terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A Casa Queima — 1º lugar de prosa



Uma bolha no dedo indicador provoca um incômodo pontual, mas independente disso sou obrigada a trabalhar sem descanso. Suada e firme, executo a tarefa, sistematicamente. O cabo preto da faca afiada, eu abraço forte com palma e dedos, como um polvo de cinco tentáculos. Eu sou a mão de Maria Clara e neste instante corto as cenouras, as cebolas e os pepinos para os almoços da semana inteira. Minhas unhas estão roídas e tenho cheiro de louça engordurada e detergente. Sou decidida. Tenho talento e desenvoltura para este trabalho, que executo desde menina. Diferente é meu desempenho com as tesouras feitas para a maioria. Sou a mão esquerda de uma mulher canhota e nunca me adaptei à estranha direção deste objeto.
Nas linhas que me desenham constam informações preciosas sobre os futuros de Maria Clara: uma ruptura brusca na juventude, uma dificuldade aos quarenta e cinco anos, duas grandes viagens, que Maria Clara nunca fez, e dois filhos, dos quais Maria Clara só teve um. O mapa do destino, eu exibo quando me abro, mas cabe à sua dona encontrá-lo ou dele se perder. Não julgo os desencontrados. Nem toda deriva é morte certa. E de que vale uma viagem toda feita de certezas?
Hoje é o aniversário de Maria Clara e, portanto, meu aniversário. Daqui a pouco o Jão chega com um vasinho de flores, ela pensa, violetas, minhas preferidas. Ele vai lhe dar um beijo na testa e me apertando vai dizer “ô minha véia, que esse dia seja muito especial, que você tenha muito amor e saúde e que continue sendo a melhor mãe do mundo”. O bolo está cheirando. Mais cinco minutos e já posso desligar o forno. As mãos também sentem cheiros, ao contrário do que se pensa. Enxergam, saboreiam gostos amargos, salgados, doces e têm ideias.
Maria Clara e Jão vão conversar com as palavras da voz e eu vou tentar entrar na discussão. Nos momentos mais animados, nas frases mais acaloradas, vou dançar de um lado para o outro a linguagem dos gestos, que insiste na tentativa de dizer aquilo que não se consegue somente com as palavras. Aí, eu e o Jão vamos escutar o barulho da fechadura girando, mas Maria Clara vai se fingir de desentendida. Não vai demonstrar nenhuma expectativa, embora eu esteja suando. “Ih, o pai chegou mais cedo do serviço!”, o Jão vai falar. Maria Clara estará linda. E eu também, hidratada com óleo de lavanda, não mais cheirando a detergente e louça. Sim, já já vamos tomar banho e já sabemos qual vestido Maria Clara vai usar. Escolhemos um discreto para não alardear nossas esperanças. Queremos que tudo pareça natural e que atribuam nossa beleza a circunstâncias inexplicáveis; queremos que pensem simplesmente que uma aura de aniversariante torna mais alegre o rosto de Maria Clara, como uma maquiagem que não haveria de ter passado e que, no entanto, eu mesma passei.
O Theo vai colocar a pochete em cima da mesa e transpirando pelo bigode, vai lhe beijar os lábios, como nos sonhos. Todos vão comer o bolo que eu preparei. Repetirão as fatias, uma, duas, três vezes. Ficarei pra lá de orgulhosa dos meus talentos. A família vai beber a garrafa de vinho que o Theo trará da rua e como não estão acostumados ao álcool ficarão alegremente tontos. Eu estarei dormente e relaxada, provavelmente jogada num canto. O Jão vai dormir no sofá. Maria Clara, Theo e eu, iremos pro quarto e com dentes e unhas roxos de uva, seremos felizes. 
Estou quente do esforço repetitivo do corte das cenouras e sinto a ameaça da tendinite. Maria Clara me pede para parar. Eu obedeço aliviada. Ela se senta em frente à televisão como se aquele fosse um dia comum. Quer descansar a mente sei lá de que pensamentos que lhe acontecem. Como se não esperasse Jão, Theo e as surpresas dos festejos. Escuta, sem dar muita atenção, ao blábláblá de um apresentador de programa de auditório, que entre as mais insossas atrações anuncia medicamentos antianêmicos, presuntos, secadores de cabelo, poupanças, carros populares e bilhetes de loteria instantânea. Um domingão daqueles. Adormeço em sua coxa com o cafuné da outra mão, a direita, que me alisa doce e lentamente. Sonho com corpos macios sobre os quais deslizaria com gosto, barbas fartas, membros pulsantes. Sonho com muitos corpos, menos com o de Theo. Maria Clara me convida para um passeio entres os pelos do seu sexo e eu caminho até o seu clitóris, ora com passos firmes e decididos, ora leve, dedo-ante-dedo. Estou úmida. Minha pele tem um cheiro forte, que Maria Clara não lava.
Maria Clara também sonha sem querer, com amores corriqueiros, horizontes, liberdades e intensidades inclassificáveis; apesar da imaginação não caber no seu cotidiano repetitivo. Maria Clara não pode ter tempo. Vez em quando os suspiros lhe escapam, mas imediatamente são censurados pelas listas de supermercado, pelas camisas à passar do marido, pelo orçamento mais do que apertado da casa. Não sorri nunca, mesmo quando sorri.
O telefone toca. Maria Clara corre para atender como uma fera que avança sobre a presa.  Quem liga nesta data só pode ter a intenção de dar votos de felicidade.
— Alô!
— Alô. Dona Maria Clara Faria?
— É ela.
— Gostaríamos de oferecer um novo cartão de crédito. A senhora tem interesse?
Maria Clara coloca o telefone no gancho sem responder. Cartão de crédito? No domingo? Mal desliga, o aparelho toca novamente. A voz baixinha do outro lado lhe é familiar, mas eu não escuto. Ouço apenas Maria Clara, que diz:
— Oi, Jão tudo bem? Já está chegando? Está tarde, né? Aconteceu alguma coisa? Ah, na casa do Geléia? Você vai dormir aí? Ah, oi! Desculpa... Não, está tudo bem. Não tem problema, imagina, problema nenhum, imagina. Seu pai? Ah! Está aqui assistindo tv. Sim, vou deixar na geladeira,  arroz e  frango. Imagina! Vocês vão ficar em casa mesmo? Problema nenhum. É que sabe filho, hoje é domingo e...
Maria Clara torna a desligar o telefone. Catatônica, fala para ninguém.
— Não esquece de escovar os dentes antes de dormir.
O relógio marca meia-noite. Pelo visto o Theo não vem mais dormir em casa, pela terceira vez nessa semana. Maria Clara pensa em chorar. Há cinco anos ela não chora. Vive entupida de renites e sinusites. Pensa em chorar. Desiste. A falta de Theo e Jão é dor já acostumada. Há quanto tempo será que os espera? Algumas horas? Um dia? Dez anos? Pouco importa. A sua falta é outra. E se é a falta deles (quando é ) é porque não eles vêm nunca e ela sabe. Mesmo quando estão lá.
Ela sente que alguma novidade só atravessará sua vida quando lhe findarem as expectativas. E quanto a isso não há como se enganar. Ou é ou não é. Não adianta fingir a ausência de uma espera, a ausência de uma ausência, simplesmente. A falta de expectativa não está na forma, está na condição. É preciso mudar a condição. É preciso alterar o estado sem nome.
Sem mais nem porque, agarro um frasco com álcool, que desejo derramar sobre os móveis da casa, incendiando a memória e os apegos de Jão e de Theo. Penso em fugir (crime) ou quem sabe ficar (vítima); as labaredas engolindo o vestido e a pele, as cinzas como legado. Eu puniria eles e me puniria também. Mas neste segundo que segue, abandono o frasco, por cautela ou descuido, por culpa ou simplesmente porque não vale a pena. Porque talvez ainda nos dê tempo de vislumbrar outras possibilidades tão óbvias e ao mesmo tempo ocultas de nossa visão embotada; possibilidades reveladas somente no impossível. Quiséramos nós ter uma ideia no ritmo certo da pulsação dos acontecimentos. Ou ainda: quiséramos nós ouvir o incerto e fazer daquilo que escapa à métrica, música experimental.
Conduzo Maria Clara até a escrivaninha. Toco uma caneta vermelha mordiscada na extremidade, mesma cor do esmalte descascado. Escrevo um bilhete breve, deixo sobre a mesa, abro e fecho a porta, vou até a garagem e ligo o carro. Primeiro, o quarteirão da casa; depois, a principal rua do bairro; em seguida, a avenida do Centro e uma estrada sem destino certo. Eu, mão de Maria Clara, giro o volante, no balanço das curvas e buracos, subidas e descidas. Eu, pé de Maria Clara, piso no acelerador. Eu, perna e joelhos e pelos e barriga e olhos e boca, nariz, faringe, saliva, estômago, pulmão, apêndice, cicatrizes, manchas, xixi, resfriado, arrepios; eu, corpos que por aqui passaram, em um abraço desejoso de fusão ou em um esbarrão na fila do banco; eu, corpo-memória dos que vieram antes de mim; eu, corpo-trajeto, em conversa com a cidade, concordando e fugindo das melhores maneiras de sentar, de andar, de concordar, de discordar, de sentir, de fugir, de ser mulher, de ser mãe; cansada de ser isso aí que vocês queriam que eu fosse e que eu quase acreditei; vou embora. No banco de trás, uma muda de roupa e nossas economias, que ficaram lá no cofre, paradas, esperando por uma emergência. Pois bem, esta é uma emergência. Vento no rosto, música alta, futuros possíveis, outros encontros. Na escrivaninha da casa, eu, corpo-bilhete, fico. Preenchido por três palavras manuscritas em vermelho: “me/ sinto/ livre”. Ainda que provisoriamente.

Clarisse Zarvos