quarta-feira, 8 de junho de 2011

Lixo, luxo e leitores extraordinários


Notícias sobre leitores inusitados, em meios considerados inusitados, atravessam, com certa freqüência, os noticiários televisivos dos canais brasileiros. Elas trazem exemplos de pessoas que, distantes dos bancos escolares, fisgados pelo anzol das letras, recolheram livros, nas condições mais precárias em que se pode pensar, e formaram bibliotecas. Está aí o surpreendente!

Neste cenário, a última notícia diz respeito ao catador de lixo, José Carlos da Silva Bahia Lopes, conhecido como Zumbi, de 35 anos, trabalhador em um dos maiores aterros sanitários do mundo. Localizado no Jardim Gramacho, bairro periférico de Duque de Caxias, o lixão é o local onde foi filmado o documentário Lixo Extraordinário, indicado ao oscar (se o leitor quiser saber mais, pode procurar ele mesmo e ler, pois há muito disponível, inclusive na internet) paisagem também de Estamira, do ano de 2004, de Marcos Prado, outro documentário premiado.

Noticiou a imprensa: o catador de lixo está montando uma biblioteca com os livros que encontra entre materiais diversos, tais como, latas, plásticos e garrafas, rodeados de moscas e urubus, estes atraídos pelo odor fétido do material ali depositado.

Na trilha em que segue este texto, os leitores, do lado de cá do saber, já fizeram a ligação com filósofos e poetas como Benjamim e Baudelaire, catando no lixo deste personagem real, imagens daquele que coleciona “tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desprezou, tudo o que ela espezinhou”, catando pedaços de conhecimento.

Do lado de lá, no catar do lixo, Zumbi (lembremos da carga histórica desse nome!) também já catou pensamentos como os de Niestzche e Maquiavel! E já acumulou mais de dez mil títulos, entre eles, dicionários, manuais de informática, livros de noções de Direito Penal, obras de ficção como O Código da Vinci e outros. Há também os escritores brasileiros renomados, como Drummond _ O Avesso das Coisas e Contos de Aprendiz; Clarice Lispector, A Hora da Estrela; Machado de Assis, com o Dom Casmurro... e muito mais.

Bem, em meio ao luxo da leitura, ato de poucos, e ao lixo, produção de todos, o caminho que desejo tomar nos leva a formular algumas perguntas: por que um leitor se forma em meio ao lixão, não descartando o descartável em outros contextos? E por que, em grande parte das escolas e universidades, um enorme contingente de estudantes descarta o saber disponível, desestimulado de ler? O que há no saber escolarizado que funciona como uma droga inibidora da vontade para a leitura e, por conseqüência, para uma adequada construção do conhecimento?

Do lado de cá do nosso conhecimento, para responder a isso, seria necessário recorrer a teorias, pesquisas, a todo um aparato acadêmico, com citações, referências; discussões em simpósios, congressos nacionais e internacionais, seminários, encontros, mesas-redondas, debates, palestras...

Do lado de lá do conhecimento do leitor formado no lixão, ele responde, na singeleza da pergunta: “se você não lê, de onde vem o seu saber?”

E como Rita Lee, que “não quer luxo, nem lixo, quer só saúde pra gozar no final”, estamos nós, os professores, e queremos só saúde para o final... do ano letivo. Mas como, se, em meio às fórmulas mágicas e quadradas dos planejamentos educacionais, o que temos é nosso fracasso, diante dos leitores catadores que escrevem os anais da desordem?

Valéria Pereira


Valéria Pereira é doutora em estudos literários pela PUC-RIO.


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