segunda-feira, 21 de março de 2016

Contagem


1

Todo fim de mês
minha vó cabelos
brancos e vestido
florido doava
religiosamente
uma pequena quantia
da sua pensão
para a Igreja.

2

De tão religiosa
e evangélica
e fervorosa
que era cantava
uns hinos
mas não aquele hino
o hino conhecido
o hino obrigado
esse já nem lembrava
talvez um Ipiranga
ou nas margens plácidas
mas o que é plácidas?

3

Minha vó caminhava
pelos corredores
em passos lentos
dobrando o tempo
das coisas
e o dia
pela metade.

4

E ai de quem
lhe entregasse
a faca pelo cabo
ou dissesse “diabo”
ou chinelo emborcado
ou dissesse
“eu te odeio eu te odeio”

— porque isso atrai coisa ruim.

5

Minha vó sentada na sala
tomava sopa de batatas
enquanto conversava com Zé Pinto.

— mas Zé Pinto não morreu, vó?

— mas eu vejo
            eu vejo,
                dizia.


6

Quando partira
minha vó deixara
o vestido florido
que agora não é mais
tão florido
e alguns fios de cabelo
entre as almofadas
do sofá.

7

E há quem diga
que ainda canta o hino
mas não o mesmo hino
o hino evangélico
o hino religioso
mas um outro hino
talvez mais falado
talvez mais cantado
um hino que aprendera

da própria boca de Zé Pinto.

Felipe Andrade

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