As
cidades não são feitas dos degraus que compõem a rua em forma de escada ou da
perfeição dos arcos dos pórticos, ou ainda das lâminas de zinco que recobrem os
tetos. As cidades são feitas das relações entre as medidas de seu espaço e os
acontecimentos do passado. Assim Marco Polo se refere a Zaíra, uma das cidades invisíveis de
Calvino.
Visitando
recentemente algumas cidades italianas, percebi a dificuldade de se compreender
essas relações, nesse caso a numeração dos prédios em suas ruas. Em Turim, o hotel
em que minha prima e eu estávamos hospedadas ficava no número 166 da Via Ormea.
Pelo mapa que nos preocupamos em adquirir logo ao chegarmos à cidade, podia-se
observar que a rua era longa, mas a partir do ponto onde estávamos, número 2, a
distância a percorrer não seria mais do que duas ou três quadras. Aos poucos
fomos percebendo que a estranha numeração inclui letras que podem chegar ao
alfabeto inteiro a cada número, dependendo de quantos complementos um prédio
possua: loja, sobreloja, garagem, apartamento. Isso nos fez andar cerca de uma
hora na mesma rua até encontrarmos o nosso número, a essa altura tão desejado.
Acostumadas
que somos ao sistema métrico da numeração na maior parte das cidades
brasileiras, não sabemos os motivos que determinaram outras escolhas em outros
tempos. E apoiadas nesse conhecimento, comentamos com um motorista de taxi,
ainda em Turim, a dificuldade que tivéramos para nos localizar na cidade,
acrescentando a informação sobre o sistema brasileiro muito mais fácil de entender.
O homem se ofendeu, disparando que os brasileiros mal chegam e já se põem a
criticar o que encontram (ou melhor, o que não encontram), pensam que são os
sabidos e eles os ignorantes. Concluiu com uma enérgica preleção sobre a
facilidade deles para localizar um endereço – entre duas ruas conhecidas, por
exemplo, razão pela qual ele não se deixa enganar por falsas informações
daquilo que não existe. Depois disso, ficamos bem quietas e assim permanecemos
até descer do taxi.
Dias
depois, em Roma, novamente chamamos um taxi por intermédio da recepção do hotel
– na Itália o atendimento é feito somente por chamada, de maneira que se o
turista estiver na rua sem um telefonino, está perdido. Nosso destino era uma
igreja pouco conhecida dos roteiros turísticos onde aconteceria um espetáculo
de canto lírico, fincada no meio de um quarteirão localizado na zona norte da
cidade e que, felizmente, nosso condutor não teve problema para encontrar.
Falante e educado, o autista nos deixou em uma esquina próxima, mas teve a gentileza
de nos explicar que sendo ímpar o número procurado, estaria em ordem crescente,
enquanto a numeração do lado oposto seria par e decrescente. A confusão em
nossa cabeça aumentou ainda mais.
Porém,
na volta para São Paulo, me movimentei a pesquisar o assunto. Descobri que o
tema faz parte dos estudos da Geografia, modernamente da Geografia Urbana, que
inclui a divisão espacial das cidades e sua identificação para uso oficial, por
exemplo, para a correta cobrança dos impostos e taxas e distribuição de
correspondência pelos correios. No entanto, cada país ou cidade escolhe seu
método. Na Inglaterra as residências recebem nomes, em Nova Iorque os endereços
são orientados pelos pontos cardeais, de modo que é fácil saber se fica do lado
norte ou sul da cidade, em Brasília a divisão é feita pelo número do terreno
dentro de uma quadra e essa dentro do lote. Outros sistemas também são
encontrados, mas o que prevalece no ocidente é a numeração pelo sistema
métrico.
O que
impressiona é que no velho continente ainda persistam sistemas criados há
séculos, como o indecifrável método de numeração dos imóveis nas cidades. É
possível que em Turim e em Roma o sistema seja o mesmo de Veneza, onde a
numeração das casas ocorre a partir do edifício mais importante ao seu redor, o
que pode justificar que os números do lado ímpar sejam crescentes e do lado par
decrescentes. Tudo começa e termina no mesmo ponto, ou com o mesmo nome. Sei
que em nosso passado colonial essa questão foi resolvida mais ou menos dessa
maneira, quando se deu numeração às residências no centro do Rio de Janeiro a
partir do Paço Imperial, edifício que primeiro abrigou os fazeres
administrativos do reinado de D. João VI no Brasil. Acabei sabendo também que
atualmente as câmaras municipais de Portugal se encontram em fase de
modificação do modelo de endereçamento, adaptando-o ao sistema métrico.
Para
compensar, no mesmo velho continente é raro se encontrar um telefone público,
até para chamar um taxi. Ou se tem um telefonino, ou se está perdido no meio da
Via Ormea!
Dalva Bolognini
Nenhum comentário:
Postar um comentário