segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Tudo tinha ruído


(baseado no relato de B. C. S.)

Eu gostava do cheiro de cigarro. Ainda criança, lá pelos oito, nove anos, imaginava a fumaça do cigarro da minha mãe subindo disforme até se transformar numa nuvem lá no céu. Eu pulava atrás das baforadas quentes que se perdiam pelo ar. Quando encontrava um maço esquecido, roubava um cigarro pra criar minha fantasia preferida: Sherlock Holmes.

Eu era um detetive sério: investigava cada ruído da noite, todos aqueles mistérios noturnos. “Os mortos levam muito tempo pra deixar o nosso plano. Eles não sabem que morreram”, minha irmã disse depois da morte do meu vizinho. Encuquei. O mínimo barulho e eu já imaginava o espírito do vizinho invadindo a casa errada. Meu pai não entendia. Deixa disso, essa história de fantasma não existe, mas foi assim que ganhei uma cama no quarto dos meus pais.

Com a mudança de quarto, novos barulhos: o motor da geladeira apitando na cozinha, os passos pesados do meu pai indo pro banheiro de madrugada, o choro contido e intermitente da minha mãe. Ela sentia muita dor nas pernas. Meu pai dizia culpava o cigarro. Isso aí é um veneno, Bruno, e fumando assim, um cigarro atrás do outro, pode acontecer coisa ainda pior.

Geralmente, a gente passava um pouco de álcool nas canelas e nas coxas dela, massageava e esfregava até evaporar todo o álcool, até a pele ficar bem quente, e ela sentia alívio. Mas naquela noite o choro estava diferente: mesmo passando álcool nas pernas, ela não acalmava. 

Vou levar a sua mãe lá no hospital, tá? Meu pai chamou uma ambulância e ó, fique com a sua irmã. Não saiam até a gente voltar e eu obedeci. Fiquei em casa com minha irmã, esperando, esperando, mas não voltavam. Eu dormi e acordei com minha irmã dizendo que precisávamos ir pra casa do meu primo. Eu até gostei. 

Nunca tinha ido pro apartamento do Marinho. Ele morava longe de casa. Minha irmã, que já tinha carteira de motorista, pegou o carro do meu pai e dirigiu até lá. Tive que ir no banco de trás. Eu não quero perder a minha habilitação, Bruno, não faz nem um mês que eu peguei. Não contestei.

No caminho, sempre que eu perguntava quando nossos pais voltariam pra casa, a Renata desconversava. Voltam rápido, fique tranquilo, mas não voltaram rápido. 

Fiquei seis dias na casa do Marinho. Sempre que um tio ou tia entrava no apartamento, olhava primeiro pra minha irmã, com cara de pânico. Quando finalmente me notavam, eles disfarçavam, sorriam e como você tá, guri? Tô bem, tio, mas eu desconfiava, queria saber o que estava acontecendo. Sabia que escondiam alguma coisa de mim. Não entendia aquilo. É da minha mãe que estão falando. Minha mãe! Comecei a sentir raiva deles, raiva de ser criança. Se fosse adulto, saberia a verdade, e poderia dividir as minhas preocupações com eles. Sempre que disfarçavam pra falar comigo, eu sentia mais raiva de ser uma criança, de ser o único que não podia saber a verdade, de ser invisível e ignorado, como se não pudesse, não tivesse o direito de sentir tristeza. 

No fim do sétimo dia, minha irmã e eu fomos ao hospital. A mamãe tá bem, Bruno. Lembra aquela dor que ela sentia na perna e pela janela do carro eu olhava pras nuvens no céu e imaginava que ela continuava soltando suas cortinas de fumaça. Os médicos fizeram de tudo pra ajudá-la, mas a mamãe fumou muito, você sabe, mas não, eu não sabia de nada. Agora, não queria saber de mais nada. Quando chegamos ao hospital, antes de entrar no quarto, me contaram que a sua mãe teve que amputar as pernas, Bruno, infelizmente. Foi melhor pra ela. Melhor pra ela? Meu pai me subiu num abraço apertado. Foi esse maldito cigarro e continuou me apertando, encharcando a minha camiseta e quase me sufocando.

Não chorei. Continuava com raiva. Tiraram o meu direito de saber a verdade, de sofrer como eles, de ajudar a minha mãe. Quando entrei no quarto, ela parecia bem, me recebeu com um sorriso. Deitei ao seu lado. Ela levantou um pouco o lençol e vi as pernas um pouco menores, enroladas por gaze e esparadrapos, terminando um pouco acima dos joelhos. Um silêncio profundo inundou o quarto. Meu pai e minha irmã olhavam pra mim, acho que esperavam uma crise de choro, de desespero. 

Não perceberam que tudo tinha ruído.

Julian Guilherme

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