terça-feira, 22 de julho de 2025
Um poema de Paulo D'Auria
a linha do equador é imaginária
a linha da pobreza, não
a linha do horizonte é uma linha imaginária
a vida sem horizontes, não
figuras de linguagem nem sempre são bonitas de se ver
a poesia também nem sempre são bonitas de se ver
a poesia também é um lugar selvagem
Paulo D'Auria
segunda-feira, 21 de julho de 2025
Poema de Claudia Roquette-Pinto
Então é isso:
essa série de imprevistos
rondando o imaginado
enquanto em alguma baía,
istmo ou íntimo
acidente geográfico
uma cerejeira, inteira em flor
queima de abelhas
arma o seu buquê de ruídos.
Claudia Roquette-Pinto
nenhuma gentileza nas mãos
acabei de descobrir
tenho um corpo nele tem: palavras
cômodos, lâmpadas uma casa inteligente orgânica
toda dinâmica se batem palma é para que algo se acenda.
meu antigo problema de esquecimento foi solucionado.
um corpo nunca esquece onde estão as chaves
descobri que tenho um corpo
há sinais: desastres hídricos geológicos incêndios
emanações vulcânicas menstruações inundações
descobri que todo corpo é horta-praga
assim se faz uma vizinhança. confusão
entre vizinhos: o seu telhado sobre o meu
Maria Emanuelle Cardoso
Copacabana
Esboço — poema de capa da edição do PB #30
no pé do caderno
comecei a tracejar
esse caminho
quase acabado.
sonhei com rampas
e prédios incendiados
esbocei que era Nero.
Natalia Eme
Uma análise do poema "Portuñol/Portunhol", de Ivana Vollaro — por Rafaela Albernaz
Foi somente aos doze anos, quando comecei a estudar francês na escola, e fiquei fascinada por suas semelhanças e diferenças com o português, que eu mergulhei pela primeira vez na linguística, e me surpreendi ao aprender que quase todas as línguas europeias (e algumas asiáticas) possuíam uma origem comum, tendo evoluído a partir do Proto-Indo Europeu.
Também descobri o conceito do contínuo dialetal, que descreve um conjunto de dialetos falados numa área geográfica. Em tais contínuos, dois dialetos vizinhos são facilmente compreensíveis, como o português e o espanhol, enquanto dois extremos, como o português e o romeno, são de mais difícil compreensão. Existe até uma famosa expressão descrevendo a dificuldade de definir se duas línguas próximas são distintas ou dialetos de uma língua só, e como a política está bem envolvida neste processo: “Uma língua é um dialeto com um exército e marinha.”
Ao descobrir essas complexidades e entender que línguas são primeiramente um meio de comunicação, e que a gramática não é uma lei sagrada, passei a me sentir bem envergonhada a respeito de minhas opiniões infantis e ignorantes sobre o portunhol, que, como todas as línguas misturadas, serve como uma ponte entre dois povos. Ao ver este poema, lembrei dessas antigas emoções, e fiquei me perguntando como teria me sentido se o tivesse visto ainda possuindo aqueles preconceitos.
Quanto aos modos de compreensão, apesar de ser classificado como um poema, esta obra, assim como muitas outras presentes na revista “Artéria”, poderia ser classificada como um quadro/obra de arte visual. Afinal, a poesia visual é uma síntese destes dois meios, e esta obra foca mais no aspecto visual do que verbal, tendo como palavras completas apenas as duas versões do título.
O til/h pequeno brinca com a própria origem do eñe espanhol. Originalmente, o fonema /ɲ/ era representado pelo dígrafo “nn”, que representava um n longo em Latim. Já que pergaminho era um material bem escasso e caro na era medieval, escribas desenvolveram um sistema extenso de abreviações para certos dígrafos e palavras, que costumavam envolver ou colocar uma letra minúscula em cima de uma letra de tamanho normal, ou um acento, como o próprio til. Neste poema, o til/h faz referência a ambos os métodos. Ademais, o til/h parece o símbolo matemático “≉”, que significa “não é quase igual a”.
Há ainda uma estratégia de oralidade nesta obra: a brincadeira oral deste poema surge do fato de ambas as línguas pronunciarem o título da obra da mesma forma, apesar da grafia diferente: o eñe espanhol, e o dígrafo nh, que aqui representa o português. (Interessantemente, ele originalmente surgiu na lingua occitana, outra integrante da família românica, e mãe do trovadorismo.)
Além de representar o fenômeno do Portuñol/Portunhol de uma maneira concisa e memorável, o poema me fez pensar sobre como sua premissa, retratando as diferenças marcantes entre duas línguas irmãs, e como elas se misturam, poderia ser adaptada para outras línguas. Por exemplo, a língua russa tem pelo menos dois “portunhóis”: o Surzhyk (mistura com o ucraniano) e a Trasianka (mistura com o bielorrusso).
Além disso, também me lembrei do Galego, a língua mais próxima ao português, descrita por muitos que a encontram pela primeira vez como “portunhol oficial”, ou “brasileiros tentando falar espanhol”. Embora o poema não tenha qualquer ligação proposital com esta língua, outra coincidência interessantíssima é o fato de ela usar tanto o ñ (representando o mesmo som que em espanhol) e o dígrafo nh (representando o som /ŋ/, o “ng” do inglês.)
Rafaela Albernaz
Rafaela Albernaz é aluna do curso de Letras da PUC-Rio, onde se destaca pelo seu amplo conhecimento linguístico e interesse encantador pelo mundo das palavras!
Bucólica, de Paulo Henriques Britto
Ordenhar as vacas
menores, mais fracas,
mais magras do pasto,
que dão o leite ralo
com que me regalo.
Das gordas me afasto:
a coisa que abunda,
é nauseabunda,
rançosa, nefasta.
O escasso, no entanto,
cabe no meu canto
e basta.
Paulo Henriques Britto
domingo, 20 de julho de 2025
Um poema de Pedro Tostes
você é tão bela
quanto o balé das parabólicas
no céu de são paulo
Pedro Tostes
Latinoamérica — canção de Calle 13 ✊
Soy, soy lo que dejaron
Soy toda la sobra de lo que se robaron
Un pueblo escondido en la cima
Mi piel es de cuero, por eso aguanta cualquier clima
Soy una fábrica de humo
Mano de obra campesina para tu consumo
Frente de frío en el medio del verano
El amor en los tiempos del cólera, mi hermano
El sol que nace y el día que muere
Con los mejores atardeceres
Soy el desarrollo en carne viva
Un discurso político sin saliva
Las caras más bonitas que he conocido
Soy la fotografía de un desaparecido
La sangre dentro de tus venas
Soy un pedazo de tierra que vale la pena
Una canasta con frijoles
Soy Maradona contra Inglaterra anotándote dos goles
Soy lo que sostiene mi bandera
La espina dorsal del planeta es mi cordillera
Soy lo que me enseñó mi padre
El que no quiere a su patria, no quiere a su madre
Soy América Latina
Un pueblo sin piernas, pero que camina, ¡oye!
Tú no puedes comprar al viento
Tú no puedes comprar al sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
Tú no puedes comprar las nubes
Tú no puedes comprar los colores
Tú no puedes comprar mi alegría
Tú no puedes comprar mis dolores
Tú no puedes comprar al viento
Tú no puedes comprar al sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
Tú no puedes comprar las nubes
Tú no puedes comprar los colores
Tú no puedes comprar mi alegría
Tú no puedes comprar mis dolores
Tengo los lagos, tengo los ríos
Tengo mis dientes pa' cuando me sonrío
La nieve que maquilla mis montañas
Tengo el sol que me seca y la lluvia que me baña
Un desierto embriagado con peyote
Un trago de pulque para cantar con los coyotes
Todo lo que necesito
Tengo a mis pulmones respirando azul clarito
La altura que sofoca
Soy las muelas de mi boca mascando coca
El otoño con sus hojas desmalladas
Los versos escritos bajo la noche estrellada
Una viña repleta de uvas
Un cañaveral bajo el sol en Cuba
Soy el mar Caribe que vigila las casitas
Haciendo rituales de agua bendita
El viento que peina mi cabello
Soy todos los santos que cuelgan de mi cuello
El jugo de mi lucha no es artificial
Porque el abono de mi tierra es natural
Tú no puedes comprar el viento
Tú no puedes comprar el sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
Tú no puedes comprar las nubes
Tú no puedes comprar los colores
Tú no puedes comprar mi alegría
Tú no puedes comprar mis dolores
Não se pode comprar o vento
Não se pode comprar o sol
Não se pode comprar a chuva
Não se pode comprar o calor
Não se pode comprar as nuvens
Não se pode comprar as cores
Não se pode comprar minha alegria
Não se pode comprar minhas dores
No puedes comprar el sol
No puedes comprar la lluvia
(Vamos caminando)
(Vamos caminando)
(Vamos dibujando el camino)
No puedes comprar mi vida (vamos caminando)
La tierra no se vende
Trabajo bruto, pero con orgullo
Aquí se comparte, lo mío es tuyo
Este pueblo no se ahoga con marullos
Y si se derrumba yo lo reconstruyo
Tampoco pestañeo cuando te miro
Para que te recuerde' de mi apellido
La Operación Cóndor invadiendo mi nido
Perdono, pero nunca olvido, ¡oye!
Aquí se respira lucha
(Vamos caminando) Yo canto porque se escucha
(Vamos dibujando el camino) Oh, sí, sí, eso
(Vamos caminando) Aquí estamos de pie
¡Qué viva la América!
No puedes comprar mi vida
Um poema visual de Ivana Vollaro
Ivana Vollaro
Portuñol/Portunhol, 2004
Pôster a partir de offset, 40 x 60 cm
Offset poster
Publicado na Revista Artéria 9, 2007
Desde el sur (pero en el Caribe de Yucatán)
mi amigo Alex
viene de Mar del
Plata
pero mira el mar del
Caribe
el sargazo no le
atinge
su guitarra es de
oro
llegó ayer
¿para quedarse?
del rock al tango
toca por el cambio
para encontrarse
Lucas Viriato
Um poema a partir do Limo — por Ana Chiara
A palavra fica imóvel
na ponta da língua
Recusa-se a pular
para o mundo
(estarei aqui enquanto
você precisar)
O corpo um alambique
transforma o sentido das coisas destilando
Inveja, ironia, reiva
em poesia de sílabas
contadas,
tão perfeitinha
que nem aparece,
querida,
o limo que se agarra
a ela.
Ana Chiara
O servidor de mistérios, de Néstor E. Rodríguez
Ao apanhar um pardal
me dei conta do meu próprio peso,
a rotundidade do meu peso
engolindo-me
em uma espiral de assombro.
Néstor E. Rodríguez
Um poema de Henrique Duarte Neto
é o símbolo do azar?
treze: aziago, agourento?
quiçá o riso da fortuna!
Henrique Duarte Neto
20 de julho é o Dia do Amigo e Internacional da Amizade para toda a turma do Plástico Bolha!
“Cultivo uma rosa branca
em junho como em janeiro
para o amigo sincero
cuja mão se estende franca.
E para o cruel que me arranca
o coração com que vivo
cardo nem urtiga cultivo:
Cultivo uma rosa branca.”
sábado, 19 de julho de 2025
Chico Diaz questiona os conceitos de loucura e sanidade no libertário fluxo poético do monólogo “A lua vem da Ásia” 🌙
No quadrado do palco, iluminado de forma tão delicada quanto poética por Rodrigo Belay, o ator dá vida e voz a um louco-são que, com grau adicional de mordacidade (contribuição do ator ao texto de Campos de Carvalho), dispara torpedos políticos, tingindo o romance com o verniz da atualidade. Direita? Esquerda? Centro? Que caminho seguir? O narrador criado por de Campos de Carvalho segue os caminhos imprevisíveis e insondáveis da própria mente, ciente de que cada mente humana é uma ilha isolada, cercada de loucuras por todos os lados.
Adaptador do romance para o palco, Chico Diaz tem intimidade com o texto de Campos de Carvalho. O ator já encenara “A lua vem da Ásia” em 2011. A montagem ora em cartaz no Rio de Janeiro é uma segunda versão do texto trabalhado pelo ator para a cena. Em rotação pelo Brasil desde 2021, essa remontagem se afina com a quentura e a fricção de um país polarizado e em ebulição política desde 2016. Não há panfletagem em cena, mas o lucidez alucinada de Diaz sabe e aponta os caminhos a serem seguidos, com direito a uma saudação ao revolucionário marxista Che Guevara (1928–1967).
É preciso ter prévio conhecimento da obra de Campos de Carvalho para poder fruir, em toda a plenitude, essa adaptação cênica que concilia suavidade e surrealismo, tangenciando o universo do Teatro do Absurdo. A mente desgarrada do “ser insano” é a válvula de escape, o passaporte que garante amplo trânsito por um mundo sem fronteiras. Em essência poética, “A lua vem da Ásia” é uma volta ao mundo dentro da própria cabeça. E a moral da história é que a liberdade da loucura é a única possível rota de fuga que leva à sanidade mental.
Além de iluminar consciências com o tom provocativo do texto, a lira do delírio de “A lua vem da Ásia” é veículo para a exposição do talento sobressalente de Chico Diaz. Longe de qualquer traço caricatural, a máscara facial do ator realça a imensidão da imaginação do louco lúcido que encarna em cena. Nada sobra. Nada tampouco falta. Ajudado por figurinos que evocam a leveza e a liberdade que movem o suposto “doido”, Diaz é a imagem poética da precisão em cena, transitando com naturalidade entre a memória de alguns fatos e a invenção de outros fatos pela mente delirante do personagem.
Campos de Carvalho chegou a caracterizar a narrativa de “A lua vem da Ásia” como um “gigantesco grito lançado sobre a vulgar balbúrdia cotidiana”. No sanatório geral de 2025, o grito do poeta reverbera nas palavras de Chico Diaz no centro de um palco que representa o mundo livre e são da imaginação.
Mauro Ferreira
Selva, de Otávio Campos
Já me acostuma
silêncio
escrever seu nome
exercício
desleal você
acredita na palavra
desleal
Otávio Campos
Um poema de Anelise Freitas
explodindo
um beijo a cada verso
e desmascarando
um grito a cada sexo
então ali eu descobria
que orgasmo
é boiar
dentro do próprio
corpo
Anelise Freitas
Um poema de Rosane Preciosa
Rosane Preciosa
Trecho de "Great white shark" — Matheus Hotz
and as the years went by
you realized
your body could not grow
bigger your eyes could not
see further your legs
could not run faster
what kind of fish
were you?
is that the game
we're playing?
Matheus Hotz
Um pouco da sabedoria de Dercy Gonçalves! 💩
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Um poema de Marcelo Torres
Entre céu ou inferno
escolho os dois,
vou com meu livro
preferido,
unhas aparadas,
junto das parcas
Marcelo Torres
Drama — um poema de Catharina Wrede
Olhou a navalha com espanto e fez que
ia segurar o pranto mas num grito agudo
caiu na calçada dura com o vestido sujo de
lama e o rosto triste de choro cegando os olhos
com as mão trêmulas em lábios de súplicas
erguendo a cabeça pra ver o que era:
apenas o amolador de facas.
Catharina Wrede
Arte em Neon de Keyla Sobral 😎
Keyla Sobral
Sinal dos tempos
Rainha Victoria não acreditaria
na tua existência, oh amor de Lesbos.
Hoje talvez seja difícil pensar
que alguma mulher mais jovem e livre
ainda não te tenha experimentado!
Henrique Duarte Neto
quinta-feira, 17 de julho de 2025
Um poema de Henrique Duarte Neto
o que Kafka pinta
como grotesco e absurdo,
não representa hipérbole,
é apenas o lado inumano
de nossa humanidade.
Henrique Duarte Neto
Vi homens — de Marcelo Torres
Vi homens
se transformando
em animais,
fuçavam
o lixo eletrônico
sobre mesas,
em frente
a modernos
computadores
Marcelo Torres
Nostalgia do absoluto
Há fragmentos de palavras
Escondidos em todas as coisas
Pertencem a uma linguagem esquecida
Onde habitam textos completos
E não é preciso ver para entender
Porque
Certos fantasmas são essenciais
Roberta Lahmeyer
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Um poema de Thiago de Freitas Peixoto
Existencialista:
na sua viagem
a vida é passageira
ou motorista?
Thiago de Freitas Peixoto
CHAMADA: ENVIO DE POEMAS PARA O PB!
A vida do espírito — de Roberta Lahmeyer
Hora de quietude
Que existe na sombra
De todo movimento
Código secreto
Que acalma o instante
Roberta Lahmeyer
Minas — de Ana Martins Marques
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridentes
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
Ana Martins Marques
terça-feira, 15 de julho de 2025
Me, my selfie, and I — de Rodrigo Garcia Lopes
Séculos de poesia pra dar nisso:
é o fim.
Cada verso, uma foto de mim
mesmo.
Este sou eu, em Berlim, andando a
esmo.
Neste em Dublin (ou seria
Sarajevo)? Enfim,
O que tenho pra dizer é isso
mesmo:
Meus versos viraram meros
selfies.
Rodrigo Garcia Lopes
Versos incertos — de Rodrigo Garcia Lopes
Que eu saiba, parece.
Pelo sim, pelo não, por exemplo:
vai ver. Certeza.
Nem tudo,
ao que tudo indica, no fundo,
digamos, um dia,
e pronto.
Só que não.
Tomara.
Quem dera.
O sentido é sempre impre-
visível (invisível palavra,
sua máquina do tempo).
Sob a garoa vagarosa do agora
uma vaga vaga vaga.
Toda referência se rarefez
no raro fog dos afetos.
E por acaso, quer dizer, às
vezes
ou mesmo antes,
chove uma luz verde, é claro,
que eu saiba, como sempre.
Rodrigo Garcia Lopes
Quadrilha — de Rodrigo Garcia Lopes
A poetisa pop
cutuca
com vara curta
o
poeta influencer tiktoker
que
posta no seu feed
uma
crítica decolonial
contra
um poeta neobeat
que
não se abate e cancela
o
trovador cabra da peste
que
não dá o braço a torcer
e
detona no Face a poeta trash.
Ninguém
tem tempo para escrever
um
poema que preste.
Rodrigo Garcia Lopes
segunda-feira, 14 de julho de 2025
“Senhora dos afogados” realimenta no Teatro Oficina o fogo sagrado de Zé Celso 🔥🔥🔥
Na química da natureza, a água traga e apaga o fogo. Na combustão
do teatro, na cena armada pela diretora Monique Gardenberg no
palco-corredor do Teatro Oficina, as águas míticas de “Senhora
dos afogados” trazem à tona e realimentam o fogo sagrado do
dionisíaco encenador José Celso Martinez Corrêa (1937–2023),
criador do Oficina e um dos mais relevantes arquitetos da cena
teatral brasileira em todos os tempos.
Em
cartaz no Oficina de sexta-feira à segunda-feira, na sede paulistana
do teatro projetado pela modernista arquiteta Lina Bo Bardi
(1914–1992), a encenação de “Senhora dos afogados” é a
primeira produção do Oficina após o encantamento de Zé Celso, há
dois anos, em decorrência de queimaduras sofridas em incêndio, numa
trapaça da sorte que corroborou a presença do fogo como elemento de
ascensão, crescimento e desaparecimento (físico) no destino do
artista.
Um
dos textos mais malditos da obra do dramaturgo carioca Nelson
Rodrigues (1912–1980), “Senhora dos afogados” era um desejo,
quase obsessão, de Zé Celso. Escrita em 1947, mas somente liberada
pela censura em 1954, a tragédia mítica — assim classificada na
dramaturgia desse escritor que deu contornos modernos ao teatro
brasileiro em 1943 com a montagem de “Vestido de noiva” erguida
sob direção do polonês Ziembinski (1908–1978) — simboliza no
Oficina uma interseção entre o estilo orgiástico das encenações
de Zé Celso e a arquitetura visual dos espetáculos de Monique
Gardenberg, diretora que se vale de recursos audiovisuais para criar
no palco imagens projetadas com forte aderência na mente do
espectador.
O
texto de Nelson está lá, íntegro, mas potencializado pela
convergência desses estilos e referências aparentemente díspares.
Na tela gigante colada numa das paredes, imagem das águas revoltas
de um mar banham a montagem e refletem a agitação existencial da
família Drummond, atormentada por mortes — todas relacionadas às
águas do mar que levam os corpos inertes ali jogados para a
eternidade — e desejos proibidos.
Não
por acaso, uma canção pouco lembrada de Roberto Carlos e Erasmo
Carlos (1941–2022), gravada por Wanderléa em 1969, reverbera na
cena, no registro original da “Ternurinha”, e se impõe na trilha
sonora pautada pela intensidade afinada com a alma das personagens.
Nessa trilha, cabem tanto um fado — “Nem às paredes confesso”
(1952), ouvido na voz referencial de Amália Rodrigues (1920–1999)
e Anabela — quanto uma valsa dilacerada de dor, “Súplica”
(1940), gravada por Orlando Silva (1915–1963) em período áureo.
Tudo
se afina com o texto em que, na trágica trama familiar de Nelson
Rodrigues, a ação opõe mãe (Dona Eduarda, personagem de Leona
Cavalli, atriz que vive momento de consagração com a autoridade de
ter sido revelada como a Ofélia de um já longínquo “Hamlet”
encenado por Zé Celso) e filha (Moema, vivida por Lara Tremouroux,
grande surpresa do elenco por manter a alta voltagem emocional do
espetáculo nas muitas cenas protagonizadas por Moema) em jogo de
amores, ódios e crimes que nem às paredes mãe, filha e demais
integrantes da família confessam.
Paira
na cena, com o olhar perdido e longe dos loucos, Dona Marianinha, a
matriarca interpretada com maestria por Regina Braga. Dona Marianinha
perdeu a sanidade por ação do filho, Misael, personagem de Marcelo
Drummond, peça também importante nesse jogo de lances arriscados e
passionais.
Na
ação dominada por mulheres, há também o fantasma da prostituta
assassinada na beira do cais, personagem de Sylvia Prado, e o luxuoso
coro das vizinhas interpretadas por Cristina Mutarelli, Giulia Gam,
Ligia Cortez e Michele Matalon. Com a acidez das línguas, as
vizinhas simbolizam em “Senhora dos afogados” uma representação
mais ferina do coro das tragédias gregas. Mas a tragédia acontece
no Brasil de hipocrisias e conservadorismo.
Imersa na plenitude emocional do elenco, a encenação do texto pelo
Teatro Oficina faz emergir o poder aliciante de um dramaturgo sem
papas na língua e que se revela ainda e sempre poderoso na cena
imagética de Monique Gardenberg, hábil ao reacender o fogo sagrado
de Fênix-Zé Celso sem apagar a própria carga autoral como diretora.
Mauro Ferreira
domingo, 13 de julho de 2025
Mercadão
João elogiava Marcela que elogiava Renato
que elogiava Bruno que elogiava Juliana
que elogiava Ronaldo
que não elogiava ninguém.
João montou uma revista, Marcela um
programa de TV a cabo,
Renato comeu Bruno, Bruno comeu um monte
de gente,
Juliana é resenhista num grande jornal,
e Ronaldo caiu num completo ostracismo
e se auto-intitula "o poeta maldito da
sua geração"
Pedro Tostes
sábado, 12 de julho de 2025
sexta-feira, 11 de julho de 2025
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Saudade
O sol
em faca
em foco
invade a casa pelo furo.
Tudo se torna visível
qualquer dor ou poeira
Corro.
Clareio nele
o poema que fiz
para as minhas avós
que nunca vi.
Será que o sol,
ou elas descendo do céu?
Edison Veoca
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Rascunho, poema de Laura Assis
...e o lápis correndo agora no papel
traçando aos poucos nos seus cabelos
detalhes no plano do nosso desejo
dizendo:
ninguém predestina o desencontro,
há sempre outra página,
o epílogo.
Laura Assis
terça-feira, 8 de julho de 2025
teatro — poema inédito de Lucas Viriato
quando estamos
no teatro contemporâneo
no melhor dos cenários
pelo feitiço de um período
não estamos no Rio
nem em Sampa nem em BH
não tem aqui nem acolá
quando estamos no teatro
estamos apenas
(estamos sempre
em Atenas)
Lucas Viriato
segunda-feira, 7 de julho de 2025
“Prima Facie” expõe a equação imprecisa entre cumprir a lei e fazer justiça, por Mauro Ferreira
No centro do palco, no jogo cenográfico de cadeiras e mesas, uma cadeira se impõe, alocada bem ao alto, solene, soberana. A cadeira elevada na cena de Prima Facie representa a autoridade austera de um juiz, senhor da razão e das decisões sobre vidas alheias. É sobre a Justiça — ou melhor, sobre o desequilíbrio da balança imprecisa da Justiça — que a dramaturga e advogada australiana Suzie Miller discorre no texto que estreou em Sidney em 2019 e que, desde então, vem arrebatando plateias e conquistando láureas mundo afora, inclusive no Brasil.
A peça arrebatou plateias inglesas e norte-americanas em 2022. Em palcos nacionais, Prima Facie se tornou um dos acontecimentos teatrais de 2024, impactando o público e alçando a atriz Débora Falabella ao topo do ranking das atrizes mais premiadas do ano passado. A ponto de o espetáculo continuar em cartaz com fôlego neste ano de 2025, no momento com sessões que vêm lotando o Teatro Clara Nunes, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), em temporada que se estenderá até o fim de julho.
Em cena, sob a direção de Yara de Novaes, Débora é Tessa, advogada implacável na defesa de homens acusados de agressões sexuais contra mulheres que Tessa, impiedosa, descredibiliza diante de um tribunal geralmente masculino com a frieza dos profissionais puro-sangue do Direito.
O turning point da dramaturgia de Prima Facie acontece quando Tessa deixa de ser a advogada calculista e invencível para virar a mulher vítima de estupro que busca justiça no tribunal, lutando para condenar o colega de trabalho que forçou uma relação sexual, usando inclusive a força física, no desenlace trágico de uma noite de bebedeira.
Quando o jogo vira e os papéis se invertem, Tessa personifica a própria “Girl on fire” do título da música de Alicia Keys, que se impõe na trilha sonora do espetáculo. É quando Tessa passa a sentir na pele e na alma machucadas os efeitos cruéis da equação imprecisa entre cumprir a lei (usando todas as brechas dessa lei para inocentar homens culpados, como ela sempre fizera com alardeado orgulho) e fazer justiça.
Quando uma mulher é ouvida em tribunal como vítima de crime de natureza sexual, a balança da Justiça pende sempre para o lado dos homens. Porque o sistema é patriarcal. Porque uma mulher terá sempre que provar inocência mesmo quando é ela quem acusa um réu já previamente absolvido pelas convenções machistas.
Algo tem que mudar, reconhece Tessa, dando a moral da história de Prima Facie, quando a advogada tornada vítima tem a certeza de que o jogo está perdido para uma mulher que busca reparação judicial após ter sofrido um estupro ou qualquer outro tipo de agressão sexual. E, sim, esse jogo está sempre perdido quando o réu tem dinheiro para contratar os advogados puro-sangue da raça a que um dia Tessa pertenceu.
A cenografia soturna e imponente de André Cortez acentua o papel opressor da Justiça. Tessa, que antes apequenava mulheres no tribunal para não “chegar em segundo” (eufemismo usado por ela para perder uma causa), agora sente o peso de se ver minimizada, esmagada, pelo sistema que usara com força. Mas a indignação de Tessa a engrandece aos olhos do espectador, cúmplice da dor da personagem interpretada com intensa veracidade por Débora Falabella sem qualquer ranço de melodrama ou sentimentalismo.
E é aí que Prima Facie se agiganta como dramaturgia. Ao fim de um jogo bem armado, o texto escancara as cartas marcadas de uma Justiça feita para absolver homens e condenar mulheres que, recusando o discurso intimidador da vergonha, se encorajam e ousam apontar o dedo na cara de estupradores e abusadores. Mulheres em busca de Justiça. E, sim, algo precisa mudar com urgência no sistema judiciário para que a balança não penda descaradamente para o lado dos homens mais ricos e mais canalhas.
Mauro Ferreira
Ficha Técnica
Texto:
Suzie Miler
Direção:
Yara de Novaes
Tradução:
Alexandre Tenório
Cenário:
André Cortez
Figurino:
Fabio Namatame
Iluminação:
Wagner Antonio
Trilha
Sonora: Morris
Consultoria
jurídica: Maria Luiza Gomes e Mateus Monteiro
Assistentes
de direção: Ivy Souza e Renan Ferreira
Coordenação
administrativa: Coarte
Assessoria
de Comunicação: Pedro Neves e Lucas Viriato / Clímax Conteúdo
Produção
Executiva: Catarina Milani
Direção
de Produção: Edson Fieschi e Luciano Borges
Realização:
Borges & Fieschi Produções e Antes do Nome
domingo, 6 de julho de 2025
despir-se
escrever é o ato público
mais íntimo
porque as letras tocam apenas
quando a pele se faz eu lírico
só o poeta nu
escuta as flores
Bruna Escaleira
sábado, 5 de julho de 2025
Verão
flamboyant desembainha sua raiva
nas flores vermelho-vivas;
agressiva ergue-se a garça
como a chama que se alteia.
albízias vão em busca de narizes,
raízes não esperam pelas águas.
desce trigo na minha líquida esperança.
Lasana Lukata
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Azul, de Cláudia Roquette-Pinto
Cláudia Roquette-Pinto
quinta-feira, 3 de julho de 2025
The road not taken
Momento límpido,
momento túrgido
de gestos nítidos,
fatais, cirúrgicos —
decepcionei-te:
não te colhi.
Provei teu leite,
mas não bebi.
Segui em frente
covardemente.
Queimei meu crédito.
(A covardia,
em certos dias,
tem lá seu mérito.)
Paulo Henriques Britto
quarta-feira, 2 de julho de 2025
Um poema de Paulo D'Auria
um haicai é um golpe de katana
poema curto, um tiro
um poema longo é uma batalha
poetas são guerrilheiros cegos
suicidas anônimos pela vida
a poesia é uma guerra
travada nos escuros do dia
a poesia é uma guerra
quase
quase perdida
Paulo D'Auria
terça-feira, 1 de julho de 2025
Doses
Anorexia de um cérebro gordo
Paradoxo invertebrado
Com cheiro de bolhas vertebradas
O caos precede o Caos
A morte precede a morte
Gritos em cortes
Pérolas do abismos surdo
prefiro ajudar com minha distância
E invisibilidade
Mas acabo visto
Dentro de órgão
Transplantado telepaticamente
Para fora de mim
Eu precedo o caos
Eu precedo a morte
Eu precedo eu
Em você
Mr. Oculus