Aos vinte anos, um estudante caminha até a faculdade para
cumprir com suas matérias regulares. Faz filosofia e participa das reuniões com
diferentes grupos no campus de uma universidade. Entusiasmado, discute com seus
colegas a situação política, econômica e social do momento. Nos intervalos das
aulas, carrega um punhado de livros debaixo dos braços e os lê. Tem confiança
em suas virtudes e no que fala, como por exemplo, quando propões soluções para
a situação incerta do país em que vive. Não aceita a instauração do tédio, do
silêncio e do ódio. Busca, junto aos outros estudantes, as respostas para
diminuir as injustiças sociais.
Mas há momentos em que tudo muda. Como na primavera, a
inspiração floresce em todos os cantos e pessoas. Um sentimento de esperança,
em meio a um clima acinzentado de um regime político retrógrado, é tudo que um
idealista deseja. Com intuição, esses farejadores conseguem enxergar um novo
tipo de tempo. Atos e falas se tornam ferramentas e aqueles que não tinham suas
vozes escutadas, agora dominam o palco político. O intenso agora preenche a
vida de um jovem e de toda uma geração. A revirada do tabuleiro político é tão
rápida, que se demora anos para entender suas consequências e efeitos.
Esse mesmo estudante também percorre as ruas. Deseja e luta
por mudança. Entende que a filosofia precisa estar presente nas atitudes e
dentro das manifestações. As palavras têm poder. Quando elas são direcionadas
aos governantes, em voz alta pelo povo, possuem um valor ainda maior. Não é
muito difícil imaginar um jovem sonhar com transformações. Mais fácil, quando
se vive em uma sociedade estagnada de um governo repressor. São nesses lugares
que nascem o desejo da liberdade. De criar planos para concretizar ideias em
benefícios coletivos. De acreditar que ainda há pessoas que pensem assim. Mas a
Academia é um lugar pequeno para caber ideias revolucionárias. Há momentos em
que as palavras se acumulam em um espaço muito pequeno. Palavras também
precisam de escape. As represálias só fazem sua força se acumular. E então elas
invadem todos os territórios. Mas são as pessoas, como esse e tantos outros
estudantes, que irão levá-las para a rua.
Todos já passaram por um sentimento de anseio ao
desconhecido, nas vésperas de um marco histórico. Em algumas épocas, acordar
significa presenciar e participar desse momento. Assim como ficar parado pode
significar um ato político. Alguns poucos grupos tomam as primeiras atitudes
para desencadear movimento. O recuo é transformado em contra-ataque. No começo
são poucos e então, como a concretização de um imaginário comum, a força das
pessoas aumentam e se espalham. Mais pessoas começam a se concentrar nas ruas
em poucos dias. É mais rápido do que se pode prever. A sensação é de que nada
está ao controle. Os governantes estranham e os jovens ocupam as ruas, os discursos,
a mídia. A história se revela no presente. É o chamado de Kairós, o deus do
tempo oportuno, para a experiência desse momento decisivo. Quando se quer
salvar o mundo, não se pode deixar a espessura desse tempo desvanecer. É
necessário ir até as barricadas, onde as peças do jogo se movimentam.
O estudante abaixa a cabeça, tem gritaria vindo de todo
lugar. Tem polícia na rua, mais gente do que o normal. Quando levanta o olho,
são mais pessoas correndo e se atropelando no recuo. Há suor nos rostos, os
barulhos de explosões ao fundo continuam altos. Alguns preferem correr até um
lugar mais seguro. Mas outros estão na rua para enfrentar o establishment.
Carregam cartazes e esbravejam canções antitotalitárias. A anarquia, liberdade
e esperança são sentimentos compartilhados pelos protagonistas desse grande
ato.
Pedras são atiradas e novas vidraças quebradas, às vezes,
até de grandes bancos e comércios. Pneus incendiados, muita fumaça, mais do que
o suportável. E as vozes das pessoas. O caos vigente seria chamado de saudável
por esse estudante, ainda desconhecido de todos. A resposta, explosão de gases,
o enfrentamento de cacetetes e pedras, a violência estatal e um corte acima do
olho direito. Sangue e sujeira se misturam na confusão. Os estrondos parecem
estar mais perto. O chão treme. O calor do fogo queimando os carros em ruas
antes pacificadas. De olhos fechados pela dor do corte, a vida o transforma.
Apesar de não poder ver, aquele estudante sente a história acontecer em sua
pele.
Assim como em um doze de Maio qualquer e violento, a
Nouvelle Vague é esquecida nas ruas da França de 1968. Nos arredores da
Universidade de Sobourne, em Paris, algumas pessoas aprenderam a carregar a
esperança desse mês simbólico. Maio de 1968 ficaria marcado como o período em
que os jovens universitários franceses saíram às ruas e decretaram dias de
desordem e anseio de mudanças no regime político.
Três décadas depois, aquele estudante está agora em um
procedimento cirúrgico, no Timor Leste. Seus cabelos já estão mais grisalhos. A
voz, que apesar de mais cansada, está firme e amena. A esperança interna,
entretanto, permanece como se ainda fosse jovem. Mas são pelos seus olhos, que
se torna possível ver toda a história internacional da segunda metade do século
XX. A cirurgia de recuperação seria necessária no olho levemente ferido,
lembrança de seus anos de protestos na juventude.
O olho era de Sérgio Vieira de Mello. Um diplomata da
Organização das Nações Unidas respeitado pela sua carreira internacional.
Acostumado a lidar com situações complexas, envolveu-se em diversas missões da
história mundial recente. Alguns deles, como negociar com o grupo terrorista
Khmer Rouge no Cambodia, servir a Força Interina da ONU no Líbano como
conselheiro político, lidar com refugiados após a guerra civil em Ruanda, entre
outros cenários.
Em outubro de 1999, Sérgio se tornou o representante máximo
da Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste (UNTAET). Tarefa
encarregada pelo então secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kofi
Anaan. Tanto tempo depois, o experiente diplomata brasileiro estaria em uma
posição diferente daquela que se encontrava, quando ainda era um jovem
estudante de filosofia em Sobourne.
A chama que foi acesa em Maio de 1968 ainda permaneceria
motivando Sérgio a superar novos desafios e a lutar contra injustiças sociais.
Mas agora seu cargo correspondia ao equivalente a um Chefe de Estado de um
governo transitório. Seu objetivo era guiar o processo para a independência do
que seria um dos mais jovens países do mundo. A chance de uma população conseguir
almejar sua liberdade pesava em suas costas. Assim como a possibilidade da
estagnação e do fracasso da missão. Algo desse porte nunca tinha sido
completado na história da Organização das Nações Unidas. O intenso agora
recomeçaria mais uma vez.
Um comentário:
Parabéns Bruno, pela lembranca da memória desse grande brasileiro.
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