Era noite de um domingo, e não por algum tipo de intenção
estilística acrescento que estava a ler o Inferno de Dante quando subitamente
bateram à porta de meu quarto. Uma ambulância à porta de minha casa às 21 horas
de um domingo? Não desci. Aguardei no andar em que estava, e permaneci tentando
– sem sucesso – ouvir o que uns homens a meu pai diziam. Era o tio Hédio que
havia passado mal, e se encontrava hospitalizado.
A família não se abalou... era um bêbedo, valdevinos que
vagava por aí a prestar pequenos serviços, reparos de casa; não constituíra
família nem estudara. Vinham bater à nossa porta a fim de trazer-nos enfado.
Quem acompanharia tal criatura em um hospital? Acompanharia? Sim. Malgrado
fosse um ébrio, e ainda que a nossa ambição emergente nos levasse a ignorar
familiares menores e distantes, havia uma ambulância em nossa casa! O que
faríamos?
Pois bem, por Deus! Que espécie de ambulância vai a uma casa
avisar que alguém está hospitalizado?
Decerto teria morrido. E quem arcaria com
o custo de enterrar o de cujus?
Não importa. Alguém deveria fazê-lo. E é nesse instante que
os homens da casa se unem numa macabra empresa que se forma a cada morte de um
familiar, e se dissolve assim que a última espátula de massa põe fim ao
processo que demarca em uma parede recheada por mortos o mundo deles e o dos
que ainda sob o sol respiram. Para tal empresa foram três os designados: eu,
papai e meu cunhado.
Chegando ao local azado e prestadas as devidas apresentações
fomos conduzidos por uma senhora gentil à sala onde descobri o que faz uma
assistente social. Aquela devia pertencer a uma classe especial de assistentes
sociais; tinha olhos fundos e baços, sombreados por olheiras que a distavam de
nós, e que quase nos faziam crer ser ela o ente que controla o fluxo de almas
naquele recinto.
Tal efeito se desvanecera à medida que o diálogo avançava e
as explicações eram dadas. Sim, havia morrido, morrera enfartado às 17:15 horas
precisamente (com o concurso da cirrose), e seu corpinho – nunca esquecerei
esse eufemismo – estava nas dependências locais aguardando sua eterna morada.
Havia certa pressa, pois não havia câmara frigorífica no
local, mas, ao mesmo tempo, pouco se poderia fazer, uma vez que o cartório
estava fechado, mas no submundo que orbita a morte sempre se pode preparar algo
– e foi então que decidimos conhecer a via do enterro grátis. Malditos! Somos
malditos sovinas, sim. Fingimo-nos de pobres, obtivemos o carimbo de pobres em
um papel encardido da secretaria de saúde e rumamos para a velha funerária onde
um dia os cliente passivo seremos nós.
Deixamos o cunhado em casa; e eu e meu pai, que não nos
falávamos havia algumas semanas, tivemos de dialogar. Era noite profunda, e me
recordo de ter repreendido meu pai por cogitar passar por uma suposta cirurgia
milagrosa e ainda experimental que o poderia curar do diabetes. Ora qual! Falar
em cirurgia num momento de morte! Ao menos estávamos conversando. Era um
avanço.
A funerária ficava no segundo piso, sobre as capelas onde
algumas vezes eu velara alguns parentes, e subir as escadas me transportou a
dez anos antes, à ocasião da morte de minha avó, quando meu primo me desafiara
a entrar na sala de exposição das urnas. Ainda me recordo dele acenando ao
fundo da sala, terrível, me chamando; o cheiro macabro, definitivo, inefável e
inconfundível da madeira feral. Medo.
Quando a gente cresce o tamanho do mundo muda. A mesma sala
das urnas agora era uma pequena sala onde os caixões se espremiam. De fora se
os via por uma porta de vidro; e a primeira urna era a do meu tio-avô. Sobre
cada tampa havia um papel com o preço em letras garrafais, terríveis, como se
gritassem seus preços, causando pavor.
Sobre a urna de meu tio não havia preço: era urna doação: a
dos desvalidos, dos pobres, e a que os servidores da prefeitura odeiam fornecer
não sei porquê. Talvez nesses casos não recebessem propina per capta.
Fomos atendidos por um homem sonolento que trabalhava num
recinto e que ao fundo se podia ver os trapos do que um dia fora um colchonete,
e que fazia as vezes de cama. Tomamos ciência de algumas cobranças inesperadas;
violava-se a premissa principal: gastar nada com aquele vagabundo – pois que já
gastávamos com a gasolina, e era muito!
Por acaso ou destino, não importa, meu pai encontrara tio
Hédio na rua havia cerca de um mês. Como o mesmo vivia de pensão em pensão,
forneceu um novo endereço, na rua São João, centro de Niterói. Meu pai, sempre
esquecido, anotou tal em um papel assim que chegou em casa, guardando tal
lembrete numa gaveta qualquer.
Foi um golpe de sorte. Precisávamos de um documento do morto
e, quiçá, oxalá Deus permitisse, algum dinheiro para algum eventual gasto ou
para nosso entretenimento mesmo. Miseráveis!
Estacionamos em frente à pensão. Era quase madrugada quando
adentrávamos aquela vila ladeada por um velho sobrado português. Desatamos a
corrente que fingia trancar o portão e avançamos lentamente por sobre aquele
chão antigo de pedras coloniais. Perguntamos a um senhor pelo quarto do Sr.
Hédio. Tínhamos um combinado: jamais dizer que morrera. Se indagados, deveríamos
dizer apenas ser parentes e que buscávamos roupas, que o mesmo estava
internado, e só. Ora, se revelássemos a morte poderiam cobrar de nós qualquer
débito com a pensão!
Sim, senti pena ao ver o lugar onde meu tio passara seus
últimos dias. Era um quarto sufocante, com uma cama que se apoiava sobre caixas
de cerveja, e o chão estava molhado, rescendia urina. O odor era nauseante.
Atrás da porta havia um par de calças e, em seus bolsos – nova sorte -,
duzentos reais. Foi como se tivéssemos ganho a noite. Logo achamos seus
documentos, encostamos a porta e saímos como que fugindo. Não achávamos que
pilhávamos um morto. Apenas fazíamos justiça e obtínhamos a paga pelo
aborrecimento do enterro. Canalhas!
Já em casa, combinávamos o que deveria ser feito no dia
seguinte. Papai considerou o dia da morte de seu tio: péssimo dia para se
morrer! Um domingo! Como se se pudesse escolher o dia em que se morre. O
enterro deveria ser providenciado impreterivelmente no dia seguinte, pois que,
importa lembrar, não havia geladeira ou câmara frigorífica no local. Teria de
ser numa segunda-feira – dia em que todos (menos eu) trabalhavam. Era o meu
momento de ser o “homem da casa” e vestir, transportar e levar à sepultura um
parente com quem muito pouco convivi – e sobre o qual muito (mal) ouvi.
Dormi mal, é claro. Todas noites que antecedem um funeral
são noites ruins. Tenta-se imaginar a aparência do morto, seu semblante; ou
até, de modo quase doentio, como Edgar Allan Poe, adivinhar se o rosto penderá
mais para a direita ou para a esquerda; se o rosto estará encovado, como de
costume, e se os olhos estarão abertos ou cerrados.
Recebi cem reais para pagar alguém que transportaria o
corpo, e mais cinquenta reais de “brinde” pela tarefa. O Sr. Paulo me cobrou
cinquenta reais, e assim lucrei cem reais com a morte de meu tio. Maldito!
Dirigimo-nos ao local onde estava o corpo. Fomos recebidos
com a alegria de quem precisa abrir espaço para novos ocupantes. Lembro-me de
naquele dia expandir meu léxico, aprendendo que frigorífico e câmara mortuária
(ou frigorífica) eram o mesmo que morgue. Est’última indicava onde meu tio
estava, podendo posteriormente entender a origem da palavra morgue e talvez até
seu uso naquele local, sendo, quiçá, uma forma de fazer com que pessoas passassem
pelo local sem saber o que havia ali dentro.
Lembro de ali tomar ciência de que morgue era uma sala de
entulhos; onde cadeiras e televisores velhos e armários e macas enferrujadas
aguardavam descarte com eventuais corpinhos embalados para a viagem.
Ao adentrar o recinto, nada estranhei. Somente ao olhar para
a esquerda foi que me dei conta de um corpo amortalhado, mas não tive tempo
para pensar muito. Homens – exatamente o que eu tentava ser ali – já colocavam
suas luvas e começavam a desfazer o pacote em que meu tio estava. Veio a roupa,
veio a urna. Junto com a urna veio uma barata, e após mais esse susto veio a
percepção de que aquela urna era de madeira e papelão. Que miséria! Que
tristeza! Também eu terminaria meus dias assim? Mas, se assim fosse, que
diferença faria à minhalma jazer ali?
Não havia tempo para reflexões ou tristeza. Levamos tio
Hédio ao cemitério. Os coveiros almoçavam. Teríamos de esperar. Optamos por
voltar e almoçar em casa. Tio Hédio ficou lá, na entrada do cemitério, sob o
sol inclemente. Quem roubaria um defunto velho?
Voltamos e o enterramos no alto da colina em que os pobres
sem identidade jazem. Terra fofa e granulada, vegetação imperial e vasta. Solo
adubado por corpos sofridos como o de meu tio. Nunca esquecerei que após algumas
pás de terra a tampa de papelão do feretrum se rompeu, expondo parte da fronte
de meu tio. Miséria das misérias!
Bem aventurados os mortos, pois que alcançam a graça de do
convívio com os vivos se apartar!
Rodrigo Elmas
Nenhum comentário:
Postar um comentário