As múltiplas escolhas estampadas no exame com que João se
confrontava eram-lhe muito cruéis, seguindo o costume das decisões que a vida impõe
aos homens. Foi a elas, supondo-se preparado pelas oito horas diárias de
estudos, por meses e meses a fim.
Mas antes, brincou com a lembrança recém forjada da menina
que entrara há pouco na sala e na percepção dos candidatos e do fiscal da sala.
João já conhecia bem o que mais impressionava na moça, seu jeito de andar, e destoou
dos competidores quando trataram de analisar aquela relutante contração de
músculos que trocava suas pernas, acidentalmente levando-a para frente; o tropeço
remendado de subidas e descidas em que progredia o palmilhar de seus passos, cuja
coreografia teimava em inventar degraus sobre o plano linear do chão. Apesar do
peso da caminhada, ela fez desfilar a mulher a quem João mais amou na vida.
Ela fora uma menina da escola, evidentemente, porque João
não tinha tanta vida atrás de si para ter amado assim qualquer outra criatura. Ela
era singela, meiga, do tipo de pessoa que se torna bem versada em todos os
ofícios humanos que não enriquecem. Não fazia tanto tempo que não se viam
pessoalmente, mas o vínculo virtual do facebook também nunca se estreitara
muito: João apenas conhecia da sua vida o que ela muito zelosamente aprovava
expor.
Mas o lapso foi momentâneo. João acordou com a estridência
do apito soprado pelo grande e gordo fiscal, permitindo que os concurseiros
pateticamente cometessem os erros necessários à repetição da ciranda
intelectual no próximo ano. Fatalmente, foi seu caso. Apesar de não poder
sabê-lo então, ele pressentiu o desengano à espreita quando entregou finalmente
a prova. Tal momento, suas particularidades (a ríspida troca de olhares com os
outros já de pé, a atenção do fiscal à ressonância dos passos sobre o assoalho
da velha escola, o cheiro da manca amada ao ignorar-lhe no caminho até a
porta), residiriam na alma de João enquanto ela se comprovasse a matéria mais
sensível de seu corpo.
Saiu à rua, por causa
da asfixia que o ar viciado da sala lhe causava. Tentava esquecer o desgosto da
prova e da paixão antiga com quem cruzara. Sob o sol primaveril da Tijuca,
encontrou o amigo do cursinho já liberto do papel de rival.
— “E aí cara, como foi? O que achou?” O amigo abriu o
interrogatório. João sorriu intranquilo, fazendo-se parecer inocente, em todo
caso.
— “É, mais ou menos, sabe? Acho que me saí melhor na
parte histórica...”
— “Acho que fui bem”, interrompeu o amigo, “aquela de
português, do Antonio Cândido, você colocou verdadeiro ou falso?”
— “Ah, que eu me lembre pus verdadeiro.” João estava certo
do que marcara na questão, mas sua hesitação o defendia da voracidade do amigo.
— “Hum, acho que não hein? Eu e maior galera colocamos
errado.”
— “Sei..., devo ter errado essa.”
— “E aquela do
PNB? Certo ou errado?” O inquisidor continuou até cansar de dar demonstrações
de sua luz própria.
— “É, sei lá,
de qualquer forma, agora é esperar pelo gabarito, acho que sai semana que vem
já. Vou partir cara, a gente se vê por aí.” Ao que o amigo replicou com a
tímida declaração de “abraços”.
João decidiu voltar pela São Francisco Xavier, mirando o
metrô ao fim da rua, pretexto útil e muito convincente, ninguém nunca o
contestara, pelo menos. Queria mesmo (como o miserável calor do asfalto queria
subir à abertura do céu) era o conforto que só a placidez das palmeiras
imperiais da igreja sabia por em seu espírito, com sua indiferença exemplar
diante do tudo. Foi andando abobadamente até enfrentar a paróquia, cuja
vegetação era mais tosca do que se lembrava. Não se impressionou, e virou-lhe
as costas.
Normalmente, as convicções de João eram mais profundas do
que a cena ocorrida ali na igreja deixava entrever, mas dessa vez ele se
enganou de fato. Porque sua cabeça se empenhava em esquecer algumas memórias,
as que ele levantava ressurgiam desmaiadas na nitidez. Avistou a boca do metrô
e desceu suas escadas, contrariado. E o tempo corria, indolente como a vontade
de João de voltar pra casa. Envelhecia-o. Mas como o melhor modo de se
aproveitar a juventude é pelo seu desperdício, João não se preocupou muito com
o provável (isto é, certo) fracasso na prova, as responsabilidades que os
trabalhos da faculdade lhe empurravam, a falta de perspectiva profissional
agradável, e o crescente custo de sua vida. O viço das palmeiras sonhadas e o viço de sua
juventude minguavam num mesmo par. Viver era um devir medonho, incerto, cujo
desenlace é sempre (e é a própria) iminência da casualidade. Peculiar a ética
da vida: acostumar-se com a chegada inelutável de um emissário fatalista, que
ora porta boas e ora más notícias, a que chamamos futuro. Ser o destinatário do
futuro, portanto, sob sua única forma real, realizada, o presente.
João finalmente chegou ao interior da caverna antropogênica.
Comprou o cartão, inseriu-o na máquina metálica, e passou com o giro da roleta
para a plataforma. Num banco de plástico azulado, encontrou sentada e só a
menina coxa.
Ele não podia acreditar. Pensou, mesmo, que já sonhara
situações menos improváveis do que a que se lhe apresentava.Experimentar uma
situação como a que espantava João é estar à margem da própria existência: nada
é mais substancial que o ar de que nossos pulmões arfantes se enchem, nada é
mais turvo que a condução inocente dos acontecimentos. O coração fica de
joelhos e clama pelo fim da biologia que o atribula; o silêncio se mostra como
o barulho a intercalar os sons que nos testemunham na surdez do universo. Então
decidiu falar com ela.
—“Oi! Como você tá? Quanto tempo hein?”
—“João! Oi!”, surpresa, alongou a interjeição, “Caraca,
quanto tempo cara!”
—“Pois é! Não nos vemos desde os tempos da escola, não é
mesmo? Quer dizer, na verdade não te vejo desde 2:30 da tarde, quando fazíamos
a prova.” Por um grande descuido, soltou a última frase, que se acomodava na
exclusividade do seu pensamento.
—“Você tava lá? Po, por que não falou comigo? Não fazia
idéia que queria funcionalismo público também, você não estudou Economia na
faculdade?” Um leve zumbido se avolumava na plataforma, anunciando a vinda do
trem.
—“Haha, não cara, na verdade...” O retorno da presença
física de pessoas longamente ausentes é a mais imediata força para a restauração
sentimental do passado. Naquele caso, a retomada agravava-se tanto mais porque
a presença física era débil: sua precariedade anatômica instilava em João o
drama de confundir amor com piedade. Ela havia revitalizado a adormecida
atração escolar, e João cogitava seriamente em confessar-lho. “Na verdade até
pensei em Economia, mas sou covarde diante dos números, haha. Refugiei-me no
Direito mesmo... cara, como é bom te ver, a gente tinha que marcar alguma
coisa, sabe? Não podemos contar só com o acaso como anfitrião de nossas
reuniões, haha” Disse-o, meio sem graça. E tomou mais coragem. “Por que não
combinamos de sair um dia, pra relembrarmos os dias da escola?”
—“Ah, João, claro, vamos sim!” Foi o primeiro triunfo de
João no desde que acordara. As palavras deram-lhe o alívio no qual a ânsia prazerosamente
se extingue. “Quando você pode?”
—“Por mim, amanhã, sábado, é bom, tô livre. E você?”
—“Por mim tudo bem, faz o seguinte, pega o meu número, me
adiciona no whatsapp, me manda uma mensagem e aí a gente combina a hora, o
local, e tudo mais.” Logo que o acordo foi feito, o trem chegou à estação. João
fez menção de embarcar nele após alegrar-se novamente com a disposição da
interlocutora. Mas notou sua inércia.
—“Você não vai entrar?” Perguntou-lhe, consternado.
—“Não, na verdade estou esperando uma pessoa. Vou partir
daqui com ela. Mas a gente se fala amanhã!” As palavras com que João contara para
ser feliz agora o ressabiavam. Ela? Temia que o gênero empregado se adequasse
somente ao substantivo, e não à pessoa esperada, cuja realidade (ambulante, com
as pernas de quem pode se dirigir ao encontro de moças no metrô) burlava as
regras da linguagem. Mas quis atribuir a razão da vigília ao pai, ao irmão,
talvez, sabendo que, se fosse assim, a ocultação do nome teria sido suspeita,
exatamente como foi. Resignou-se e se despediu da companhia para se esconder no
trem vazio.
Alojado num canto em que ainda via seu desejo sobre o banco
de plástico azul, João padeceu da verdade a que a lentidão do trem concedeu
tempo para providencialmente surgir. Sôfrego, vinha caminhando pelo lado
esquerdo da plataforma o grande e gordo fiscal do concurso, enquanto as portas
do vagão se fechavam e a máquina começava a partir. Antes de perder o ângulo de
visão, João observou que o fiscal se sentava no mesmo banco que ele escolhera
para descansar e conversar com a manca. Antes de imergir na escuridão do túnel,
viu a obesidade de um e a fragilidade da outra inclinando mutuamente os rostos
na direção do que João passaria o resto da vida acreditando ser um beijo.
Filipe Novaes
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