domingo, 6 de novembro de 2016

Nósocorro, de Mateus Baldi — Segundo Lugar de Prosa do VIII PPBPP


O Nazista não era nazista coisa nenhuma, mas era assim que a gente chamava – porque era loiro; porque era alto; porque era forte e numa tarde de sol disse que ia descer a porrada no Arnaldo, que era judeu. Semana passada nos reencontramos num jantar e ele estava bem diferente – acima do peso e com um maço de cigarros no bolso. O Nazista e eu saímos para fumar quase que ao mesmo tempo e, justamente por não saber que o Nazista era o Nazista, pedi um isqueiro e ele deu e sorriu e disse que me conhecia de algum lugar, que tinha certeza de já ter visto meus olhos em algum lugar, aí foi a minha vez de rir e dizer Você diz isso pra todas?, e ele desviou o olhar para os carros rasgando a rua lá embaixo, Eu não digo isso pra ninguém, respondeu, a vida é muito curta pra gente ficar bancando o disco arranhado – e foi então que eu ri. Ele não entendeu, com razão, e eu pedi

- Desculpa.

e continuei, falei que era engraçado porque em dois mil e dezesseis ninguém mais fala disco arranhado, que certa vez minha filha soltou um escangalhar e eu me acabei de rir no sofá.  Ele sorriu. Disse que eu era uma mulher *****. Assenti. Eu definitivamente era uma mulher *****.  “Me conta de você”, pedi. “Eu não tenho nada de interessante, só tô aqui pra não perder o emprego.” “Ah, é?” “É.” “Eu também.” “Você trabalha pra ()?” “Não, trabalho na ##, mas minha filha quer se formar em |||||| e o único jeito disso acontecer é eu ganhar um aumento...” “...que você pretende conseguir vindo nesse jantar e bajulando seu chefe.” “Como você sabe?” “É o que todos nós, animais de escritório, fazemos”, ele respondeu dando de ombros.

Acabamos trocando telefones e marcando um jantar para a sexta-feira seguinte. Sushi. Em dois mil e dezesseis as pessoas amam sushi no primeiro encontro. Pedimos uma canoa gigante e quase morremos de rir quando engasguei com o wasabi. Depois de a $$$$ chegar, como a chuva ainda não havia parado de cair, o Nazista sugeriu que fôssemos para a casa dele: (hoje não) (por quê?) (porque é o primeiro encontro, não sou uma mulher >>) (tudo bem, quer que eu te deixe em casa?) (eu disse que não queria dar pra você, não que não queria um bom fim de noite): nos beijamos e ficamos dez minutos pensando no que fazer e eu disse: (uma vez quase fui pro Horto de noite, só que o fusquinha do meu namorado quebrou na ladeira e tivemos que voltar de reboque): o Nazista riu e disse: (ok, entendi, vamos pro Horto) (não, tá doido?, tá chovendo, foi só um comentário besta) (não, sério, agora eu quero ir pro Horto). Fomos.

Havia uma árvore no meio do asfalto. O Nazista desviou lento, quase parando, e pude ver dois gatinhos se abrigando sob os galhos retorcidos. Confesso que fiquei com pena. Ele estacionou atrás de um Ford velho e perguntou se eu estava bem – fiquei com dó dos gatos – respondi, mas ele não entendeu muito bem – os gatinhos sob a árvore – continuei –, você não viu? – Não vi gato nenhum, mas se você quiser a gente volta – Não precisa. – Tem certeza? – Absoluta, ele disse dando um tapinha no volante. Nos beijamos por um tempo e então perguntei

- Sua mulher morreu de quê?

e ele teve um sobressalto.

- Desculpa.

- Não, que isso, não tem problema falar dessas coisas. É só que... você é uma mulher muito ~~~~.

- Já me disseram isso. É um defeito grave. Prometo consertar.
  

Rimos. O Nazista disse que a esposa tinha morrido de câncer e perguntou se eu era sempre assim, severa comigo mesma: Só quando acho que estou fazendo algo de errado. E quando você acha que está fazendo algo de errado? Sempre, respondi enquanto baixava a cabeça e sorria com o canto da boca, o batom borrado.

[eu sei que você disse que não é uma mulher >>, mas não tem muita utilidade a gente ficar aqui, nessa chuva. Lá em casa podia ser melhor. Juro que não te encosto a mão. É só uma questão de conforto mesmo.]

Abri a porta do carro e desci.

A chuva me pegou de jeito e ensopou minha @@. O Nazista olhou pela janela, estupefato, e por um segundo desviou o olhar para os meus peitos grudados no tecido.

- Vem! – gritei. – Tá uma delícia.

Um trovão rugiu lá fora.

O Nazista abriu a porta e pisou numa poça.

Nos falamos quase todos os dias. Ao contrário de mim, ele é uma pessoa <, quiçá um pouco <<<. Anteontem conversei com minha filha pelo Skype e ela disse que eu deveria dar uma chance; que o namoro com o escocês estava uma merda; que todo mundo deveria aproveitar ao máximo o início de qualquer relacionamento que se promete duradouro. Perguntei onde ela tinha aprendido a falar bonito desse jeito – aproveitar ao máximo o início de qualquer relacionamento que se promete duradouro – e ela riu, as bochechinhas coradas, e me mandou deixar de palhaçada, Tu parece meu pai falando. Comentei que tinha chances de conseguir um aumento, que meu chefe adorou minha presença no jantar e que a Celeste ia se aposentar no fim do ano – a vaga tinha noventa e nove por cento de chances de ser minha.
  
Ficamos conversando até o dia raiar.


Hoje acordei com o interfone TOCANDO. O porteiro disse que era da floricultura, quis saber se era para deixar subir. Agora eu sou a Dona Silvia da Cobertura 01, os porteiros se importam com a minha segurança. E o Nazista ainda existe. E manda flores lindas. Agradeci com uma mensagem fofinha. 

Boa viagem, ele respondeu.


Sim eu quero largar tudo e ficar o dia de hoje & amanhã & depois com ele meu nazista mas não dá para adiar essa viagem de trabalho porque a celeste vai se aposentar no fim do ano e apesar de ser dona silvia da cobertura 01 eu não posso desperdiçar esse tipo de coisa porque a cobertura 01 não quer dizer nada ela foi herdada eu não tenho grana além da que mando pra sofia sobreviver no exterior então vou ter que ir pra São Paulo aquela cidade horrorosa onde só chove e não tem nem um horto pra gente se esconder e namorar e tomar chuva em paz só o horizonte que mais parece uma carreira de cocaína estendida debaixo das nuvens e fazendo um desabafo a cocaína está cara eu não contei pro nazista né mas tenho outro vício além do cigarro mas é muito pouco quase nunca e se ainda não contei é porque não quero estragar tudo pelo menos não agora em que estamos nos conhecendo tão bem e ele parece estar tanto na minha quanto eu estou na dele porque a gente minha filha quem disse precisa valorizar as coisas boas da vida antes que elas vão embora não não foi nada disso que ela disse e eu nem sei se o verbo ir está conjugado corretamente mas o que importa né afinal de contas sou uma mulher apaixonada e as pessoas apaixonadas podem tudo inclusive dar uns tequinhos quando se sentem solitárias porque não adianta nada nazista jantar  cigarro sushi leblon horto ipanema gávea jardim botânico rio de janeiro são paulo sofia silvia se a gente não puder ter uns prazeres escusos once in a while que é pra poder sofrer em paz sem ninguém perturbar a paciência mas o que eu queria mesmo lá no fundo da minha alma com todo o meu amor não era paulo são janeiro de rio botânico jardim gávea ipanema horto leblon sushi cigarro jantar coisa nenhuma e sim meu nazista que só chamo assim com esse apelido horrível porque o nome de batismo é pior ainda mas obviamente ele não sabe que chamo de nazista já que pessoalmente só chamo de IIIIIII enfim eu queria agora mesmo pular desse avião maldito e dizer que vim para ficar com ele e que mesmo não sendo uma mulher >> hoje eu vou ser >>>>>> e vamos fazer muito    :-)    e também                  que é pra ninguém botar defeito e vamos ser felizes para sempre só por hoje até o sol cair bem laranja quase tangerina por cima dos copans e masps afinal do dia de amanhã ninguém sabe e se esse avião cair ai meu deus eu só queria pai nosso que está no céu falar pro nazista santificado seja vosso nome que eu desci desse avião venha a nósocorro para ficar com ele e antes que pudessem me impedir cair em tentação eu já estava no táxi sorrindo feliz da vida e não há nada que ele possa fazer quanto a isso porque a besteira já tá feita agora estou aqui meu amor livrai-nos do mal e tudo está de volta ao normal, amém Sim.

“Mas e a viagem, Silvia, meu deus do céu, você tá doida? O que você vai fazer?”

“Perder o voo.”

Mateus Baldi

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