segunda-feira, 25 de abril de 2016

What's in a date?


“Romeu! Romeu! Por que há de ser Romeu?
Renega teu pai e recusa teu nome,
ou, se não quiseres, jura somente que me amas
e não serei mais uma Capuleto.
[...]
É só o seu nome que é meu inimigo.
Mas você é você, não é Montéquio.
Afinal, o que é um Montéquio? Não é pé, nem mão,
nem braço, nem rosto, nem parte alguma
pertencente a um homem. Toma outro nome!
O que há num nome? O que chamamos rosa
teria o mesmo cheiro com outro nome.
E assim, Romeu, chamado de outra coisa,
continuaria sempre a ser perfeito
com outro nome. Romeu, deixa esse nome.
E em troca dele, que não faz parte de ti,
toma-me a mim, que já sou toda sua.”
(Romeu e Julieta, ato II, cena ii – William Shakespeare. Edição: Ana Flávia Barbosa)

“Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, pangaré magro e galgo corredor. (...) Nosso fidalgo beirava os cinquenta anos. Era de compleição rija, seco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça. Dizem que tinha por sobrenome Queixada, ou Queijada, que nisso há desacordo entre os autores que escreveram sobre o caso, embora por conjecturas verossímeis se entenda que se chamava Quixana. Mas isso pouco importa para nossa história: basta que em sua narração não se saia um ponto da verdade.”
(Dom Quixote de la Mancha, pág. 61 –Miguel de Cervantes. Tradução: Ernani Ssó)

O que há num nome? Se a rosa teria o mesmo perfume com outro nome, se Romeu poderia ainda ser perfeito sem se chamar Romeu, e se Dom Quixote pode ser Quixote, ainda que antes fosse Queixada, ou Queijada, ou Quixana, de que serve um nome?
            Shakespeare e Cervantes foram ambos alvos de teorias conspiratórias. As acusações sugeriam inexistência, falsidade ideológica, fraude, ou qualquer uma dessas coisas que o ser humano trata de inventar para duvidar de seu passado.
            O cúmulo disso que gosto de chamar de piração conspiratória veio quando alguém decidiu declarar que Shakespeare e Cervantes eram a mesma pessoa. Certamente um gênio sem igual, capaz de dominar o inglês, o espanhol, o latim e um bocado de francês com mestria suficiente para, sozinho, produzir pelo menos 58 peças, 156 sonetos, 2 poemas narrativos, 9 novelas, um número desconhecido de poemas, registrar mais de 2.000 palavras da língua inglesa, além de lutar uma batalha em Lepanto e ser, por mais de 450 anos, símbolo nacional de dois países ao mesmo tempo. Para uma teoria tão completamente alucinada, logicamente o argumento fundador deveria ser muitíssimo forte, não? Claro que era: ambos morreram no mesmo dia – 23 de abril de 1616.
O que os fundadores da piração conspiratória esqueceram de levar em conta é que, naquela época, o calendário vigente na Inglaterra não era o gregoriano, mas sim o juliano. A morte de William Shakespeare, portanto, hoje celebrada no dia 23 de abril – junto com seu aniversário – teria, na realidade, ocorrido no dia 03 de maio. A de Miguel de Cervantes, por sua vez, parece ter acontecido no dia 22 de abril, e só foi registrada no dia 23 porque essa foi a data de seu enterro. Por fim, o mais provável é que a data que hoje usamos para celebrar os dois autores não seja, na realidade, a data de morte de nenhum deles.
            Mas o que há numa data? O dia 23 de abril o mesmo valor teria se não fosse, na verdade, a data de óbito de nenhum dos dois. Afinal, faz tanto tempo que decidiram celebrar ambos os autores nesse dia que não faz nem sentido tentar contradizer – aliás, nada melhor para dois questionadores dos limites entre realidade e ficção, loucura e sanidade, do que uma data real que na verdade é ficcional.
Tentar deslocar cada autor para a sua data original espalharia muito as atenções. Tudo perderia força. Parece ter havido um grande (e muito valioso) esforço universal para centralizar num só dia a memória do auge da humanidade. Não importa se dizem por aí que foi 22, ou 03, e que nisso haja desacordo entre os autores que escreveram sobre os casos. Por conjecturas verossímeis, se entende que tenha sido o dia 23 de abril, e pouco importam os outros debates para a nossa história: basta que em sua narração celebremos The Bard e El manco de Lepanto.

Yasmin Barros

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