Um pingo d’água estreita-se por entre as ramagens do flamboyant que se ergue monumental no
parque, até atingir o lago encoberto de folhas secas, pressagiando o outono. As
árvores se agitam ao pressentirem a chegada da chuva que, denunciada pelo céu
escuro, não tarda muito a chegar. Ao longe, crianças enlaçam-se numa ciranda e
brincam de roda sem se preocupar com o tempo. Seus pais, aflitos, apressam-se
em fazer com que elas se despeçam para que possam chegar a tempo, em casa. No
chafariz ao lado, habita uma ninfa de beleza bucólica e cujo olhar vago
contempla as pessoas que passam e sequer percebem a tristeza singular de seu
rosto. Ela segura uma jarra por onde sai um fio de água que desce chorosa até
encontrar-se com o mar de água doce que a espera no fundo daquela fonte. Os
pássaros não param de cantar. O vento torna-se mais violento. Os pingos são
cada vez mais constantes. Começa a chover. E eu, sentada em um banco, ouço o
choro imperceptível das águas: as gotas da chuva, em contato com os galhos, escorrem
até o lago, o chafariz, os guarda-chuvas, os bancos da praça central, até chegar
à areia que segue em trilha, em direção à saída do parque. Desvaneço-me ao
perscrutar meu coração e perceber que suas batidas acompanham o compasso da
chuva. Aos poucos vou me derretendo, vamos transformando-nos em uma coisa só,
num fio fluido, transparente, liquefeito. Transformo-me também em água e
acompanho seu fluxo, penetrando a terra para fertilizá-la. Num instante, penso
descobrir os segredos da vida. A mágica do acontecimento transcende a minha
normalidade. O mundo me sorri. Ressuscito minha alma a uma radical simplicidade.
Estou liberta. Sou toda água. As folhas se mexem conforme o leve toque dos
pingos que tamborilam, formando uma misteriosa música agradável aos meus
ouvidos. A dança da natureza se faz completa. Aos poucos, a chuva permite
passagem à luz que se infiltra por entre as ramagens, e atravessa os labirintos
intermináveis dos galhos até chegar ao chão. O silêncio reina na natureza. A
água da fonte restabelece seu curso normal e volta a cair apenas um filete
choroso de água do jarro abraçado pelos belos braços da ninfa. Não há mais
crianças. Todas já se foram e, como previsto, viram a chuva cair da janela de
suas casas. Estas ainda não se deram conta da graciosa simplicidade que há
nesse ato. Penetrei em minha própria realidade. A vida agora se apresenta
deliciosamente clara. Clara como a água. Porém não sou mais água. Nem eu mesma.
Fertilizei meu coração. Agora sou terra.
Élen Gonçalves
Élen Gonçalves é leitora-colaboradora do estado de Minas Gerais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário