Para
que algo em nós possa nascer a cada dia, uma parte nossa precisa também, a cada
dia, morrer. Não haveria espaço se fosse de outro modo. Nós somos um campo de batalha. Tudo em nós
luta para nascer, para perpetuar-se, para morrer. Os nossos átomos lutam entre
si, sem cessar, chocam-se e as faíscas são sentidas por nós, às vezes mais, às
vezes menos.
Um
dia eu me vi, atônita, perguntando o que é isso que permite aos corpos se
manterem eles mesmos, eu achava que o natural seria tudo se desintegrar, nenhuma
partícula deveria manter-se unida a outra. Os físicos, claro, apresentam suas
teorias para explicar o que é isso, mas nenhuma delas tira o espanto deste
momento: olhar um mísero copo e ele ser ele, formar um corpo. Ele está unido ao
todo, mas mantém uma individualidade em
relação aos outros corpos, não se desintegra.
Algo
muito assombroso acontece no interior da matéria deste copo. E no interior de
um ser vivo que se degrada e se cria a si mesmo constantemente, o mistério é
ainda maior. Meu coração pode disparar a qualquer momento e também pode parar;
cada célula minha tem um tempo de duração, precisa morrer para dar chance a
outra que quer nascer; com uma forte emoção, provocada, por exemplo, por uma
música, os meus pêlos eriçam-se, tal como acontece com os de um gato. Quer
dizer, não sei como se emociona um gato, talvez ficando irado. Ele jamais
esconde seu medo.
A
nossa luta atômica é bem mais violenta que a deste copo que agora vejo belo.
Tanto é que as montanhas morrem se degradando por fora, erodindo; e nós, por
dentro. Não é um tiro no peito que nos mata, é o nosso peito.
Sim,
têm horas que a tensão é tanta que o nosso peito explode, não se aguenta e
degrada a si mesmo. A emoção, um pensamento, é um paroxismo, a duração
estendida de um instante terminal. É o aborto da morte que vive eternamente em
cada menor partícula de cada um de nós. O arrebatamento é a consciência da
morte, uns a assumem mais, outros, menos. As partículas não mentem.
Mas
o pensamento, uma emoção, convoca toda a sua ação, mesmo sabendo que vai então
sucumbir. Reúne toda a força da sua morte para agir. Quanto maior a morte em
mim, maior a vida que vibra dentro e fora de mim. E pelos quatro cantos do
vento batem forte as asas da nossa morte.
Bianca Vilhena
Bianca Vilhena é nossa colaboradora e mestranda do curso de Filosofia da PUC-Rio.
2 comentários:
Bianca,
gostei muito da forma como você relacionou a materialidade macroscópica dos seres e das coisas em conflito com as tensões microscópicas de seus átomos constituíntes. Uma imagem muito forte e inspiradora.
Com apreço,
Pedro Garcia.
Obrigada pelas palavras, Pedro. Fico feliz em compartilhar.
Bianca
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