(por Yasmin Barros)
Entendendo que não poderíamos nos
omitir neste dia de celebrações, realizamos uma entrevista com o professor
Leonardo Bérenger, um dos maiores estudiosos de Shakespeare do Brasil,
professor da cadeira de Literatura Inglesa da PUC-Rio. Os registros dessa
entrevista você confere abaixo.
Após 400 anos de seu falecimento, Shakespeare continua imortal. A que
se deve a eterna necessidade de voltar às suas obras, estudá-las, debater e
refletir sobre elas?
É uma obra com muitos níveis de leitura. Sempre há algo que possa ser
revisto, revelado. Sem contar que uma obra tão longeva, capaz de cruzar toda a
Era Moderna e a Era Contemporânea e completar 400 anos de existência, não é
lida da mesma forma, por questões de tempo e de lugar. O cânone shakespeariano
não é recebido no Brasil da mesma forma que ele é recebido no Japão, nem da
mesma forma que ele é recebido na Inglaterra. Tudo isso são variantes, formas
de olhar para aquela obra, e essas formas de olhar é que estão sempre
alimentando os estudos shakespearianos. Além disso, várias são as formas de
experiência do texto shakespeariano: como literatura, através da leitura; como
teatro, através da performance; pela porta da adaptação – para o cinema, para
os quadrinhos, para mangá, para cordel... Tudo isso vai alimentando essa teia
de conhecimento que é o campo dos estudos shakespeariano, a necessidade de se
estudar a cultura que produziu essa obra, o início da Era Moderna inglesa.
Shakespeare nasce em 1564 e morre em 1616, então vive a virada do século XVI
para o século XVII, uma época de profunda transformação na Inglaterra, na
Europa, no mundo como um todo. Toda uma nova cosmografia, a “descoberta” da
América, a Reforma Protestante – tudo isso tem que ser levado em consideração
quando se vai falar de Shakespeare. A cultura que o produziu. Então, a
necessidade de se estudá-lo é imensa.
Ainda que falassem do período em que foram escritas, o período
elisabetano, as peças shakespearianas parecem sempre atuais. Não importa a
época e o lugar onde são lidas, sempre despertam conexões e parecem espelhar o
que se vive. Você acha que isso se deve a alguma capacidade atemporal da obra
do Bardo, ou que o mundo, em suas questões essenciais, pouco mudou nos últimos
400 anos?
Bom, essa é a característica do grande clássico. Todo grande clássico
sempre diz muito para quem lê, seja esse “quem lê” um leitor do século XVII, do
século XVIII ou do século XXI. No caso especificamente da obra shakespeariana,
existem sim, a meu ver, pontos de aproximação entre a cultura elisabetana e a
cultura contemporânea – uma época de profundas transformações, de quebra de
paradigmas religiosos, morais, científicos, de grandes ambivalências, contradições,
paroxismos. Há algo que aproxima a experiência do gênero como fluido – algo que
para os elisabetanos estava personificado na própria figura da Rainha Elisabete
I, uma monarca que se apresentava à sociedade de uma forma um pouco andrógena,
tentando transpor um discurso patriarcal que não via numa mulher a competência
e a habilidade para a governança, e ela a partir disso construiu uma imagem e
uma ambivalência de gênero. Pensando no palco, a própria figura do boy actor...
Isso também é uma coisa que é tão nossa, tão contemporânea.
Já mais de uma vez seus alunos te ouviram dizer que nunca fomos tão
elisabetanos. Quais relações existem entre a Inglaterra do século XVI com o
Brasil do século XXI que te levam a essa reflexão?
Nós nunca fomos tão elisabetanos por causa disso que eu falei
anteriormente, mas mais além. Você vê que os conflitos de poder, por exemplo,
que Shakespeare coloca no Júlio César, os perigos do mau governo, isso é uma
coisa tão forte na obra shakespeariana e tão patente na nossa vida, se você
pensar no contexto brasileiro de agora. A consciência que Shakespeare tinha dos
efeitos nocivos do mau governo, isso é tão claro para nós que somos
brasileiros, sobretudo por toda a crise política que estamos passando. O perigo
de um poder que fica pulverizado na mão de vários, o lugar do poder como um
lugar vago, como isso é perigoso, como dá margem a usurpadores, a golpes, a
oportunistas, a aventureiros. O Júlio César fala tanto disso – o mau governo e
o governo fraco são socialmente muito perigosos. No Ricardo II isso também fica
muito claro, no Henrique VI isso é muito debatido, esse perigo do governo
fragilizado, como ele fica vulnerável. As contradições que nós carregamos estão
muito no Shakespeare.
Você acha que essas relações, se divulgadas, podem levar o público a
procurar mais a obra shakespeariana, numa busca de maior compreensão da nossa
situação atual?
Sem dúvida. Se as aproximações entre a cultura elisabetana, a cultura
que produziu a obra shakespeariana, e a contemporaneidade são divulgadas para o
estudante, o estudioso, o espectador, o leitor, isso sem dúvidas fomenta a
leitura e a apreciação, a fruição da obra do Shakespeare, claro. A pessoa
começa a construir sentidos que dizem respeito à sua realidade, a si mesmo, embora
eu ache que isso aconteça mesmo que você não alerte, mesmo que a pessoa não
assista a uma aula, uma palestra ou leia um livro. Ela vai se ver porque essa é
outra grande característica do clássico, decorrente da já mencionada capacidade
de se atualizar. Ela se dá justamente porque existe essa facilidade do
espectador ou do leitor em se identificar com aquilo que ele está lendo ou
assistindo – a partir disso, o texto se atualiza, se contemporaniza ao leitor
ou ao espectador.
Quais são as suas expectativas para os próximos anos, a partir dos
eventos e da divulgação dos 400 anos da morte de Shakespeare?
Eu acho que o Shakespeare vai ser cada vez mais centralizado no cânone
literário mundial. Aqui no Brasil ele vem ganhando força como campo de estudo. Pensando
na própria PUC, o interesse que o Shakespeare desperta nos alunos vem sendo
cada vez maior. Mas não só na PUC. Falando aqui do contexto do Rio de Janeiro,
temos a professora Fernanda de Medeiros na UERJ, a professora Marlene Soares
dos Santos e o professor Roberto Rocha na UFRJ. Estendendo para todo o Brasil,
temos a Professora Liana, no Paraná, acompanhada por um grupo grande; a
Professora Aimara e um grupo de estudiosos em Minas Gerais; O CESH (Centro de
Estudos Shakespearianos), no qual eu hoje em dia ocupo a função de coordenador
de pesquisa, cada vez mais atuante, promovendo mais eventos... Eu acho que a
perspectiva é muito profícua para o Shakespeare no mundo, e no Brasil em
especial. Então as minhas expectativas são muito positivas, muito otimistas
para a obra do Shakespeare. Acho que as pessoas têm se interessado mais por
ele, seja no mundo acadêmico, seja no mundo daquilo que a gente chama de “leitor
comum”, e no mundo artístico. Shakespeare vem sendo mais montado do que era uns
anos atrás aqui no Brasil. Ele vem sendo mais adaptado para outros meios
culturais. A obra do Shakespeare tende a se popularizar.
Hoje é também aniversário de 400
anos da morte de Miguel de Cervantes, autor da aclamadíssima obra O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha.
Ainda assim, as celebrações a Shakespeare são inegavelmente maiores e mais
significativas. O que, na sua opinião, causa essa importância tão maior dada ao
Bardo?
Eu consigo pensar em algumas determinantes. O primeiro aspecto é claro
que é a dominação da cultura anglófona no mundo como um todo. Shakespeare é um
autor inglês, e a língua inglesa é a língua franca da contemporaneidade. Então,
evidentemente que ser um produto de uma cultura anglófona é sempre uma força,
um músculo altamente propulsor da popularização de uma obra, de um autor. Outro
aspecto foi o uso que foi feito do Shakespeare durante o imperialismo britânico
do século XIX na conquista de territórios pela África, pela América Central,
pela Ásia, em que Shakespeare era levado como uma bandeira da civilização. Os
ingleses chegaram à Índia, dominaram, e ensinavam, liam, produziam Shakespeare.
Ele era usado como símbolo de uma europeização daqueles povos considerados
selvagens, primitivos, com uma cultura que não tinha o menor valor e que
deveria ser substituída por uma cultura outra. O terceiro grande aspecto eu
penso no cinema. Se o cinema deve muito a Shakespeare, Shakespeare também deve
muito ao cinema pela popularização de sua obra. A quantidade de adaptações
cinematográficas da obra shakespeariana é incalculável, desde o tempo do cinema
mudo, desde o nascimento do cinema. E o cinema é um produto que se espalha
mundo afora, consumido pelas mais diferentes culturas. Então Shakespeare
realmente ganhou o mundo, ele é um autor global.
Quais são os eventos mais esperados dentro das celebrações dos 400
anos?
Além daquilo que nós já tivemos – a Mostra Bosque, na PUC, que teve por
tema os 400 anos da morte do Shakespeare –, temos vários eventos agendados. Pensando
nos mais imediatos, há, por exemplo, um evento na Biblioteca Nacional, agora nos
dias 10 e 18 de maio. Teremos também as Jornadas Shakespearianas, um evento
interinstitucional entre a UERJ, que vai acolher o Shakespeare no dia 7 de
junho, a PUC, que vai acolhê-lo no dia 14 de junho, e a UFRJ, que vai acolhê-lo
no dia 22 de junho, com a presença de outros pesquisadores de outros lugares do
Brasil, além de escritores que trabalharam com adaptações do Shakespeare, como
o Rodrigo Lacerda. No segundo semestre a gente tem uma outra Jornada, mas essa
na USP. Vale também lembrar dos lançamentos de livros – o livro sobre comédias
shakespearianas, da professora Marlene Soares dos Santos; um livro que ela e eu
estamos organizando sobre tragédias; a reedição do livro Shakespeare sob
múltiplos olhares, organizado pela
professora Liana Leão, da Universidade Federal do Paraná. Há vários eventos, e
vale a pena estar atento a todos, porque todos foram pensados com muito carinho
para o público brasileiro e principalmente para o estudante.
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