluído. Ao que tudo indica nossas próximas gerações vão viver num grande e redondo microondas, portanto a preocupação me parece legítima.
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Também houve quem dissesse que vivemos uma época de indiferença em relação ao pensamento. É que a velocidade da revolução tecnocientífica é tão grande que o pensamento simplesmente não consegue acompanhar as transformações. Isso é o que sempre digo quando querem me empurrar uma novidade tecnológica. Quando finalmente consigo ler o manual e aprender as funções básicas do novo e milagroso aparelho-feito-para-facilitar-a-vida, ele já está obsoleto há tempos. Então sobra o problema do descarte, de onde jogar fora bateria. E ninguém diz como varrer os neurônios que vão caindo pela casa. Esses ficam lá, grudados no rodapé, pedindo um aspirador de última geração, daqueles que desintegram os ácaros e de brinde esterilizam sua aura. Custam 5 mil reais, podem ser pagos em dez prestações e você ainda concorre a uma expedição antropológica a uma comunidade Amish.
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Tive um professor que dizia estarmos vivendo uma época de puro empilhamento de objetos. Ele disse isso há mais ou menos uma década, então é plausível acreditar que hoje o empilhamento cutuque a estratosfera. Lembro de um romance que li na adolescência e do qual não recordo o título (esses são os que mais ficam): era a história de uma mulher que queria largar tudo, família e mobília. Num desejo irrefreável de viver apenas com o peso de uma mala de mão, ela passava os dias colocando as cadeiras da sala de jantar na calçada, com a esperança de a coleta levá-las. Nunca manifestei tanta solidariedade por um personagem. Eu era só uma adolescente cheia de espinhas mas sabia exatamente o que aquela mulher estava sentindo. Não me lembro, mas quando acabei de ler o livro devo ter arrumado o meu quarto. Devo ter jogado muita coisa fora, mas a vontade mesmo era de que tudo evaporasse no espaço. Minha mãe deve ter ficado feliz e concluído que eu estava amadurecendo. De certa forma ela tinha razão. Sobrou-nos isso de muito humano: ainda é com angústia que amadurecemos.
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Minha angústia é razoável e portanto imagino que minha idade interna esteja pra lá dos 50. Camuflada no corpinho que ainda resiste nas aulas de yoga está uma velha encarquilhada, enrugada e rabugenta. Dizem que os idosos acordam cedo, mas essa velha acorda tarde e mal. Ao meio-dia ainda está ruminando as manchetes. Um problema esse das manchetes. Foi por isso que ela decidiu largá-las e estudar outras fontes. Foi aí que ela começou a vasculhar melhor o presente. Pobre velha.
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Antes disso, antes de arranhar a garganta: quando percebeu que o poder das manchetes era algo tóxico, como os psicólogos americanos adorariam falar, pensou num experimento social. Ligou para um amigo diretor de TV e sugeriu que dois voluntários, alfabetizados mas não muito cultos, mundanizados mas nem tanto, atentos mas não alertas, topassem a seguinte experiência: que viessem para a cidade grande e ficassem sozinhos, cada um numa casa, por um mês. O voluntário 1 teria à disposição, como fonte de leitura e portal para o mundo, apenas um determinado jornal. O voluntário 2 não teria acesso a esse jornal, mas poderia usufruir de revistas culturais, artigos científicos e o melhor da literatura brasileira. A idéia inicial proibia a televisão mas como a idéia estava sendo passada a um diretor de TV, a velha achou por bem incluí-la na rotina. Duas horas de televisão liberadas por dia, desde que fossem cumpridas as duas horas de leitura obrigatórias. A escolha do que ler era livre: o 1 poderia escolher qualquer seção do jornal, enquanto o 2 poderia escolher qualquer livro, revista ou artigo. Cumprida a única obrigação do dia, ambos eram liberados para sair às ruas e conhecer a cidade. Também seria permitido conversar com quem bem quisessem. Ao final do dia, eles dariam suas impressões. E assim seria possível comparar as diferenças de visão de mundo entre o voluntário dependente das manchetes e o voluntário de repertório mais generoso.
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A idéia foi considerada esdrúxula, o amigo diretor de TV nunca mais convidou a velha para seus aniversários na cobertura e ela nunca pôde saber qual seria o resultado do experimento. Mas tinha a certeza de que seria o melhor BBB de todos os tempos.
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Carla Mühlhaus
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4 comentários:

Mayara Almeida disse...

Adorei o texto. Achei muito bem escrito, o que me prendeu até o fim da leitura. Além de conter uma ironia que o torna mais interessante.

Meus parabéns a autora!

Carla Mühlhaus disse...

Obrigada, Mayara!

Abs

Carla Mühlhaus disse...

Obrigada, Mayara!

Abs

Anônimo disse...

Seus textos são sempre impecáveis. Beijos