quarta-feira, 7 de maio de 2014

O concurso


As múltiplas escolhas estampadas no exame com que João se confrontava eram-lhe muito cruéis, seguindo o costume das decisões que a vida impõe aos homens. Foi a elas, supondo-se preparado pelas oito horas diárias de estudos, por meses e meses a fim.

Mas antes, brincou com a lembrança recém forjada da menina que entrara há pouco na sala e na percepção dos candidatos e do fiscal da sala. João já conhecia bem o que mais impressionava na moça, seu jeito de andar, e destoou dos competidores quando trataram de analisar aquela relutante contração de músculos que trocava suas pernas, acidentalmente levando-a para frente; o tropeço remendado de subidas e descidas em que progredia o palmilhar de seus passos, cuja coreografia teimava em inventar degraus sobre o plano linear do chão. Apesar do peso da caminhada, ela fez desfilar a mulher a quem João mais amou na vida.

Ela fora uma menina da escola, evidentemente, porque João não tinha tanta vida atrás de si para ter amado assim qualquer outra criatura. Ela era singela, meiga, do tipo de pessoa que se torna bem versada em todos os ofícios humanos que não enriquecem. Não fazia tanto tempo que não se viam pessoalmente, mas o vínculo virtual do facebook também nunca se estreitara muito: João apenas conhecia da sua vida o que ela muito zelosamente aprovava expor.

Mas o lapso foi momentâneo. João acordou com a estridência do apito soprado pelo grande e gordo fiscal, permitindo que os concurseiros pateticamente cometessem os erros necessários à repetição da ciranda intelectual no próximo ano. Fatalmente, foi seu caso. Apesar de não poder sabê-lo então, ele pressentiu o desengano à espreita quando entregou finalmente a prova. Tal momento, suas particularidades (a ríspida troca de olhares com os outros já de pé, a atenção do fiscal à ressonância dos passos sobre o assoalho da velha escola, o cheiro da manca amada ao ignorar-lhe no caminho até a porta), residiriam na alma de João enquanto ela se comprovasse a matéria mais sensível de seu corpo.

Saiu à rua, por causa da asfixia que o ar viciado da sala lhe causava. Tentava esquecer o desgosto da prova e da paixão antiga com quem cruzara. Sob o sol primaveril da Tijuca, encontrou o amigo do cursinho já liberto do papel de rival.  

— “E aí cara, como foi? O que achou?” O amigo abriu o interrogatório. João sorriu intranquilo, fazendo-se parecer inocente, em todo caso.

—  “É, mais ou menos, sabe? Acho que me saí melhor na parte histórica...”

— “Acho que fui bem”, interrompeu o amigo, “aquela de português, do Antonio Cândido, você colocou verdadeiro ou falso?”

— “Ah, que eu me lembre pus verdadeiro.” João estava certo do que marcara na questão, mas sua hesitação o defendia da voracidade do amigo.

— “Hum, acho que não hein? Eu e maior galera colocamos errado.”

— “Sei..., devo ter errado essa.”

—   “E aquela do PNB? Certo ou errado?” O inquisidor continuou até cansar de dar demonstrações de sua luz própria.

 —  “É, sei lá, de qualquer forma, agora é esperar pelo gabarito, acho que sai semana que vem já. Vou partir cara, a gente se vê por aí.” Ao que o amigo replicou com a tímida declaração de “abraços”.

João decidiu voltar pela São Francisco Xavier, mirando o metrô ao fim da rua, pretexto útil e muito convincente, ninguém nunca o contestara, pelo menos. Queria mesmo (como o miserável calor do asfalto queria subir à abertura do céu) era o conforto que só a placidez das palmeiras imperiais da igreja sabia por em seu espírito, com sua indiferença exemplar diante do tudo. Foi andando abobadamente até enfrentar a paróquia, cuja vegetação era mais tosca do que se lembrava. Não se impressionou, e virou-lhe as costas.

Normalmente, as convicções de João eram mais profundas do que a cena ocorrida ali na igreja deixava entrever, mas dessa vez ele se enganou de fato. Porque sua cabeça se empenhava em esquecer algumas memórias, as que ele levantava ressurgiam desmaiadas na nitidez. Avistou a boca do metrô e desceu suas escadas, contrariado. E o tempo corria, indolente como a vontade de João de voltar pra casa. Envelhecia-o. Mas como o melhor modo de se aproveitar a juventude é pelo seu desperdício, João não se preocupou muito com o provável (isto é, certo) fracasso na prova, as responsabilidades que os trabalhos da faculdade lhe empurravam, a falta de perspectiva profissional agradável, e o crescente custo de sua vida.  O viço das palmeiras sonhadas e o viço de sua juventude minguavam num mesmo par. Viver era um devir medonho, incerto, cujo desenlace é sempre (e é a própria) iminência da casualidade. Peculiar a ética da vida: acostumar-se com a chegada inelutável de um emissário fatalista, que ora porta boas e ora más notícias, a que chamamos futuro. Ser o destinatário do futuro, portanto, sob sua única forma real, realizada, o presente.

João finalmente chegou ao interior da caverna antropogênica. Comprou o cartão, inseriu-o na máquina metálica, e passou com o giro da roleta para a plataforma. Num banco de plástico azulado, encontrou sentada e só a menina coxa.

Ele não podia acreditar. Pensou, mesmo, que já sonhara situações menos improváveis do que a que se lhe apresentava.Experimentar uma situação como a que espantava João é estar à margem da própria existência: nada é mais substancial que o ar de que nossos pulmões arfantes se enchem, nada é mais turvo que a condução inocente dos acontecimentos. O coração fica de joelhos e clama pelo fim da biologia que o atribula; o silêncio se mostra como o barulho a intercalar os sons que nos testemunham na surdez do universo. Então decidiu falar com ela.

—“Oi! Como você tá? Quanto tempo hein?”

—“João! Oi!”, surpresa, alongou a interjeição, “Caraca, quanto tempo cara!”

—“Pois é! Não nos vemos desde os tempos da escola, não é mesmo? Quer dizer, na verdade não te vejo desde 2:30 da tarde, quando fazíamos a prova.” Por um grande descuido, soltou a última frase, que se acomodava na exclusividade do seu pensamento.

—“Você tava lá? Po, por que não falou comigo? Não fazia idéia que queria funcionalismo público também, você não estudou Economia na faculdade?” Um leve zumbido se avolumava na plataforma, anunciando a vinda do trem.

—“Haha, não cara, na verdade...” O retorno da presença física de pessoas longamente ausentes é a mais imediata força para a restauração sentimental do passado. Naquele caso, a retomada agravava-se tanto mais porque a presença física era débil: sua precariedade anatômica instilava em João o drama de confundir amor com piedade. Ela havia revitalizado a adormecida atração escolar, e João cogitava seriamente em confessar-lho. “Na verdade até pensei em Economia, mas sou covarde diante dos números, haha. Refugiei-me no Direito mesmo... cara, como é bom te ver, a gente tinha que marcar alguma coisa, sabe? Não podemos contar só com o acaso como anfitrião de nossas reuniões, haha” Disse-o, meio sem graça. E tomou mais coragem. “Por que não combinamos de sair um dia, pra relembrarmos os dias da escola?”

—“Ah, João, claro, vamos sim!” Foi o primeiro triunfo de João no desde que acordara. As palavras deram-lhe o alívio no qual a ânsia prazerosamente se extingue. “Quando você pode?”

—“Por mim, amanhã, sábado, é bom, tô livre. E você?”

—“Por mim tudo bem, faz o seguinte, pega o meu número, me adiciona no whatsapp, me manda uma mensagem e aí a gente combina a hora, o local, e tudo mais.” Logo que o acordo foi feito, o trem chegou à estação. João fez menção de embarcar nele após alegrar-se novamente com a disposição da interlocutora. Mas notou sua inércia.

—“Você não vai entrar?” Perguntou-lhe, consternado.

—“Não, na verdade estou esperando uma pessoa. Vou partir daqui com ela. Mas a gente se fala amanhã!” As palavras com que João contara para ser feliz agora o ressabiavam. Ela? Temia que o gênero empregado se adequasse somente ao substantivo, e não à pessoa esperada, cuja realidade (ambulante, com as pernas de quem pode se dirigir ao encontro de moças no metrô) burlava as regras da linguagem. Mas quis atribuir a razão da vigília ao pai, ao irmão, talvez, sabendo que, se fosse assim, a ocultação do nome teria sido suspeita, exatamente como foi. Resignou-se e se despediu da companhia para se esconder no trem vazio.

Alojado num canto em que ainda via seu desejo sobre o banco de plástico azul, João padeceu da verdade a que a lentidão do trem concedeu tempo para providencialmente surgir. Sôfrego, vinha caminhando pelo lado esquerdo da plataforma o grande e gordo fiscal do concurso, enquanto as portas do vagão se fechavam e a máquina começava a partir. Antes de perder o ângulo de visão, João observou que o fiscal se sentava no mesmo banco que ele escolhera para descansar e conversar com a manca. Antes de imergir na escuridão do túnel, viu a obesidade de um e a fragilidade da outra inclinando mutuamente os rostos na direção do que João passaria o resto da vida acreditando ser um beijo.

Filipe Novaes

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