Naquela manhã
andava tudo em alvoroço dentro dele. Acordara com um sussurro que o fizera
gritar de medo, “Libertas Quæ Sera Tamen”.
Julgou ter flagrado um rabicho do eco, que rapidamente desapareceu numa fissura
da parede do quarto como se fosse uma lagartixa. Apesar de ter ouvido,
nitidamente, “Libertas Quæ Sera Tamen”,
desconfiou que seu inconsciente tivesse algum problema de dicção e adaptou a
frase ao que lhe pareceu fazer sentido: “Liberta que serás também”. Tinha que
fazer algo a respeito. Afinal, não era todo dia que ouvia vozes.
Na verdade, ouvia vozes o tempo todo: A televisão loquaz, as
pessoas no ônibus, a buzina histérica dos carros na rua, e a irmã; única
sobrevivente da família, que ele visitava duas vezes por semana no hospital
(segundo o médico, ela não resistiria por mais um mês à doença implacável, uma
orquídea irremovível de tumores que se instaurara em seu organismo e que se
alimentava de vida). Mas uma voz de dentro, assim, tête-à-tête consigo mesmo,
cheia de sonoridade e convicção foi a primeira vez que ele ouviu: “Liberta que
serás também”. Como nunca soube o que fazer da própria vida, resolveu acatar a
ordenança interior:
- Olha, Ana Clara, eu
acordei com isso na cabeça. Uma frase tão bonita deve ter um significado.
Pensei muito antes de vir aqui hoje. Você não me tolera desde a adolescência,
não me suporta nem mesmo agora, quando venho te fazer uma simples visita. Por
que não gosta de mim? Por que faz essa cara? Você não pode me acusar de ter
sido um irmão frio. Lembra como eu era carinhoso? Lembra que às vezes você
chegava em casa chorando sem me dizer o motivo e mesmo assim eu me compadecia e
chorava também e tentava te abraçar e te morder? E meus beijos e lágrimas não
beiravam a volúpia, de tanto amor? O que eu recebia em troca? A mesma careta
indisfarçável de nojo que você faz agora. Pois a partir de hoje decidi ficar em
casa e ter notícias suas apenas pelos médicos. “Liberta que serás também”. É
isso aí, libertarei você da minha presença; embora goste muito da sua companhia
e de passear pelos corredores deste hospital, que tem uma ótima máquina de café
e enfermeiras solícitas que tratam os enfermos com tanta dignidade, não dispensando
um sorriso amistoso a nós, parentes, que nos sentimos, assim, um pouco melhor acolhidos
neste ambiente de paredes frias e luzes brancas. Pode comemorar sua liberdade.
Assim espero me libertar também, nem sei de quê. Quem não quer ser livre? Eu
também quero; embora nada me prenda. “Liberta que serás também”.
- Seu idiota. “Libertas Quæ Sera Tamen” está em latim e
significa: “Liberdade, ainda que tardia”. Tem a ver com os Inconfidentes,
Tiradentes. Burro. E essas enfermeiras que você tanto elogia riem da sua cara o
tempo todo e você nem percebe. Outro dia uma delas, sim, essa de cabelo curto
por quem você mal consegue dissimular sua paixão ridícula, veio me perguntar
qual é o seu problema. Entende? Queria saber se você é perturbado! Essa
expressão de melancolia e esperança que você se esforça para simular, franzindo
a testa e apertando os olhos toda vez que ela passa por nós, um James Dean calvo e enrugado de 51 anos, não transmite nada além de
cansaço e pena. Não à toa, ontem, depois que você foi embora, escutei as
enfermeiras às gargalhadas: “Cruz credo, quem gosta de pau velho é cupim”. Digo
isso porque sou sua irmã e quero o seu bem, não suporto ver alguém se expondo
tanto ao ridículo. Essas roupas amassadas e desfiadas que você deu para vestir
agora, em vez de transmitirem um estilo libertário e transgressor; denunciam,
até para os mais ingênuos, que você está desempregado e sem dinheiro. Quando as
pessoas veem um homem da sua idade usando uma calça jeans rasgada, elas não pensam: “Olha, que cara despojado e moderno.
Não. Elas imaginam que você foi atacado por um cachorro, ou que caiu e se
machucou ao descer do ônibus. Não percebe? Preste atenção: Ninguém se perfuma tanto
assim para ir de dia a um hospital, ainda mais esse perfume doce que você deve
ter pegado da nossa avó falecida, capaz de matar um diabético à distância. Mas
faça o que quiser, só digo isso porque quero o seu bem.
Assim os dois se
tratavam. É claro que ele não deixou de visitá-la, queria ser o último a
insultar, mas sempre recebia o contragolpe, o que estendia a batalha fraterna.
Ambos se irmanavam na provocação e no insulto. A irmã vivia o criticando por
ele nunca ter se casado, tido filhos (sendo que ela mesma nunca engravidou),
acusava-o de ser infeliz de nascença, inepto social e desprovido da capacidade
prosaica de ter e de dar prazer. Para Ana Clara, o mundo era tão injusto; pois
ela, que sempre fora bem-sucedida – tinha uma carreira, era advogada de uma grande
empresa, e, não fosse a doença, provavelmente teria se casado com Romualdo, com
quem namorou por sete anos. Sim, ela, que pelo menos vislumbrara a felicidade
como algo tangível no futuro, morreria inexoravelmente em breve, já o irmão...
Ana Clara nunca completava as reticências, segura de que ele preencheria a
lacuna do discurso interrompido da pior forma possível. Invariavelmente o irmão
saía devastado do quarto com cheiro de éter, tentando esconder a raiva, a dor e
a humilhação, principalmente da enfermeira de cabelos curtos, por quem, de
fato, se enamorara. Quem via aquele ser encurvado, de olhos esbugalhados e
úmidos caminhando pelos corredores do hospital pensava que ele sofria por
testemunhar a vida da irmã se esvair rapidamente; ninguém imaginava que o irmão
sentia na alma os golpes recebidos numa batalha feroz, e que remoía vinganças.
Há muitas maneiras
de se vingar de uma irmã em estado terminal sem que se pareça cruel. Uma delas
é saber que a mana querida adora, desde pequena, bombons Sonho de Valsa, e
dizer que comprou duas caixas, mas:
- Cadê meus bombons?
- Comprei duas caixas
como havia prometido; mas lembrei que o médico disse que açúcar não é
recomendável. Juro que comprei, estão lá em casa. Quando você sair daqui...
- Porra, eu não vou
sair daqui, eu vou morrer!
- Não fale assim,
maninha, sempre há esperança.
Outra boa desforra é pedir emprestada a câmera profissional
do ex-namorado dela e fotografá-la nesse estágio, vela derretida no leito do hospital,
irreconhecível, uma boneca do Farnese de Andrade cheia de escaras na pele e a
morte no coração quebrantado, que mal tem forças para protestar:
- Não.
- Olhe para cá,
sorria, por favor, sorria. Você não tem o direito de privar as pessoas que te amam
de guardar uma recordação. Deixe de ser boba, vou tirar apenas duas cópias, uma
para mim e outra para o Romualdo. Ele está noivo, você sabia? Mas jurou para
mim que nunca vai esquecer você. Sorria. Sorria.
Naquela mesma
tarde, enquanto aguardava a revelação da foto numa lojinha de rua, recebeu uma
chamada no celular: Ana Clara havia morrido. Foi para casa feliz por ter
conseguido chorar com sinceridade. Fez até uma espécie de santuário em
homenagem à irmã dentro de uma gaveta do armário. Abriu as caixas de Sonho de
Valsa e os espalhou no fundo, deitando a foto da irmã por cima.
Todas as tardes,
solene, ele abria a gaveta e, embora não gostasse de doces retirava um bombom e
puxava lentamente as duas extremidades da embalagem de plástico cor-de-rosa. O
bombom girava sobre o próprio eixo como se fosse um planeta gay, antes de ser
desvelado. Deixava o chocolate derreter na boca, sem mastigar, enquanto olhava
para o retrato da irmã, tentando, sem sucesso, sentir-se culpado por ter sido o
último a desferir um ataque. Aquela cerimônia era quase religiosa, uma espécie
de eucaristia em homenagem à Ana Clara.
Foi numa dessas
cerimônias que veio a pontada. A dor era inconfundível. Uma orquídea crescera
dentro dele. Os avós haviam morrido disso, os pais, os tios e a irmã. Aceitou
sem dramas o próprio destino, até com certo alívio: “Liberdade, ainda que
tardia”, pensou. Procurou pela casa uma escova de dente, pijama, sabonete,
cobertor, sandálias; pôs tudo dentro da mala e partiu de bom grado para o hospital,
com a certeza de que jamais voltaria. Aliás, quase voltou, ao constatar que
havia esquecido o pente, depois sorriu do lapso: “Coisa mais inútil, daqui para
frente”. O médico perguntou se ele preferia quimio ou rádio, como quem diz:
“Escolhe a balinha”.
No hospital
passava os dias pensando na família que não teve, nos filhos. Como seriam? A
orquídea crescia na proporção em que ele definhava. Sentiu uma solidão atroz,
antes pelo menos se distraía nos embates com a irmã. A irmã! Claro, como podia
morrer e deixá-la esquecida na gaveta do armário? Implorou que trouxessem a
fotografia de Ana Clara. Que ficassem com os bombons, podiam pegar o que
quisessem na casa, podiam até ficar com a casa desde que lhe trouxessem o
retrato.
Naquela manhã
andava tudo em alvoroço dentro dele, um alvoroço diferente, o último. Acordou
com um sussurro: “Senhor, me pediram para lhe entregar essa foto”. Tudo em
alvoroço, seu corpo agora era uma estufa perfeita onde muitas orquídeas
grassavam. Apesar da vista embaçada, conseguiu identificar a enfermeira de cabelos
curtos entrando no aposento, estendia-lhe uma fotografia. Era a primeira vez
que ela fora escalada para ficar naquele quarto. Quando viu o paciente, irmão
da irmã, todo carcomido pela doença, ela, apesar de acostumada com o sofrimento
alheio, não conteve a lágrima:
- O senhor era tão bonito.
- Pensei que você me
achasse velho e perturbado.
- Velho? O senhor era
um gato, cheguei até a comentar com a sua irmã. As outras enfermeiras brincavam
comigo porque eu corava cada vez que você aparecia.
Ele olhou para a foto da irmã, e ela sorria. Sorria.
Thiago Picchi
Thiago Picchi ficou em primeiro lugar na categoria prosa do 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.
Lembramos que no próximo dia 17, quinta feira, às 17:00 hrs, será a entrega do 5º Prêmio Paulo Henriques Britto, na Laboratório de Artes Cênicas (LAC) da PUC-Rio.
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