domingo, 30 de novembro de 2025

Gerald Thomas arma o circo de horrores em “Sabius, Os Moleques” para demolir os castelos dos reis

Cena da peça de Sabius, Os Moleques
📷 Roberto Setton

“A gente fica dizendo assim: ‘os tempos de hoje são horríveis. Bom era no passado!’. Não era! Não era nada bom no passado. Não era! No passado... tinha Holocausto... tinha guerra. Para de me enfrentar com essa câmera!”. 

Ouvidas na voz do ator Jefferson Schroeder no palco do Teatro Raul Cortez do Sesc 14 Bis, em São Paulo (SP), essas palavras demolidoras dizem muito sobre a reflexão proposta pelo diretor Gerald Thomas no espetáculo Sabius, Os Moleques, em cartaz até 21 de dezembro, de quinta-feira a domingo.

Com a inquietude que pauta a existência e a trajetória teatral do encenador nos palcos do Brasil e do mundo, a encenação de Sabius, Os Moleques, estreada na última quarta-feira, 26 de novembro, mostra um universo em desencanto e, sob esse prisma, se afina com a obra pregressa do diretor. Mais uma vez, Gerald Thomas arma um circo de horrores em cena para chacoalhar a mente do espectador já anestesiada pela futilidade e fugacidade dos joguinhos das redes sociais, atacadas no texto com acidez.

Na primeira metade, Sabius, Os Moleques tangencia a forma de uma peça-instalação. A estética visual impera na cena. Thomas submete as ideias a um conjunto exuberante de iluminação (o desenho de luz é de Wagner Pinto), cenário e trilha sonora que impacta pela beleza ao mesmo tempo em que anuncia o desconforto que pauta um texto que afronta o status quo e a noção de que o mundo já foi um lugar bom. É quando o texto ganha musculatura, na segunda metade da encenação, que Sabius, Os Moleques se engrandece no palco. 

“Conheço a história. Conheço esse horror chamado colonialismo, imperialismo, globalização – chamem do que quiserem. É a pirâmide que age em favor do um por centro. E que não te inclui, não me inclui, e está indo em busca da lama”, reflete Gerald Thomas através da voz de Fabiana Gugli, atriz associada ao universo do diretor pela longa parceria na Cia. de Ópera Seca.  

Em Sabius, Os Moleques, Fabiana Gugli é a única atriz em elenco majoritariamente masculino, formado por Apolo Faria, Nilson Muniz e Pedro Inoue, além do já mencionado Jefferson Schroeder, ator responsável pelo alívio cômico da encenação por meio de tiradas e entonações mordazes. É especialmente aliciante a cena em que Gugli, alçada ao alto do palco por um cabo de aço, evoca a figura de Nossa Senhora ao som de uma “Ave Maria” operística.

A peça permite altos voos. Na trama, um planeta Terra que sucumbiu à humanidade comete suicídio e cai de sua órbita em uma cratera de outro mundo. Ali, cinco sábios, historicamente de eras distintas (caracterizados pelos respectivos períodos históricos), depõem a respeito dos momentos que antecederam o "acidente" sofrido pela Terra e discutem entre si.

Com esse mote, Gerald Thomas não deixa pedra sobre pedra, demolindo os castelos dos reis. O mundo está um horror porque sempre foi um horror desde o início do que pode ser considerado civilização. Sobre os escombros, o encenador ergue um espetáculo que enche os olhos sem deixar de revolver certezas e confortos do espectador. Para isso serve o teatro de Gerald Thomas.

Mauro Ferreira

sábado, 29 de novembro de 2025

O corte ao contrário


A medida que a cor se distanciava,
eu me tornei ausente.
Há tempos buscava o lado contrário do vazio,
o extremo vazado de mim,
há tempos não esperava o silêncio,
tão largo, tão amplo de leitura incompreensível.
Sem saber ao certo quem sou,
há tempos desejo o corte ao contrário:
o caminho inverso do pincel sobre a tela.
Então direi olhando para a noite
que nunca me viu adormecer:
Sou a leveza da quintessência branca,
a terceira margem do cinza negativo,
10 gramas da esquizofrenia do vermelho,
a mancha que mancha o olhar alheio,
eu sou a imaginação viva do preto sobre preto.


Mozileide Neri

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Da minha banda


da banda de Seo Tranca Rua
de Seo sete Encruza
de Seo Calinô
cheguei da banda de lá
molhada de chuva 
e trazendo uma flor
vim mordendo um sorriso
sabendo que o mundo
é feito de dor


Roberta  Attili

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

A uma dama crioula


No inebriante país que o sol acaricia,
Sob um dossel de agreste púrpura bordado
E a cuja sombra nosso olhar se delicia,
Conheci uma crioula de encanto ignorado.

A graciosa morena, cálida e arredia,
Tem na postura um ar nobremente afetado;
Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,
Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.

Caso viesses, Senhora, à heroica e eterna França,
Junto às  margens do Sena ou onde o Loire se lança,
Tu que és digna de ornar os solares altivos,

Farias, ao abrigo das sombras discretas,
Mil sonetos brotar no coração dos poetas,
Que de teus olhos, mais que os negros, são cativos.


Charles Baudelaire


(Esse poema, traduzido por Ivan Junqueira, foi publicado originalmente em 1857 e pode ser encontrado no Brasil na edição pela Editora Nova Fronteira)

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Um poema de Alina


Mi piel de obsidiana me ilumina en las noches.
como las panteras, podré tomar cualquier forma,
pero no otro color.


Alina


(Conheça aqui um pouco mais sobre o trabalho dessa poeta, mãe, negra, nascida em Cuba.)





terça-feira, 25 de novembro de 2025

Linda e preta


Linda e preta, da cor da noite da Bahia
Preta, o dia te anuncia
Linda e preta, você você você virá

Linda e preta, eclipse da rua
Linda e preta, esconde sol e lua
Linda e preta, você você você virá

Que nem a cor do sol de manhã cedo acorda o mar
Meu mundo começa só depois que te encontrar
Seu cabelo black dá um break em meu olhar
Canto essa canção só pra dizer que você

Linda e preta

Que nem a cor do sol de manhã cedo acorda o mar
Meu mundo começa só depois que te encontrar
Seu cabelo black dá um break em meu olhar
Canto essa canção só pra dizer que você

Linda e preta, jardim do dia a dia
Linda e preta, brincar de alegria
Linda e preta, você você você virá

Linda e preta, diz que nem desconfia
Linda e preta, a conta que te guia
Linda e preta, conta quem é teu orixá
Que nem a cor do sol de manhã cedo acorda o mar
Meu mundo começa só depois que te encontrar
Seu cabelo black dá um break em meu olhar
Canto essa canção só pra dizer que você


Jarbas Bittencourt


(Ouça aqui a canção de Jarbas Bittencourt interpretada por Nara Couto)

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Raça extinta


Onde está o meu poovo?
Eu não os vejo.

Nos programas de televisão.
Nas profissões liberais.
E nos comerciais.

Estão invisíveis?
Eu não os vejo.

Calaram sua voz?
Eu não os escuto.

Onde está o meu povo?
Será que estão nas favelas?
Onde, ainda nas senzalas?

Onde está o meu povo?
Eu não os vejo.


Rosângela Muniz

domingo, 23 de novembro de 2025

Alma Corsária


De tanto sono me baixa uma lucidez estranha
em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,
sob o fundo escuro da noite meio baça
(cilíndrica, roliça, bizarra)
seu vulto verde acocorado sobre a água
da piscina que não tem um pensamento.

Eu sinto inveja dessas águas anuladas
tão plácidas, idênticas ao próprio contorno
enquanto eu mesma nem sei onde começo,
quando acabo
e sofro o assédio de tudo o que me toca.

O mundo ora me engole, ora me vara
e tudo o que aproxima me desterra.
Chorei, ao ver no chão da cela,
o botão arrancado na contenda,
os óculos pisados do escritor judeu.

Tenho um coração que estala
com o peteleco das palavras de Clarice.
Numa vila miserável na Bahia,
um negro lindo, lindo,
dança ao som do corisco
— e só me apaixono por casos perdidos,
homens com um quê de irremediável.

Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,
vi abrir-se a máquina do mundo
sob a luz inclinada de Ipanema,
na Serra da Bocaina, no meio da floresta,
no alto da escada no topo do morro
por onde a moça sequestrada vinha subindo
debaixo das lágrimas do pai.

Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera "é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo".
Sim, eu acredito no corpo.

Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.

Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.


Cláudia-Roquette Pinto


(Essa é a versão do poema publicada no Plástico Bolha, n7, em setembro de 2006 e posteriormente publicada  na Antologia de Poesia Plástico Bolha em 2014. Confira o livro Alma Corsária, lançada pela autora em 2022.) 

sábado, 22 de novembro de 2025

La Lune de Gorée


La lune qui se lève
Sur l'île de gorée
C'est la même lune qui
Sur tout le monde se lève

Mais la lune de gorée
A une couleur profonde
Qui n'existe pas du tout
Dans d'autres parts du monde

C'est la lune des esclaves
La lune de la douleur

Et la peau qui se trouve
Sur les corps de gorée
C'est la même peau qui couvre
Tous les hommes du monde

Mais la peau des esclaves
A une douleur profonde
Qui n'existe pas du tout
Chez les autres hommes du monde

C'est la peau des esclaves
Un drapeau de liberté


Gilberto Gil & Capinan


(Ouça aqui a música na voz do nosso eterno Gilberto Gil)

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Candombe


Põe o ombro na lua,
Mas levanta forte
que Zambi arrepia o sol.

Os velhos desfiam os dedos
e o tempo se assusta: “Auê,
quem vive tanto é de mistério”.

“Não, que o quê?— respondem.
Põe o ombro aqui, candonga
mas dobra forte
que Zambi engole o sol.

Uê, morde por dentro
cobra dormindo faz a cova.

Uê, quem sabe desses meninos
é Zambi que engole o sol
é Zambi que mata o sol.


Edimilson de Almeida Pereira

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Zumbi


Foi Zumbi:

Zumbi quem me ensinou 
a coragem e a esperança,
a força e a perseverança
que só conhece quem lutou.

Sim, foi Zumbi
quem me manteve acordada
azeitando as armas da batalha
para um dia feliz.

Tudo se fez madrugada
em abraços e tornados casa,
sendo tempo de raiz e asa
enquanto cerzíamos a alvorada.

E mesmo hoje,
com os sonhos desabrigados,
dançam os corpos marcados
de quem sabe acender a noite.

De quem pode virar o bote
e incendiar reinados
quando, de novo, acordados
para cessar o açoite.


Elaine Freitas de Oliveira

Mãe-Preta


— Mãe-preta, me conta uma história
— Então feche os olhos filhinho:

Longe muito longe
era uma vez o rio Congo…

Por toda parte o mato grande
Muito sol batia o chão

De noite
chegavam os elefantes
Então o barulho do mato crescia

Quando o rio ficava brabo
inchava

Brigava com as árvores
Carregava  com tudo, águas abaixo
até chegar na boca do mar

Depois…

Olhos da preta pararam
Acordaram-se as vozes do sangue
glu-glus de água engasgada
naquele dia do nunca-mais

Era uma praia vazia
com riscos brancos de areia
e batelões carregando escravos

Começou então
uma noite muito comprida.
Era um mar que não acabava mais

… depois…

— Ué mãezinha
por que você não conta o resto da história?


Raul Bopp


(Esse poema, assim como Bate-Pilão foi publicado em 1932, no livro Urucungo, pela Editora José Olympio, organizado por Augusto Massi.)

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Padrasto


Brasil, se tua mãe é África
e teu pai é euro,
se tua mãe, mágica
e teu pai dinheiro,
por que te afastas tanto do ventre,
por que tão patriarca se tornaste?

Se tua mãe é Oxum
e teu pai é culpa,
por que abandonaste teus filhos sozinhos na luta?

Brasil padrasto
não vês que não tem identidade alguma
um reflexo apenas no gasto espelho branco?
Brasil, pra onde ruma,
se renegas a mãe que só te ama?

Amor e respeito não se compra
nem com prata nem com arrogância.
A ganância , país ingrato, é um veneno
que mata teus filhos primeiros.

Perdoai, Mãe África, perdoai
este país sem passado e sem futuro
que abate seus filhos a tiros
na engrenagem cega do ouro.


Paulo D'Auria 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Neguinho


Neguinho era branco, muito magro, baixinho, feio, narigudo, pé grande e pau pequeno. Detestava futebol, novela, praia, churrasco e pagode, ou seja, tudo em Neguinho era estranho. Gostava de cinema europeu que assistia desde criança na cabine de projeção do centro cultural onde o tio trabalhava. Na verdade, o tio dormia e ele tomava contada projeção.

Amava a escuridão da sala de projeção. Como não sabia ler, podia inventar as histórias que quisesse para aqueles filmes, o mesmo filme poderia ter enredos completamente diferentes e como a sala vivia vazia, muitas vezes, podia terminar o filme a hora que bem entendesse. Na tela podia viver outras vidas, ser alguém, ali era impossível viver sem ele. Neguinho era Deus.

Foda mesmo era quando tinha que voltar pra casa, geral tinha mania de falar que morar no morro era maneiro, maneiro é o caralho! Os vizinhos eram tudo um bando de filhos da puta! Só por que a caxanga dele era de telha, muitos ficavam esculachando. As outras casas eram de laje, tinham umas até com antena parabólica, mas de que adianta? Eles moravam na favela que nem ele! Era tudo um a mesma merda.

Do lado da casa dele era um terreiro de macumba que tinha batucada todo dia, do outro lado da rua uma igreja evangélica com direito à música ao vivo, mal tocada e mal cantada. De manhã cedo abria a birosca da Edna que só tocava e pagode. Pra completar, ainda tinha a oficina do Jô que tocava funk o dia todo. Aquela mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda dizem que a favela agora é pacificada.

Teve um dia que tacaram um cano de ferro que quebrou a telha e caiu na cama, exatamente onde ele dormia. Já pensou se ele tivesse deitado na hora? Morria! Essas paradas são sinistras!

Os arrombados dos vizinhos ainda foram chamar a polícia! Os PMs vão fazer o quê?

— Tô lá em casa, tranquilão. Escuto bater na porta, me aparece o Abelha com os PMs dizendo que eu quebrei o vidro da janela da casa dele. Quebrei mesmo, mas falei que não quebrei. Ele não falou que ninguém viu ele tacando o ferro no meu telhado? Falei logo que ninguém tinha me visto jogando a pedra na janela. Até provar que berimbau não é gaita rolou o maior bate-boca e ficou tudo por isso mesmo. Tem dia que me vem uns pensamentos neuróticos, todo mundo me vê assim, magrinho, baixinho, mas eu sou ruim! Vai vendo!

Neguinho desceu o morro do Vidigal bolado e quando viu aquele monte de gente descendo pra pista pra fazer uma manifestação na rua do governador, foi junto, nem sabia o que era, mas foi.

Quando chegou lá o bagulho já estava doido, cheio de carro de polícia, rolava tiro, bomba, spray de pimenta. Neguinho tremia de excitação, nem sabia mais pra onde estava indo, aquilo tudo era lindo, se sentia o cão solto no meio do redemoinho, quebrava os vidros dos carros, das portas dos bancos, das lojas. Saqueava as mercadorias e não era para roubar, era só pra botar fogo e ver tudo arder. Nunca tinha visto uma fogueira tão linda.

As luzes do fogo e das câmeras de TV se misturavam e ele mostrava mais a cara, sorria, saiu no jornal com foto e tudo. Agora era o vândalo procurando: José Desidério da Silva.


Márcio Januário

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Bembé da liberdade


Os pretos todos novos
Jogados à terra em flor
Foram aterrados aos poucos
Não como gente de valor

As ruínas do cais do Porto
O Valongo que se mostrou
Vem revelar um passado
que nos é constrangedor

São camadas e camadas
De terra, tempo, rancor
Tentativas e descasos
Pra se esconder o horror

Congo, Angola e Benguela
Pedra do Sal testemunhou 
A diáspora africana
Roma Negra Salvador

Ben Ben Bembé 
Dá licença que me vou
Ben Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Vou tocar meu Agogô

Ben Ben Bembé
Ben Ben Bembé

Dá licença que me vou
Ben, Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Vou pro Bembé bater meu tambor

A história permanece
Não prescreve uma dor
Deixa rastro sobre o lastro
Do chão em que se pisou

Hoje eu canto a minha graça
O meu credo, o meu valor
Não vou deixar barato
Qualquer preconceito de cor

Reafirmo a minha presença
Com toda glória e vigor
Grito forte, canto alto
Foi o Bembé que me ensinou


Osvan Costa

domingo, 16 de novembro de 2025

Flor de Luanda


Meus escritos estão na Lua, penso em Lua. Viajo à Luanda, para recordar o sorriso da noite de Luanda. Lembro de agosto, quando a Lua sorriu para meus olhos. Dedico à Lua este poema. Preocupo-me com o tempo. A Lua e o poeta.

A Luanda, mulher encantadora. Que, apesar de não guardar suas ansaiedades, encantou-me com seu sorriso das nuvens de África.

Comprar-lhe-ei uma flor
Uma flor de Luanda
A mais remota das Áfricas
A flor que da areia molhada pelas lágrimas
desabrocha na guerra e semeia esperança

Meu impasse é errar teu sorriso
e confundi-la com a flor
São Luandas
Luas de África
Amarradas às armas não tão brandas
Mas brancas.

Ei de dá-la uma flor
para matar sua dor
afogar o desamor da noite que lhe sufoca, flor.


Manoel Canuto 

sábado, 15 de novembro de 2025

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Guimarães Rosa é humanizado na cena minimalista de "Pormenor de ausência"


Giuseppe Oristanio interpreta João Guimarães Rosa 
em Pormenor de ausência


O escritor mineiro João Guimarães Rosa (27 de junho de 1908 – 19 de novembro de 1967) está entronizado no panteão dos imortais da literatura brasileira por livros como Sagarana (1946) e Grande sertão: veredas (1956), obras-primas referenciais pelo estilo inovador da prosa de Rosa. 

Na cena de Pormenor de ausência, espetáculo que vem rodando o Brasil desde 2022 e que no momento está em cartaz no Teatro Vannucci, no Rio de Janeiro (RJ), em temporada às segundas e terças-feiras, Guimarães Rosa aparece humanizado na pele do ator paulistano Giuseppe Oristanio. 

Sob direção de Ernesto Piccolo, o ator interpreta o escritor nos últimos anos de sua vida, em saga para se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras e, na luta por uma cadeira na ABL, o romancista se despe da aura sagrada e se mostra um homem picado pelo bichinho da vaidade. Se a obra já estava consolidada, a alma do escritor ainda estava insaciada, movida pelo desejo de uma imortalidade que os livros já haviam lhe garantido, mas que Rosa enxergava somente na vaga da ABL.

Com boa caracterização, Giuseppe Oristanio interpreta Guimarães Rosa na primeira pessoa, dando voz ao texto escrito por Lívia Baião a partir de pesquisa sobre a vida do escritor, o que deu à dramaturga acesso a cartas, documentos e textos de ficção do autor que debutou no universo literário em 1936 com um livro de poesia, Magma.

Em Pormenor de ausência, Guimarães Rosa é o narrador da própria história, de uma saga que mistura vaidade, obsessão e morte. Na encenação minimalista, calcada no texto e no ator, a luz e a música entram somente no fim da peça, para realçar um desfecho já notoriamente trágico. 

Como se sempre pressentisse que a chegada à ABL fosse o ápice e o fim da saga existencial, Rosa de fato morreu três dias após tomar posse na cadeira de número 2 em 16 de novembro de 1967, em cerimônia pautada por elogios superlativos de apoiadores, como o jurista Afonso Arinos de Melo Franco (1905–1990).

Pormenor de ausência retrata um Guimarães Rosa às voltas com crenças religiosas, sérios problemas de saúde e dilemas comportamentais. A cena enfatiza que a grandeza da obra muitas vezes contrastou com a dimensão ordinária de uma alma humana como muitas, vítima das armadilhas do ego. É o homem que está em cena, com inseguranças e medos.

Essa humanização de Guimarães Rosa ao longo da hora de duração do monólogo contribui para dissolver qualquer aura mitológica da imagem do autor que desbravou as grandes veredas do sertão mineiro. A recorrente perspectiva da morte talvez seja a senha para o entendimento da obsessão do escritor pela imortalidade intelectual conferida com a entrada na Academia Brasileira de Letras.

Com um fardão posto em cena em uma das extremidades do palco, como a lembrar para o espectador da saga particular de Guimarães Rosa, Pormenor de ausência descontrói a imagem sertaneja, ruralista, que talvez ainda persista no imaginário de quem desconhece as múltiplas atividades desse escritor que também foi diplomata e médico. Mas que passou para a história como um escritor grandioso, visto em cena com as pequenezas comuns a toda a gente.


Mauro Ferreira

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Oxumaré


Senhor que une a terra
Suas cores incendeiam os céus
Céus e terra
Terra e céus
Serpentes que giram
Entrelaçam mundo 
Fio de contas amarelo e preto
Todas as cores são Suas são
Ri dos gêneros humanos
Feminino e masculino
Para Ele não há 
Apenas existir
Infinitamente
Cobrarcoíris
Apenas É
Arroboboi Oxumaré!
No fim do arco-irís
Tem riqueza
Quem é digno de ir lá?
E se tudo mudar
E se tudo muda
Deixe a roda girar
A vida é pra dançar


Guaiamum 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Àquela de cabelos d'África


Tal qual a árvore do Éden me instiga o pecado
Teus cabelos de lúbrica trança baiana
Me seduzem os olhos na noite, espantado,
Com o toque sublime da dádiva humana!

Reprimidos por todo o labéu do passado,
A elegância que deles agora se emana,
Como um céu sem igual de virtude estrelado,
A coragem reflete da Mãe africana!

Ah! Que amores desenham-se neles ocultos,
E que prantos, que angústias se escondem sepultos
Nos cabelos de alegres e jovens matizes?

Contemplando os teus cachos mergulho inocente
Na ondulante beleza da força inerente
À mulher que enaltece no corpo as raízes!


Guilherme Ottoni

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Dias de Kizomba


Ab(dias) de lutas e não dias de luto.
Um homem como Abdias,
estrela incandescente,
não morre.

A sua luz
cor negra zagaia
feriu a branca consciência
de uma democracia racial
nula e vil.

Um homem como Abdias,
estrela Nascimento,
Zumbi eternizado,
não morre.

A sua luta
Ziguezagueia
d'África à diáspora
espalhando sementes baobás
em cada uma/um de nós.


Conceição Evaristo

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Um poema de Vic Torinno


Sempre disseram que preto não pode falar
Preto não tem voz
O preto que tem voz é sempre calado

Mais um sorriso preto apagado
Mais uma esperança preta tombada
Mais um corpo preto no chão
Mais sangue preto que escorre
Mais uma preta pra estatística
Mais um dos nossos mortos.
Descansa
Luz no teu caminho porque o povo de Aruanda te abraça e te ilumina
Descansa.


Vic Torinno

domingo, 9 de novembro de 2025

Um poema para Xangô


um poema bravo que cante o fogo & busque
um olhar que leve
a caminhar sem treva
a estar completa e tocar
o outro apenas como um campo de força
ereto
amigo,
perder é um pavio
é osso
cante o fogo & busque
um poema novo


Juliana Bernardo

sábado, 8 de novembro de 2025

Prece de areia


Ogum Beira-mar
corre maré solta
traz faísca no olhar
quebra a louça

Ogum Beira-Mar
vem navegar
no fio da navalha
nos olhos de Mãe Iemanjá

Ogum Beira-Mar
vou contigo, não arrisco

caio no mar
vou navegar

Sétima onda
rajada de vento
Iansã no terreiro
na água e no mar

Dá passagem
Ogum Beira-Mar

Armadura prateada
búzio em flor
água salgada
na ronda da Calunga Grande
Seu Beira-Mar faz morada

Como bravos navegantes
de destino incerto
pedimos sua proteção
nos caminhos dos mistérios

Ogum Beira-Mar
vou contigo, não arrisco

caio no mar
vou navegar


Karina Gercke 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Milionário do sonho


É o que eu digo e faço, não suponho, sou milionário do sonho
É o que eu digo e faço, não suponho, sou milionário do sonho
É difícil pra um menino brasileiro sem consideração da sociedade
Crescer um homem inteiro, muito mais do que metade
Fico olhando as ruas, as vielas que ligam meu futuro ao meu
passado
E vejo bem como driblei o errado, até fazer taxista crer
Que posso ser mais digno do que um bandido branco e becado
Falo querendo entender, canto pra espalhar o saber
E fazer você perceber que há sempre um mundo, apesar de já
começado
Há sempre um mundo pra gente fazer
Um mundo não acabado, um mundo filho nosso
A nossa cara, um mundo que eu disponho agora foi criado por
mim
Euzim, pobre curumim, rico, franzino e risonho
Sou milionário do sonho

Ali vem um policial que já me viu na TV espalhar minha moral
Veio se arrepender de ter me tratado mal
Chegou pra mim sem aquela cara de mau: Fala, mano, abraça,
mano
Irmãos da comunidade, sonhadores e iguais, sei do que estou
falando
Há um véu entre as classes, entre as casas, entre os bancos
Há um véu, uma cortina, um espanto que, para atravessar, só rasgando
Atravessando a parede, a invisível parede
Apareço no palácio, na tela, na janela da celebridade
Mas minha palavra não sou só eu, minha palavra é a cidade
Mundão redondo, Capão Redondo, coração redondo na ciranda
da solidariedade
A rua é nóis, cumpadi!
Quem vê só um lado do mundo só sabe uma parte da verdade
Inventando o que somos, minha mão no jogo eu ponho
Vivo do que componho, sou milionário do sonho

Vou tirar onda, peguei no rabo da palavra e fui com ela
Peguei na cauda da estrela dela
A palavra abre portas, cê tem noção?
É por isso que educação, você sabe, é a palavra-chave
É como um homem nu todo vestido por dentro
É como um soldado da paz armado de pensamentos, é como uma
saída, um portal, um instrumento
No tapete da palavra chego rápido, falado, proferido na velocidade do vento, escute meus argumentos
São palavras de ouro, mas são palavras de rua
Fique atento
Tendo um cabelo tão bom, cheio de cacho em movimento, cheio de armação, emaranhado, crespura e bom comportamento
Grito bem alto, assim: Qual foi o idiota que concluiu que meu
cabelo é ruim?
Qual foi o otário equivocado que decidiu estar errado o meu cabelo enrolado?
Ruim pra quê? ruim pra quem?
Infeliz do povo que não sabe de onde vem
Pequeno é o povo que não se ama, o povo que tem na grandeza da mistura o preto, o índio, o branco
A farra das culturas
Pobre do povo que, sem estrutura, acaba crendo na loucura de ter
que ser outro para ser alguém
Não vem que não tem
Com a palavra eu bato, não apanho
Escuta essa, neném, sou milionário do sonho
Por isso eu digo e repito: Quem quiser ser bom juiz deve aprender
com o preto Benedito

O mundo ainda não está acostumado a ver o reinado de quem mora do outro lado da ilusão
A ilusão da felicidade tem quatro carros por cabeça, deixando o planeta sem capacidade de respirar à vontade
A ilusão de que é mais vantagem cada casa, mais carro que filho
Cada filho menos filho que carro
Enquanto eu com meu faro vou tirando onda, vou na bike do meu verbo tirando sarro
Minha nave é a palavra, é potente o meu veículo sem código de
barra
Não tem etiqueta embora sua marca seja boa, minha alma é de boa marca
Por isso não tem placa, tabuleta, inscrição
Meu cavalo pega geral, é Pegasus, é genial
A palavra tem mil cavalos quando eu falo
Sou embaixador da rua, não esqueço os esquecidos e eles se lembram de mim
Sentem a lágrima escorrer da minha voz, escutam a música da minha alma
Sabem que o que quero pra mim quero pra todo o universo
É esse o papo do meu verso

Mas fique esperto porque sonho é planejamento, investimento, meta
Tem que ter pensamento, estratégia, tática
Eu digo que sou sonhador, mas sonhador na prática
Tô ligado que a vida bate, tô ligado quanto ela dói
Mas com a palavra me ergo e permaneço, porque a rua é nóis
Portanto, meu irmão, preste atenção no que vende o rádio, o jornal, a televisão
Você quer o vinho, eles encarecem a rolha
Deixa de ser bolha e abre o olho pra situação
A palavra é a escolha, a escolha é a palavra, meu irmão
Se liga aqui, são palavras de um homem preto, samurai, brasileiro, cafuzo, versador, com tambor de ideias pra disparar
Não são palavras de otário, já te falei, escreve aí no seu diário:
Se eu sou dono do mundo, é porque é do sonho que eu sou milionário!


Elisa Lucinda e Emicida


(Ouça aqui a canção cantada e rimada pelos artistas!)

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Dia a dia


Um dia vi meus amigos jogando ping pong numa
travessa da Rocinha II do Karatê na Cidade de Deus.
Parei, observei e fiquei por um instante imensamente
feliz porque sorriram juntamente comigo.

Outro dia avistei diversas minas gatas da comunidade
tomando açaí e sentadas numa mureta. Elas sorriram
pra mim e sorri pra elas também.

Daí, avistei jovens tirando uma partida de futebol
numa quadra. Eles acenaram pra mim com respeito
e emocionadamente chorei. Hoje escrevo, publico e
divido esses momentos com todos vocês.


Nélio Fernandes

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Mamãe mar


Mãe d'água
Rainha sereia
A balançar no vem e vai que embala
Fica doce feito bala
Peixinho ele é
Quando visita mamãe
Viaja nas profundezas azuis 
Belezas do mundo fundo do mar
Tem areia, conchas, corais
Peixes, tartarugas, golfinhos, baleias
Navios e mistérios ainda mistérios
O menino a sonhar...
Coisas para lá... 
De um horizonte além mar...


Banditt

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Monjolo (Chorado do Bate-Pilão)


Fazenda velha. Noite e dia
          Bate-pilão

Negro passa a vida ouvindo
          Bate-pilão

Relógio triste o da fazenda.
          Bate-pilão

Negro deita. Negro acorda.
          Bate-pilão

Quebra-se a tarde. Ave-Maria.
          Bate-pilão

Chega a noite. Toda a noite
          Bate-pilão

Quando há velório de negro
          Bate-pilão

Negro levado pra cova
          Bate-pilão

                         (1926)


Raul Bopp

domingo, 2 de novembro de 2025

Negra, sim!


Nas minhas vivências 
As potências e os afetos adotaram uma postura
"Quero ser livre com sentido"
Sou intensa, tenho um coração que pulsa, pulsa, pulsa...
Não quero dormir, não quero fugir...
Só quero viver, viver!
Eu me construo, eu me reconstruo.
Eu vivo!
Sou mulher negra, sim
Enxugo lágrimas e só caminho quando sei onde vou chegar
Meu mundo é um sonho real
Nele construo ideias,
Crio sonhos e meu ego se enaltece!
Sou a união estável entre seres que se amam
Quero a paz entre os povos
a harmonia para o planeta em que vivemos.
Não tenho dúvidas em meu "Ser"
Só tenho garra e vontade de "Ser", de querer, de saber,
de vencer!
Sou negra cheia de graça
Não digam para mim: ponha-se no seu lugar!
O meu lugar é onde eu quiser estar!
Negra, sim!


Mery Onírica

sábado, 1 de novembro de 2025

Vera Fischer se espelha no jogo de cena da peça "O casal mais sexy da América”

Vera Fischer e Leonardo Franco vivem par amoroso
em O casal mais sexy da América / Foto: Carlos Costa 

Comédia escrita pelo dramaturgo norte-americano Ken Levine com fidelidade às regras do playwriting, America's sexiest couple estreou em julho de 2022 nos Estados Unidos, pondo em cena temas como etarismo e abuso sexual, a partir do reencontro de um casal de atores em fase outonal de suas carreiras.  


Três anos depois, o texto ganha a primeira montagem brasileira em adaptação fiel de Tadeu Aguiar, também diretor da encenação, que vem percorrendo capitais do Brasil ao longo de 2025. No momento, O casal mais sexy da América está em cartaz no Rio de Janeiro (RJ), no Teatro Clara Nunes, um dos palcos do Shopping da Gávea, espécie de Cinemark do teatro carioca.

 

O grande atrativo da peça é a presença de Vera Fischer no papel de Susan White, atriz veterana que fez muito sucesso nos anos 1990, ao estrelar série de TV com o ator Robert McAllister, personagem de Leonardo Franco. Três décadas depois, enquanto luta para se manter em cena, Susan reencontra casualmente Robert em um dos quartos do hotel onde estão hospedados para ir ao funeral de um colega da mesma série. O encontro traz à tona memórias dolorosas, em jogo de cena armado para provocar o riso do espectador, com direito a uma cena de sexo confeitada com o humor pastelão das comédias mais populares.

 

Com elenco completado por Vitor Thiré, bem aproveitado no papel de um jovem millennial que trabalha no hotel, O casal mais sexy da América se escora na presença magnética de Vera Fischer. Uma das referências de beleza feminina no Brasil, a atriz catarinense, ao longo de sua carreira, lutou para provar que tinha talento. Esse talento é comprovado na pele de Susan.

 

Vera Fischer festeja 74 anos neste mês de novembro, precisamente no dia 21, e enfrenta há anos o mesmo ocaso de Susan White no mercado do audiovisual. Outrora protagonista de novelas como Coração alado (1980) e Laços de família (2000), sem falar em séries como Desejo (1990), a atriz já não encontra espaço no mundo das novelas e séries. E volta e meia se queixa disso em entrevistas.

 

Dessa forma, a encenação de O casal mais sexy da América se alimenta de um jogo de espelhos entre atriz e personagem. É como se Vera se visse refletida em Susan. E, quando a personagem desabafa sobre os efeitos do etarismo na profissão, é quase inevitável que o espectador interprete as falas como queixas da própria Vera Fischer em curiosa interseção entre ficção e realidade.

 

Com montagem de contorno realista, O casal mais sexy da América sustenta a atenção do público como esse jogo de cena ancorado na presença luminosa da impagável estrela Vera Fischer.


Mauro Ferreira

Mês da Consciência Negra no Plástico Bolha


No Plástico Bolha, a diversidade é naturalmente uma questão de ordem, cotidianamente. Buscamos publicar autores das mais variadas localidades, nacionalidades, etnias, credos e orientações de gênero, sem distinções etárias, exibindo lado a lado autores inéditos e consagrados. Porém, neste novembro de 2025, separamos uma seleção mais do que especial. Nossa antologia está voltada à consciência negra, e traz poemas de muita força, alegria, resistência, negritude e muita ancestralidade. Esperamos que todos vocês sejam tocados como leitores tanto quanto nós fomos nesse processo de edição.