Rosario
Vai e fica. A parte dela que andou pela Paraguay, pela San
Luis e pela Mitre, que comeu papas españolas encharcadas de manteiga – isso
desaparecerá aqui. Quanto às ilhas, permanecerá nelas, o rio cor de doce de
leite, e ainda assim bonito, islas flotantes. Não são grandes coisas, mas
coisas interessantíssimas.
No barco, sente o tapete de água sob o corpo – nunca sem
sapatos, pois sua pele é a superfície que aos mosquitos encanta chupar. Quer
salvar ao menos os pés do alcance desses vampiros pequeninos e bárbaros.
Capazes de picar, diversas vezes, sua panturrilha esquerda por cima da calça de
linho, deixam finos rastros de sangue entre o tecido e a pele.
Indiferente a tudo isso, o barco bate contra a água,
teimando, dizendo que sim, que segue em frente apesar de. Ao passar por algumas
das ilhas, diminui a velocidade para que os outros passageiros possam
mergulhar. Ela não. Seu corpo não quer imersões, vai ver que é medo de afundar
e não ter o que levar de si para o Brasil. Só deixou que a tocassem o vento, o
sol, a superfície da água e a barqueira, que a ajudou a entrar e sair da lancha
para turistas. Os mosquitos não contam porque o que fizeram não foi tocar, mas
furar e beber. Porém, graças a eles a mulher fica um pouco mais na Argentina,
seu sangue na barriga de insetos rosarinos, bichos que moram e dormem e
procriam em ilhas flutuantes. O tapete de água, eles não o temem. Ela também
não. Sentiu-o sob os tênis que usava, que sentiram a madeira do barquinho, que
sentiu a água amuralhada e mole na horizontal, que sentiu, sob a superfície, as
correntes e os peixes, que sentiram a profundidade e o fundo arenoso, que
sentiram, junto com os peixes que só nadam no fundo, algo ainda mais fundo. Não
se sabe o que é, mas isso, o fundo do fundo, respondeu aos peixes, à areia e à
profundidade, que responderam aos outros peixes, que responderam às correntes,
que responderam à superfície, que respondeu ao casco da lancha, ou do
barquinho, chame-o como quiser, o barquinho tão pequeno e frágil de tanto
transportar turistas, ele respondeu às solas de borracha, que fizeram de escuta
um par de pés.
44, rue de l’Amiral Hamelin
O maior clichê sobre Proust é seu leito de morte, sua foto
de morto no leito de morte, naquele quarto em que ele deveria sufocar e, ao que
parece, escrever durante a noite. Mas e se ela: uma mulher encharcada com água
gelada do Sena e que de cabelos molhados quase se pareça com um rapaz; e se ela
entrar no quarto, sem explicação alguma, e depois estender uma mão a Proust, e
ele aceitar essa oferta, e a janela do quarto se abrir e começar a aumentar de
tamanho, e o dia estiver agradável, e houver um jardim lá fora, e a janela se
abrir mais e mais e mais, a ponto de se tornar um buraco na parede do quarto
que dá para o jardim do edifício de Proust, e ele e a mulher encharcada que se
parece com um rapaz caminharem por esse jardim, e apanharem sol, e toparem com
aquelas bandeiras tibetanas coloridas que, quando tocadas pelo vento úmido,
espalham seus mantras e seus fluidos, e Proust respirar fundo, com pulmões infiltrados,
tentando ler o que está escrito nas bandeiras, e ver ali borrado com água do
rio o seu próprio texto?
Caetité
Ela nunca foi a Caetité, não sabe quais horizontes se
consegue avistar por lá. Ainda assim é preciso, o sertão. Ir até. Não por sua
lonjura – mesmo da própria Bahia Caetité se afasta –, quando sim por sua aridez
inexata. É dessa maneira que a terra quase vira areia, navalha invisível de
vento seco. Quem sabe ali a sensação – aguda e, como sempre, ainda sem nome,
quase sem forma – estanque; no melhor dos casos, se transmute, abrindo sobre si
mesma um sulco, uma fenda quente.
É possível, no entanto, que haja de fato pouco a ver em
Caetité – o que, no fim das contas, nem importa. Muito mais interessante e
capital é saber o que fazer quando uma vez lá: em que partes farejar os rastros
de uma bisavó índia cujo rosto nunca encarou e cujo nome desconhece, em qual
chão verter as águas de rio armazenadas em garrafas PET de quinhentos
mililitros.
Ela mesma as colheu, essas águas, sem a intenção prévia de
derramá-las sobre alguma terra brasileira. São duas: a mais antiga e quase
acidental vem da superfície de um rio argentino cor de doce de leite chamado
Paraná; a outra, verde-cinza-negra-clara, vem do fundo gelado e mítico a que
chamam La Seine. Sumirão rapidamente, uma vez fora de suas respectivas
garrafas. Vão se misturar ao chão, vão penetrá-lo com tal gentileza, fazer nele
caminhos, para depois pouca coisa ou quase nada delas restar no visível.
Imperceptíveis, mas ainda assim lá. É isso um destino. Quantos.
A importância desse gesto em Caetité, onde ninguém a conhece
– exceto, justamente e com esforço, a terra. Imperiosa, semiárida, cheia de
ossos que já não existem, hoje transformados em pó e revirados intensamente por
formigas, ventanias, chuvas e leitos baixos, amassados com parcimônia por gado
de corte ou, no pior dos casos, pelas retroescavadeiras das Indústrias
Nucleares do Brasil. Então aí, mesmo aí, algo da bisavó jê, um pouco dela para
molhar com água de rio estrangeiro e cheirar depois.
Não sozinha, para que sozinha, Caetité tem mais de cinquenta
e três mil habitantes, diz o senso do IBGE. Então serão mais de cinquenta e
três mil somados a uma, essa-ela, e vai ver aparecem as que desejem águas
estrangeiras derramar também, águas de viagem e de sonho, fluxo que não é
outro, mas coisa de fora que logo se junta e se espalha e repousa.
Natalie Lima
Nenhum comentário:
Postar um comentário