terça-feira, 1 de abril de 2014

O trópico possível


           A despeito do que me tornei, fui forjada. Sou uma arma. Não contra todos, quase sempre contra mim, mas se tem uma pessoa que participou ativamente do processo, ou melhor chegou quando recolhia os destroços e os meus olhos não sabiam o que viam porque estavam inchados, esse cara é o Henry Miller.

          Se eu o tivesse lido no segundo grau teria me livrado de muitos inconvenientes, naufrágios não teriam acontecido, nem emoções seriam despertadas. Eu estaria a salvo, saberia do que me defender, talvez tivesse me tornada alcoólatra, mas até hoje acho que sou, nunca sei a hora de parar, e tenho aqueles comichões irresistíveis de fazer tudo passar num gole, ou sejo tenho essa sensação benevolente com a bebida, ela é minha ambrosia.

           Henry Miller tornou minha vida menos solitária, dividiu o cinza e a desesperança, não cochichou, gritou o quanto as pessoas são egoistas, falhas , desumanas, sujas, lascivas e hipócritas, conspurcou a aurea bela de uma Paris idônea de contos de fadas, foi realista e nada utópico no seu Trópico de Câncer, livro que eu li no momento certo dos meus maiores desenganos. E é o livro que vou conservar na minha cabeceira de passagens memoráveis porque foi doutrinal. Ajudou a ver o quanto estava errada e o quanto eu era ridícula nas minhas idealizações, o quanto era culpada por cada lágrima vertida e por cada atropelamento do meu corpo físico, emocional e sobrenatural.

            Verdade que  não tenho esse desencantamento sábio do Henry de estar na cena e vivê-la como uma fruta em que se lambe o sumo e chupa o caroço, amargo ou não. Eu sou das que vivem o incomodo torcendo pra que seja fatal e me mate pelo susto, só que sigo com saúde invejável, e acordo pela manhã seguindo o ritmo normal das abluções matinais como se estivesse preparada, e não, nunca estou, mas finjo bem demais. Não há um dia  que eu não torça pra me encontrar com balas perdidas ou psicopatas que matam por motivo algum, eu daria uma bela vítima, não ofereceria trabalho e ainda seria criativa o suficiente pra opinar num jeito seguro de jamais conhecerem o meu carrasco. Em busca enfim de um crime perfeito para ambos.

           Mas sim, Henry, Henry meu salvador, meu guerreiro da escrita e das paixões terrenas e vulgares, o homem com o qual eu gostaria de dar umas voltas pela periferia e escutar Cartola tomando cerveja morna do calor. O homem mais sincero que já dei conta, e tudo o que ele me disse nem era bonito, tocante ou perfeito, mas era a verdade crua , a verdade que escondemos pra criar uma mentira tão difícil de manter ou encontrar, que nos faz reféns de nosso próprio enredo.

          Eu precisava ler este homem pra entender que o que eu escrevo não é fundamentalmente bom nem trágico, mas é a vida, a vida que tenho e desisti de acarinhá-la, empoá-la  ou esperar salvações que venham do céu ou de um estranho que diz me amar, ou de qualquer lado que não seja o meu mesmo, o que estou, como estou e permaneço.

           A vida é pra quem tem talento e as pessoas são completamente únicas, e de certa maneira indivisíveis e indecifráveis o suficiente pra não me aventurar porque gosto de segurança, e agora mais do que nunca sei o que não presta pra mim. Chega de jiló, amores perfeitos, eternidades e tudo que for cor de rosa. Eu não ando ácida, me tornei. E descobrir que  alguém falou um bocado de verdade nos seus livros sem tentar agradar ninguém  deu uma liberdade enorme e uma coragem avassaladora de ser quem eu  sou, escrever e dizer o que quero e me abandonar dos outros  só pra ter um pouco de paz, meu único sonho ideal.

           E eu posso morrer hoje porque já vivi tudo, já escrevi esse pobre réquiem, amei, fui abandonada, tive fome, frio, tive sede, medo, gargalhei e tive orgasmos, abracei quem gostava , li as melhores obras, escutei as músicas mais melancólicas, tomei sorvetes e porres, tatuei meu corpo, feri meu corpo,vi E o vento levou mais de 5 vezes, e mais de 10 vezes achei que tudo ía mudar, fui crente, descrente, me perdi de vista, e hoje nem sei, porque isso faz parte da minha mise en scène, não saber significa estar a salvo. Salve Henry Miller dos meus trópicos solitários e da minha irreparável tristeza.

E então num nível silencioso como meus passos e minha respiração ofegante a escrita também feita de confissão, meu tumor literal que extirpo pra não explodir dentro de mim, jogado fica aqui no papel, inerte.

Starla Pisces


Starla Pisces é leitora-colaboradora do Plástico Bolha, e tem mais textos publicados aqui no blog!

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