“Romeu! Romeu! Por que há de ser Romeu?
Renega teu pai e recusa teu nome,
ou, se não quiseres, jura somente que me amas
e não serei mais uma Capuleto.
[...]
É só o seu nome que é meu inimigo.
Mas você é você, não é Montéquio.
Afinal, o que é um Montéquio? Não é pé, nem mão,
nem braço, nem rosto, nem parte alguma
pertencente a um homem. Toma outro nome!
O que há num
nome? O que chamamos
rosa
teria o mesmo cheiro com outro nome.
E assim, Romeu, chamado de outra coisa,
continuaria sempre a ser perfeito
com outro nome. Romeu, deixa esse nome.
E em troca dele, que não faz parte de ti,
toma-me a mim, que já sou toda sua.”
(Romeu e Julieta, ato II, cena ii –
William Shakespeare. Edição: Ana Flávia Barbosa)
“Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um
fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, pangaré magro e galgo
corredor. (...) Nosso fidalgo beirava os cinquenta anos. Era de compleição
rija, seco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça. Dizem
que tinha por sobrenome Queixada, ou
Queijada, que nisso há desacordo
entre os autores que escreveram sobre o caso, embora por conjecturas
verossímeis se entenda que se chamava Quixana.
Mas isso pouco importa para nossa história: basta que em sua narração não se
saia um ponto da verdade.”
(Dom Quixote de la Mancha, pág. 61 –Miguel
de Cervantes. Tradução: Ernani Ssó)
O que há num nome? Se a rosa teria o
mesmo perfume com outro nome, se Romeu poderia ainda ser perfeito sem se chamar
Romeu, e se Dom Quixote pode ser Quixote, ainda que antes fosse Queixada, ou
Queijada, ou Quixana, de que serve um nome?
Shakespeare e Cervantes foram ambos
alvos de teorias conspiratórias. As acusações sugeriam inexistência, falsidade
ideológica, fraude, ou qualquer uma dessas coisas que o ser humano trata de
inventar para duvidar de seu passado.
O cúmulo disso que gosto de chamar
de piração conspiratória veio quando
alguém decidiu declarar que Shakespeare e Cervantes eram a mesma pessoa.
Certamente um gênio sem igual, capaz de dominar o inglês, o espanhol, o latim e
um bocado de francês com mestria suficiente para, sozinho, produzir pelo menos 58 peças, 156 sonetos, 2 poemas narrativos, 9 novelas, um número desconhecido de poemas, registrar
mais de 2.000 palavras da língua inglesa, além de lutar uma batalha em Lepanto e ser, por mais de 450 anos, símbolo
nacional de dois países ao mesmo tempo. Para uma teoria tão completamente alucinada,
logicamente o argumento fundador deveria ser muitíssimo forte, não? Claro que
era: ambos morreram no mesmo dia – 23 de abril de 1616.
O que os fundadores da piração conspiratória esqueceram de levar
em conta é que, naquela época, o calendário vigente na Inglaterra não era o
gregoriano, mas sim o juliano. A morte de William Shakespeare, portanto, hoje
celebrada no dia 23 de abril – junto com seu aniversário – teria, na realidade,
ocorrido no dia 03 de maio. A de Miguel de Cervantes, por sua vez, parece ter
acontecido no dia 22 de abril, e só foi registrada no dia 23 porque essa foi a
data de seu enterro. Por fim, o mais provável é que a data que hoje usamos para
celebrar os dois autores não seja, na realidade, a data de morte de nenhum
deles.
Mas o que há numa data? O dia 23 de
abril o mesmo valor teria se não fosse, na verdade, a data de óbito de nenhum
dos dois. Afinal, faz tanto tempo que decidiram celebrar ambos os autores nesse
dia que não faz nem sentido tentar contradizer – aliás, nada melhor para dois
questionadores dos limites entre realidade e ficção, loucura e sanidade, do que
uma data real que na verdade é ficcional.
Tentar deslocar cada autor para a sua
data original espalharia muito as atenções. Tudo perderia força. Parece ter
havido um grande (e muito valioso) esforço universal para centralizar num só dia a memória do auge da humanidade. Não importa se dizem por
aí que foi 22, ou 03, e que nisso haja desacordo entre os autores que
escreveram sobre os casos. Por conjecturas verossímeis, se entende que tenha
sido o dia 23 de abril, e pouco importam os outros debates para a nossa
história: basta que em sua narração celebremos The Bard e El manco de Lepanto.
Yasmin Barros
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