Daquelas coisas que lhe rendiam o respeito temporário de
alguma gente, apartou-se em uma noite de verão pleno, desatou seu bote e remou.
À tardezinha, a visão do porto se parecia à de pinturas
renascentistas do paraíso, com pilares de luz descendo do céu até as águas.
Nesta hora, passada a tormenta, por ali não se avista viv´alma. Os marinheiros
e estivadores já se haviam recolhido, exaustos, em casa ou n´algum canto,
saciados ou passados na cana. A cidade era escura e a ponte não estava.
Pássaros da altura de anjos sobrevoavam o farol. Não se ouvia senão assobios da
tormenta que lhe esperava, e os ecos de gritos e gemidos vindos das margens.
Corre a lenda que pertenciam aos primeiros amantes desta terra, enfeitiçados
pelo espírito dos índios que negavam a salvação. E que passavam a madrugada
escondidos naqueles pântanos, torturando-se em devaneios carnais.
Certamente não imaginava relatos, fugas heroicas, retornos
triunfais. Estas não eram coisas suas. Sem ardor se olhava a si mesmo, não mais
que nos dias de missa ou de festança. De todo não era ranzinza. Sorria com
frequência, de coisas que não se entendia bem. Casou-se algumas vezes. Mas era
só com seus pensamentos. Seu cachimbo de horas vazias, de muitas horas...Dizem
que tinha cisma com frases. Frase escrita em tudo quanto é papel. Às vezes à
faca na mesa da oficina. Às vezes até no próprio corpo.
Noutra rua da cidade, chovia. Pisavam firmes os sapatos. Os
passantes abrigavam-se sob as marquises. A um lhe ocorreu um café, a outro um
conhaque. A maioria ocupava-se em danar o imprevisto. O relógio da Central do
Brasil marcava seis em ponto. Reto feito uma lâmina. O vento veloz levantava as
cortinas das casas. Fazia frio e trovejava.
Entre os homens de terno que vinham pela avenida, despontava
um jovem singular. O único a optar pelo caminho desimpedido sob a chuva,
pisando em poças. A tomar por sua cartola e as vestes negras sem medidas, bem poderia
ser um artista, quiçá até mesmo um santo. Estava ensopado e convicto de sua
imortalidade, e talvez nem tivesse onde cair morto. O que nenhum deles sabia, e
nem mesmo o rapaz, é que àquela noite, a História da arte ocidental desde a
Renascença até um quarto de hotel, o nomadismo urbano, as revoluções dos
pálidos, as guerras intermináveis, o cinema, as praias do Brasil, existiam
somente para ele e seu colete e seu chapéu que não existiam. Era uma noite de
verão pleno e, dentro de algumas horas, amanheceria febril com o toque da musa.
Nesta mesma noite, em outro tempo, alguém toma a decisão e
reescreve seu destino. Ela observava indiferente o café tremer dentro da
xícara. Havia um dilúvio lá fora e uma fraqueza em suas pernas, em seu coração.
Imobilizada, perdeu-se em sua própria região secreta e sonhou ver, por mera
distração do tempo, as entradas e saídas de seu labirinto. Um mapa confuso de
futuros possíveis rabiscados à mão. O café já escorria pelos panos e queimava
de leve suas pernas. Bastou que deixasse a mesa e o mundo inteiro seria outro.
A América já tinha luzes, mas a mata atlântica cresce por dentro da pele.
Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves ficou em segundo lugar na categoria prosa do 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.
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