Badaladas ecoam nas paredes frias da pequena cidade de
ladeiras. Velhas gordas com as cabeças cobertas por véus de renda preta se
debruçam nas janelas. Homens e mulheres num mutismo absoluto arrastam seus
sapatos nas calçadas, circundando a praça. Aos poucos, a banda triste se
aproxima. Um homem quase nu, lanhado, pregado numa cruz é carregado no meio da
rua por homens de capas roxas. As velhas, de lenço preto, estão por toda a
parte, nas janelas, nas ruas, misturadas à multidão. Tenho medo. O que estão fazendo?
Minha mãe me enche de respostas que não consigo entender, mas aceito-as. Por
que não tiram o homem dali? O som metálico da matraca estala nos ouvidos e ecoa
no silêncio. Sussurros. Cheiro acre de gente e velas. Quero ir embora. Tenho
medo da jovem loura, bonita, de manto roxo e a espada cravada no peito.
Devo ter olhado muitas vezes para aquela imagem antes que eu
pudesse formular pela primeira vez a pergunta.
– Mãe, o que é isso? Quem é essa mulher? Por que tem uma
espada fincada no peito?
– É a nossa mãe do céu e a espada simboliza a dor que ela
sente pela morte do filho que foi crucificado.
Ela contava sempre a mesma história, que me fascinava, num
misto de piedade e medo. Mas o que me fazia repetir a mesma pergunta mil vezes,
hoje sei, era entender por que as pessoas não tiravam a espada da mulher. Por
que aquela adoração pelo sofrimento alheio? Foi assim que aprendi a temer a
Deus. Minha noção de religião foi construída sobre as bases da igreja católica
apostólica romana mineira.
Hoje entendo quem teve a idéia de simbolizar assim a dor. É,
definitivamente, como sinto meu peito hoje – cravado por uma espada que ninguém
tira. Por que não consigo arrancá-la? Exibem a santa com a espada para ensinar
a sermos condescendentes com a dor. A santa e eu hoje somos a mesma pessoa. As
espadas estão atravessadas no meu tórax e não sei como tirá-las. Não me
ensinaram isso. A dor é para ser contemplada com resignação e respeito,
aprendi.
Estou no centro do meu quarto, vestida com a mortalha roxa,
com as lágrimas petrificadas no rosto e as espadas atravessadas. Doo inteira e
não tenho força para mais nada, a não ser recolher-me ao meu imobilismo.
Transformei-me na mulher horripilante de cera, com as espadas no peito e estou
com medo de mim. Há uma procissão de velhas nesse quarto agora. Ouço seus
passos arrastados, ouço as ladainhas, mas não enxergo ninguém. Não há rostos.
Novamente não há rostos, mas sinto a presença das carpideiras chorando.
(expiando os meus ou seus próprios pecados?) As beatas andam em círculo em
volta de mim, da mulher dor, da Senhora das Dores. Por que essas loucas não
arrancam minhas espadas e tratam das minhas feridas? Que prazer há nelas em
adorar meu sofrimento? Hoje entendo a imagem horripilante da santa com a adaga
cravada no peito e sua expressão resignada. Ela estava ali, sim, era para nos
rogar uma praga: “Espere que um dia você também terá as suas espadas”.
Me lembrei da menina passeando com a mãe no Jardim Botânico.
Ao avistar de longe a noiva tirando fotos, saiu correndo fascinada, gritando:
“Mamãe, a Cinderela! Mamãe, a Cinderela!” Mas a noiva, tão ocupada com a sua
própria fantasia, não teve nem um olhar para a menina. A criança ainda não
sabe, mas a mulher atravessada pelas espadas é o futuro da Cinderela. Mas isso
ninguém conta.
Júnia Azevedo
2 comentários:
Nossa Jú, que bonito isso! Muito bacana! Adorei! Beijos. Fernando.
Doído e bonito, Ju! :)beijo
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