sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O vendedor

(Prêmio Paulo Britto  - 2o lugar - Prosa)


Começou por vendê-las na praia, anunciando-as bem alto, com seu pregão seco e rouco: CACETADAS! Vendo cacetadas. E causava estranhamento na reserva do recreio. Como era de se esperar, não vendeu nada no primeiro dia, nem no segundo, tampouco no terceiro... mas no quarto dia, ao cair da tarde, hora em que as pessoas de bem começam a retornar às suas casas, energizadas de sol, ouviu o chamado, em um carregado sotaque lusitano: dai-me uma gajo, mas desejo recebê-la entre as nádegas, de modo que o som chegue estalado aos meus ouvidos, pois é assim que a aprecio. E abaixou a sunga, deixando à mostra as bandas embranquecidas. O caceteiro aproximou-se do cliente e com ares de digno profissional cravou-lhe uma bofetada. Serviço prestado, o homem estendeu a mão e disse “são 10 reais”. O galego olhou-o surpreso, procurando intenções libidinosas, e quando não as encontrou enfureceu-se! Ora seu paspalho, então és louco, é isso que és? Estás a vender cacetadas como se fossem queijo coalho e por isso queres recompensa? Ora vai-te a ver se estou lá na esquina! O caceteiro suspirou profundo, como se pensasse “mais um caloteiro”, e replicou monocórdio: eu vendo um produto de qualidade, sou um profissional dedicado e lhe ofereci a melhor cacetada do mercado. Ou recebo meus 10 reais ou chamo a polícia. O galego perscrutou o vendedor dos pés à cabeça. Em fração de segundos, sondou-lhe o vigor físico, caso escolhesse a violência como saída, e analisou-lhe o semblante, procurando traços de loucura que justificassem o comportamento inusitado. O caceteiro era forte, mas não aparentava loucura alguma, e o português, ainda irritado por ver frustrados seus impulsos carnais, resolveu levar o impasse às mãos da justiça: “chamemos a polícia”. Pararam a viatura, desceu o policial. Bom dia “cidadões”, em que posso servi-los? O caceteiro abriu a boca, mas o galego tomou-lhe a frente. Este gajo ensandecido esta a vender cacetadas em plena praia. Sim, e esse senhor as comprou, mas não quer pagar. Ora pois, mas que não pago mesmo, onde já se viu pagar para levar cacetes. Se não gosta do produto não comprasse. Tu és um louco, demente e... “peraê, peraê”, vamos com calma, interrompeu o policial, não “tô” entendendo nada, porra. Fala um de cada vez.

 O caceteiro ergueu a mão e com tal autoridade que o bravo lusitano se calou. Então, expôs assim seus argumentos: senhor policial, sou um humilde vendedor autônomo, cegamente respeitador da lei e da ordem, que acordou às 4h da manha para chegar aqui, tomou um ônibus, um trem e uma van e está desde cedo na labuta. Este senhor comprou o meu produto e, após tê-lo consumido, recusou-se a pagar. E o policial perguntou: e que produto você vende, rapaz? Vendo boas cacetadas. Como, rapaz? Cacetadas, cacetadas de vários tipos: estaladas, em concha, cascudinhos; fortes, médias e fracas; uma, duas, ou a sessão. Cacetadas... , murmurou o policial, sei..., e por acaso o cidadão tem licença para vender tais cacetadas? Como tenente? Vou repetir, cidadão, POR ACASO O SENHOR É CADASTRADO PELA PREFEITURA, LICENCIADO PELO ESTADO, QUERO DIZER: O SENHOR TEM ALGUM DOCUMENTO DANDO PERMISSÃO PARA VENDER CACETADAS NESTA PRAIA? Nã, não senhor, na verdade eu não sabia que tinha que ter licença pra... Então o cidadão se diz um profissional autônomo, arrota profissionalismo, mas vende seu produto na ilegalidade? O português fazia uma força tremenda para manter o silêncio, enquanto se deleitava com a situação difícil em que se encontrava o caceteiro, até que, não conseguindo mais se conter, destilou o lusitano veneno: prenda logo este gajo safado, seu policial, não vês que não passa de um matungo, um sacripanta, um velhaco da pior espécie, a vender produtos que ninguém em sã consciência venderia e a extorquir vultosas somas de dinheiro de pessoas de bem!?

E foi assim que, sem que o galego se desse conta, suas palavras salvaram o caceteiro, funcionando como um taser paralisante descarregado sobre o homem da lei: “vultosas somas de dinheiro, extorquir pessoas de bem, produto que ninguém vende”, e as palavras ressoavam como um mantra girando em torno à cabeça do tenente, que olhando os próprios olhos, de dentro para fora, percebia aquela faísca de luz que conhecia muito bem... e indagou ao caceteiro: quanto custa exatamente a cacetada? Bem, senhor, depende da modalidade. Mas, grosso modo, cobro 10 reais se for uma cacetada única, 20 se for dupla, e 30 a sessão completa. Hummm, resmungou o policial, e quanto você imagina que poderia cobrar por uma cacetada com um porrete legítimo de um homem da lei? Bem, capitão..., tenente, retrucou o oficial, mas com essa eficiência chegará em um instante a capitão, sorriu o caceteiro (e o tenente, pela primeira vez, sorriu de volta), bem, como eu dizia, creio que uma cacetada bem dada com um material de qualidade como o do senhor, artigo raro no mercado das cacetadas, poderia chegar a uns... 50 reais por nádega!

 O policial refletiu, refletiu e com ar austero sentenciou: olha, caceteiro, num primeiro momento pensei que o senhor fosse um desses que acha que pode exercer seu trabalho da forma como quiser, fora dos regulamentos da ordem e da lei, e minha intenção era conduzi-lo à delegacia para averiguação. Só que, durante nossa conversa, percebi que o cidadão é um profissional competente, que conhece profundamente seu metiê e, por isso, merece uma segunda chance. Afinal de contas, que policial seria eu, se não garantisse ao homem de bem a chance de ganhar o pão da família com o suor de seu rosto, não é mesmo? Portanto, tenho uma proposta justa a fazer à sua pessoa: darei permissão ao senhor para vender suas cacetadas aqui na minha praia, além disso, garantirei sua proteção, a exclusividade de vendas em toda a reserva e, ainda por cima, emprestarei meu cassetete para que o senhor trabalhe durante a madrugada, contanto que esteja pontualmente aqui às 5h da manhã, já que a revista da tropa é às 6h e eu preciso me apresentar ao batalhão com meu cassetete nas calças. Por fim, em troca de todos esses favores que prestarei ao senhor, o caceteiro dividirá comigo os ganhos da sua atividade, 50% a 50%, pagamento semanal, que aceitarei apenas para não fazer desfeita à sua demonstração de gratidão. Espero, sinceramente, que o senhor compreenda a generosidade de minha proposta, arrematou o valente soldado, dando leves pancadas com o bastonete na palma da própria mão. O senhor compreende, não compreende, cidadão?


Claro coronel, claro que sim, podemos começar agora mesmo essa promissora parceria, o senhor só terá de me ensinar como usar o cassetete, pois não tenho experiência com tal ferramenta de trabalho e, atento que sou à qualidade de meu serviço, necessito saber utilizá-la com a maior proficiência técnica possível. Nisso, o português, que contrariado com o rumo da conversa preparava-se para partir, levantou-se subitamente da pedra em que se sentara e, quase aos berros, intrometeu-se no diálogo dos dois homens: se os senhores acharem de bom alvitre, posso servir-lhes de cobaia para os testes, desta feita colaboro, a um só tempo, com a lei e a educação deste país, que tão bem soube me dar e receber! E enquanto discursava já se foi aproximando da viatura, abaixando a sunga e deixando à mostra a bunda alvíssima, algo carnuda, que mais parecia um pequeno urso polar de pelúcia. O policial, então, de imediato, sem sequer agradecer-lhe o oferecimento, tira o cassetete das calças, ergue-o perpendicularmente às nadegas do português e desfere uma pancada no felizardo que, a esta hora, já estava devidamente de quatro, com as mãos apoiadas no veículo, os braços esticados para a frente, a sunga arriada nos joelhos e o bumbum empinado para a lua (a qual, por sinal, brilhava cheia e sorridente como a bunda do galego). O tenente, ofegante, com uma centelha faisquenta entre as pupilas, recupera a muito custo o autocontrole e transmite o bastão ao caceteiro, agora casseteiro, que, apropriando-se da ferramenta e com o semblante impassível de um cirurgião suíço, imita com precisão, dessa vez na nádega direita do patrício, o golpe certeiro que havia apreendido com o novo sócio. Ambos, então, satisfeitíssimos com a promissora sociedade e, poder-se-ia mesmo dizer, empolgadíssimos com a perspectiva de ganhos futuros, apertam-se as mãos com a firmeza dos empreendedores, enquanto que o português, ainda em estado de transe, com rosto e tronco estatelados sobre a viatura, repete, como que numa prece, a enfadonha ladainha: oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta terrinha benfazeja, ô terrinha; oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta terrinha benfazeja, ô terrinha... oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta terrinha benfazeja, ô terrinha...

Gustavo Sant'Anna

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