Esse tipo de briga era comum na
Escola Munro. Um garoto deu em cima da namorada de outro garoto, que veio tomar
satisfações com o primeiro. Naquele tempo os conflitos ainda eram resolvidos no
braço. Na hora da saída juntava uma penca de estudantes na pracinha para
assistir ao combate. Às vezes vinha até gente de fora. Chegava mesmo a rolar
uma banca de apostas.
A coisa
estava feia para o lado de Rico D’Ambrosio. Cinco atletas da equipe de futebol
se apresentaram para prestar solidariedade ao capitão do time. Mas Rico, o tal
primeiro garoto, era abusado. Nos poucos intervalos do massacre ele buscava
ânimo, não se sabe de onde, para lançar, assim, meio de perfil, um sorriso
amassado para Alice, valioso objeto em disputa. A menina correspondia discreta
enquanto os mini gangsteres voltavam à carga, cada vez com mais disposição.
Giovanni
“Grandalhão” Santini não tolerava covardia. Ao presenciar o magrelo encarando o
grupo inimigo sem titubear, resolveu comprar o barulho e equilibrar a balança.
Juntos conseguiram derrotar os oponentes, botando os meninos para correr. Desde
então, se tornaram um só (e seria assim por muitos anos ainda). Rico, a cabeça,
Grandalhão, o muque, e Alice, o coração.
Moravam
todos no mesmo bairro, ao norte do município. Os rapazes iam se virando do
jeito que dava. Pequenos delitos aqui e ali os apresentaram a uma variedade de
reformatórios. Aos poucos a dupla foi conquistando respeito, se enterrando
alegremente no submundo local.
Ela costumava ficar de frente
para o espelho saboreando as provas do vestido reformado, que fora da mãe e
antes disso da avó, enquanto repetia incansável em voz alta: Alice D’Ambrosio,
Alice D’Ambrosio. Era tempo de substituir o Lofredo original pelo outro, que
julgava sonoro, ao menos mais elegante que o surrado nome de família.
Grandalhão foi o padrinho.
Engravidou na primavera. A espera
pelo herdeiro encheu de alegria e entusiasmo a casa recém comprada, fruto dos
lucros que começavam a nascer das atividades do companheiro na organização. Foi
nesse período, talvez um pouco antes, que o marido passou a ser chamado de Rico
Três Olhos. O apelido fazia referência à assinatura profissional: Mandava suas
vítimas para o inferno com um único tiro, certeiro, bem no meio da testa.
Grandes sacos pretos, recheados de folhas secas, ficavam
esquecidos no fundo do quintal. Foi ali que Rico jogou o trenzinho de madeira,
presente de boas-vindas para o rebento, ao sair batendo o portão. Não se deu ao
trabalho de nem mesmo desembrulhar. Recolheu de volta ao regressar para casa de
madrugada e trancou no armário do sótão. O novo enxoval, comprado às pressas
pela avó, também não combinava com a decoração, trabalhada em diferentes tons
de azul, que o pai preferiu manter. Alice acostumou-se a testemunhar solitária
as gracinhas que a bebê a cada dia lhe ofertava sorrindo, enquanto Três Olhos
se envolvia mais e mais com o trabalho e as distrações da rua.
Havia um assunto delicado que
precisava ser resolvido na região próxima à zona portuária. Uma família,
responsável por outra área da cidade, vinha fazendo seus negócios por ali. Eles
bancavam os surdos, apesar dos conselhos encaminhados, e, certamente, buscavam
aumentar sua fatia do bolo. Prenúncio de guerra. Como se dizia naquela época,
os soldados estavam armando os colchonetes. O velho par Três Olhos-Grandalhão
foi, mais uma vez, convocado para a linha de frente.
A missão era apagar um bem
colocado membro da facção adversária. Depois de horas de tocaia o alvo surgiu
no beco, como previsto. Acontece que algo deu errado e Três Olhos acabou preso.
Tudo indicava se tratar de uma emboscada. Alguém abriu o bico e isso não era
coisa que se perdoasse. Grandalhão observava impotente toda a cena, de uma
distância segura.
O acordo com o promotor previa o
seguinte: Rico entregaria todo o esquema da corporação em troca de liberdade.
Seus comparsas foram caindo um a um. Só o Grandalhão fora poupado.
O letreiro piscava torto o nome
do estabelecimento: NEST’S. O E e o R iniciais haviam caído há tanto tempo que
os moradores da vizinhança já tinham se acostumado a chamá-lo assim. A
garçonete limpava o extenso balcão do bar como se não tivesse mais nada para
fazer. Era tarde quando os dois forasteiros entraram fazendo a porta ranger,
jeito peculiar de anunciar uma chegada.
Bom dia, rapazes! – disse a
funcionária ultra animada.
Bom dia? Tá escuro ainda. – um
dos homens, o jovem, respondeu mal humorado.
Passou da meia noite já deixou de
ser ontem, não te ensinaram isso na escola, não?
Bom dia. Tem como você ver dois
cafés para nós? Meus ossos congelaram com esse vento lá fora. – esse tinha um
jeitão de chefe.
Café... ô, Grandalhão, vamos
executar logo o serviço. Se a gente se apressa ainda dá pra pegar o almoço na
cantina do Luigi.
Calma, garoto, você é muito
afoito. Podemos muito bem saborear as delícias locais antes de amanhecer. Ainda
mais servidos por questa bella ragazza. Na vida tudo tem seu tempo.
Tá certo, tá certo. Diz aí,
Gatinha, qual é o seu nome mesmo?
Ricarda.
Ricarda? Isso lá é nome que se
apresente? Parece que seus pais não gostavam muito de você, acertei? Mas, peraí
um pouquinho. Não é isso que tá escrito aí no crachá, não.
Maria é meu primeiro nome,
homenagem à nonna. E se você já tinha lido, perguntou por quê?
Estava só puxando conversa.
Vocês vêm de onde?
Da capital, ora essa.
Sabia! Têm pinta mesmo de cidade
grande. Meu sonho é sair desse buraco.
O namorado vai chiar, hein,
Gatinha.
Vai não. Aqui só tem caipira.
E os nossos cafés? Tira para nós,
por gentileza. Aproveita e traz também uma fatia daquela torta ali, ó. Quer
também, Rato?
Já disse pra não me chamar assim.
Ôôô... esqueceu de com quem você
está falando?
Com todo respeito, Sr. Santini, é
que eu não gosto que me chamem dessa maneira.
Tudo bem, Rato, tudo bem. Não
precisa se borrar, o quê que a mocinha vai pensar de mim?
Que barulho é esse lá dentro? – o
ruído assustou o rato.
Ah, é o Charlie! Ele pensa que me
engana, mas toda noite tira um cochilo no estoque.
Chama ele lá para nós. Diz que um
cliente quer lhe falar. O Rato vai com você para ter certeza de que não vai se
perder.
Tem mais alguém malocado nessa
espelunca, ô Preto Velho? – Rato chacoalhava o homem pelo avental.
O que o meu colega quer saber é
se não há mais algum funcionário na casa.
Não, senhor. Aqui só tem eu e a
moça.
Você conhece um tal Rico
D’Ambrosio?
Não tem ninguém com esse nome
aqui por essas bandas, não senhor.
Ora, Rato, é claro que hoje ele
usa outro nome. O amigo por acaso sabe de algum italiano metido a galã? Ele
costumava andar assim, ó, meio de lado. Gingando feito malandro das antigas.
Ah, esse é o Tony! Só pode ser o
Tony. Ele é velha guarda assim que nem você?
Bom, menina, acho que sim.
Pode-se dizer que sim. Isso, velha guarda.
Então, eu não disse? Tony
Fratello!
Vamos na casa dele, Sr. Santini.
A gente executa o serviço e sai logo desse fim de mundo.
Você me leva junto?
Ficou maluca, Gatinha?
Leva, Ratinho, você não vai se
arrepender. Eu nasci para rodar o mundo! Quero conhecer o mundo, sacou? E
então, leva?
Tá certo, tá certo, levo sim.
Garanto. Você vai se amarrar, Gatinha. Eu conheço tudo na cidade grande. Pode
contar comigo pra te apresentar o mundo.
Ele vem aqui todo dia.
Menina...
Ah, Charlie, não enche! Ele vem
sim, toda manhã.
E a que horas mais ou menos?
Sete. Ele chega sempre às sete
horas.
E não tem erro isso, amigo?
Senhor, eu trabalho aqui há
dezessete anos e nunca, nunquinha mesmo, ele chegou sequer atrasado. Dá até
para acertar o relógio por ele.
Ótimo. Não é por nada, mas é que
fomos compagno d’armi por toda uma vida, acho que por tempo demais até, e
gostaríamos de lhe fazer uma surpresinha. Você entende, não é mesmo?
Então é melhor se apressar! Está
quase na hora já, daqui a pouquinho ele deve estar estourando por aí. – ela
disse, dando uma espiada pela vidraça.
Até que enfim um bocado de ação
nesse cafofo. Como é que a gente faz, Sr. Santini?
Não sei, não sei. Me deixa pensar
um minuto.
Tem o quartinho dos mantimentos.
Como é que é?
O quartinho. Podem esperar por lá
enquanto o amigo de vocês não chega. Aí, no momento certo, é só sair e matar as
saudades.
Você tá pensando que eu sou
otário, Gatinha? Deu pra dar defeito agora, é? E se você tranca a gente e sai
pra avisar alguém?
Cala a boca, Rato. A ideia é boa
sim. Aliás, é perfeita, até porque ela vai estar lá dentro com a gente, certo,
mia cara? E eu tenho certeza de que o amigo ali vai fazer tudo direitinho, não
vai?
O som abafado de dois estampidos
quase não se percebeu. Rica deixou a despensa saltando por cima dos corpos.
Cada um deles tinha agora um olho a mais. Ela dá uma piscadela discreta para
Charlie ao passar para o outro lado do balcão. Já podia ocupar a mesa de sempre
para o tradicional café da manhã com o pai.
Carlos Eduardo Pereira
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