sexta-feira, 10 de maio de 2024

Entrevista: Patricia Lavelle e o enigma do texto como ponto de partida

 por Rafaela Albernaz, Danilo Brandão e Martha Marques 


Patrícia Lavelle é poeta, tradutora e ensaísta. Professora do Departamento de Letras da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq, fez doutorado em Filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, cidade onde morou entre 1999 e 2014. Tem publicado poesia, traduções e ensaios teóricos no Brasil e na França. Principais publicações em poesia: Bye bye Babel (7Letras, 2018, 2ª edição em 2021/Les presses du réel, 2023), Sombras longas (Relicário edições, no prelo). Bye bye Babel recebeu menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte.

1) Como a literatura entrou na sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

A literatura sempre esteve na minha vida. Desde que eu aprendi a ler, fui sempre uma leitora inveterada, era uma criança que não dormia enquanto não terminassem de me contar histórias. Quer dizer, a literatura já entrou na minha vida quando eu não sabia ler, e o meu grande desejo, na minha primeira infância, era aprender a ler. Quando aprendi, me tornei realmente uma leitora que devorava livro após livro. Então a literatura sempre esteve na minha vida. Hoje, a literatura se tornou uma parte da minha vida profissional. Isso faz com que, claro, eu tenha de ler textos teóricos e textos literários profissionalmente, o que cria para a leitura um direcionamento. Nem sempre é possível ler aquilo que dá vontade e prazer naquele momento, porque há a necessidade de organizar a leitura em função da preparação de uma aula ou de um artigo, por exemplo. Então a literatura está sempre presente, mas ela deixou de ser essa paixão caótica e se tornou algo mais organizado.
 
2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta?

Bem, poeta é quem escreve poema. Não vejo que esse seja um ofício muito elevado, como uma predestinação ou algo assim. Poeta é simplesmente quem escreve poema, independentemente daquela produção ser uma prática elaborada e publicada, ou apenas uma atividade momentânea. Então diria que a gente se torna poeta.
 
3) Sendo uma profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga?

Eu espero conseguir ainda ser uma leitora amadora, ou seja, conseguir ler aquilo que não é necessariamente direcionado para uma pesquisa, por exemplo. Além de ler o que é necessário para produzir artigos ou preparar aulas, ter também essa leitura selvagem, essa leitura que vai para todos os lados, que vai para aquele lugar que ainda não conhecemos, com assuntos que não dominamos, é fundamental. Essa leitura amadora, que vai por curiosidade aqui ou ali, eu não posso deixá-la morrer.
 
4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação?

Primeiramente, não sei se me colocaria nesse lugar de verdadeiro artista; é uma expressão, talvez, muito “pesada”. Quanto à separação entre arte e vida, eu vejo que a escrita poética é de certa forma ficcional: escolhem-se algumas coisas, recortam-se outras. Claro, como o romancista, o poeta também trabalha a partir das suas próprias experiências e vivências, mas transformando-as. Essa transformação passa também pela referência a outros textos literários e poéticos; o trabalho de leitura, o trabalho de reler e se deixar atravessar por outros textos faz parte da escrita literária. Por isso, eu não diria que não há separação entre a escrita e a vida, a não ser que se queira entender que tudo o que é leitura, tudo o que são referências intertextuais, de algum modo, faz parte da vida também – e de fato faz; a pessoa que eu sou, assim como a pessoa que todos nós somos, é a pessoa que leu isto e aquilo. Então, nesse sentido, sim, mas não naquele sentido mais imediato do texto poético refletir vivências pessoais e ser imediatamente confessional. Não é nesse sentido que eu penso esta questão da relação entre vida e escrita. Mas acredito que o material com o qual qualquer pessoa escreve está relacionado com tudo aquilo que ela viveu, e nisso se inclui aquilo que leu e aprendeu, o que é muito importante, assim como os recortes e sínteses que ela vai elaborar com esse material, e como tudo se conecta.
 
5) Quais os livros fundamentais na sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Alguns livros mudaram a minha vida. Começo citando As flores do mal, de Charles Baudelaire, que me fez aprender francês; esse é um livro que foi fundamental para mim. Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, livro que me acompanhou durante muitos anos, é também um livro fundamental. Alguns livros de filosofia também mudaram a minha vida; por exemplo, Crítica da razão pura e Crítica do juízo, de Immanuel Kant, foram livros que me tiraram do eixo e me recolocaram em outro eixo. E não posso esquecer os textos de Walter Benjamin que habitam no meu imaginário há muitos anos, e foram muitas vezes relidos.
Entre as leituras marcantes da juventude, lembro de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, que li quatro vezes quando adolescente; foi uma leitura muito intensa. Cito também Machado de Assis, que a meu ver é uma leitura intensa para todos, uma leitura a que sempre voltamos. Também Virginia Woolf. E um livro fundamental na minha infância foi Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, que aliás recomendo a todos; foi uma das leituras que me marcaram quando criança, e eu comecei a me interessar pela poesia a partir dessa obra.
Além desses, mais antigos, é importante falar dos textos que de algum modo me trouxeram de volta para o Brasil, e que me acolheram aqui quando cheguei; foram em grande parte textos poéticos. Tenho de falar de Lu Menezes, uma poeta que tem sido importante para mim; também Orides Fontela; meu colega e amigo Paulo Henriques Britto: sua obra foi e ainda é uma leitura importantíssima, uma leitura formadora. Aprendi muito sobre escrita poética com ele. Enfim, são muitos os autores fundamentais, os livros fundamentais na minha formação, mas eu mencionei alguns que de certo modo marcaram etapas na minha vida.
Atualmente tenho lido muita poesia contemporânea brasileira, dentro da minha pesquisa. É algo que me interessa trabalhar com poetas que, de algum modo, colocam em cena a questão da pluralidade linguística no seu trabalho poético. Eu comecei pensando que isso fosse uma exceção à regra, mas agora vejo que tenho uma pilha imensa de materiais que de uma maneira ou de outra trabalham com isso. Normalmente pensamos que a poesia tem relação com a língua materna, com o ritmo da língua materna – e tem mesmo. Mas tem a ver também com certo estranhamento em relação à língua materna, um olhar de fora; e nesse sentido muitos poetas são também tradutores ou, de algum modo, têm um trabalho que incorpora, de muitas maneiras diferentes, esse estranhamento em relação à língua e a relação com outros idiomas, propondo diversos tipos de abordagem como misturas lexicais, influência da sintaxe de outras línguas, autotradução...
Para mencionar um exemplo, trabalhei recentemente com Josely Vianna Baptista, que é uma grande poeta brasileira contemporânea, cuja poética surge dos seus estudos da língua mbyá-guarani, o que implica uma reflexão sobre a linguagem. Ela tem vários livros, e um livro especificamente é, metade dele, composto por traduções de cantos desse povo indígena, e a outra parte são textos dela que de alguma forma se relacionam com esse material traduzido. Enfim, eu tenho trabalhado muito com isso. Reli recentemente Roça barroca, da Josely, para pensar isso; li recentemente também, dentro dessa chave, fazendo um diálogo com ela, A queda do céu, de Bruce Albert e Davi Kopenawa, que também é uma figura incrível de intérprete. É algo que me tem interessando bastante, essa questão da pluralidade linguística no interior do território brasileiro, das línguas indígenas, portanto. Então andei lendo isso recentemente.
Quanto às minhas recomendações de leitura, há muitas obras interessantes para indicar. Todos esses que eu mencionei são recomendações de leitura, são autores que me interessaram e que eu recomendo. Walter Benjamin é uma recomendação de leitura. Também Franz Kafka, Marcel Proust... E de autores do Brasil contemporâneo, são tantas pessoas interessantes. Lu Menezes, Luci Collins, Josely Vianna Baptista, Marília Garcia, Ana Martins Marques, Aline Bei são recomendações de leitura.

6) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para as suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita?

Eu acredito que seja mais uma forma de abrir nossos olhos para as sutilezas da realidade. Podemos pensar, por exemplo, que a leitura absorvente de um romance, de alguma forma nos desloca daquilo que está acontecendo aqui e agora e nos transporta para outro universo; mas, de certo modo, também nos faz projetar uma distância crítica em relação às situações cotidianas, e pensá-las de outro modo. Não digo que a literatura faça isso necessariamente, até porque temos de dissociar o texto literário e a dimensão política; há uma política nas produções literárias, claro, mas há textos que não necessariamente apresentam questionamentos em relação ao nosso mundo. Eu acredito, porém, que a leitura literária nos permite criar uma distância em relação à realidade imediata e, por isso, indiretamente incita a colocarmos questões, a questionarmos o que encontramos no mundo real. 

7) Todos já fizeram poemas algum dia, em geral na juventude. Você já escreve poesia há muitas décadas. O que a faz permanecer poeta?

Eu sou uma jovem poeta, na verdade. Não sou uma pessoa jovem, mas sou uma jovem poeta. Eu escrevi poemas na minha infância e na minha juventude, mas depois fiz mestrado e doutorado, e minha ambição foi para os estudos, para uma escrita ensaística. Eu estudei Filosofia, e deixei de lado essa escrita poética por muitos anos; fiquei vivendo muito tempo fora do Brasil, escrevi por muito tempo só em francês e só textos teóricos. E o desejo de escrever poesia surgiu em um momento em que estava querendo voltar ao Brasil, querendo voltar a escrever em português, e tinha começado a traduzir alguns textos meus do francês ao português. 
O meu livro de estreia, Bye bye Babel, foi lançado em 2018 e reeditado em 2022 com poemas novos. Agora acaba de sair na França também, reescrito por mim mesma num processo que incluiu tradução, recriação e uma série de novos poemas escritos diretamente em francês. Um segundo livro de poesia deve sair ainda em 2023 pela Relicário edições. Chama-se Sombras longas. Enfim, essa escrita com objetivo de publicação, esse projeto poético mais maduro, só surgiu muito recentemente, embora a poesia tenha sido sempre muito importante para mim.

8) A partir da sua experiência como professora, o que você considera mais importante na leitura em sala de aula? Como formar alunos que sejam leitores proficientes?

Eu acredito que, para formar leitores, é preciso suscitar ocasiões para leitura, e é preciso conversar sobre o que foi lido. É importante esse compartilhamento de leituras, a conversa sobre as leituras, a criação de um espaço afetivo de troca em torno do texto lido. Isso ajuda a desenvolver essa proficiência leitora. Em sala de aula, é importante que se coloquem situações de leitura que são coletivas: ler juntos, ler em voz alta. Isso cria uma dinâmica interessante e inscreve o texto numa dimensão menos individual, o que ajuda a alcançar essa proficiência de leitura. Mas a experiência da leitura individual em casa é muito importante também, até para animar as conversas em aula. 

9) A atividade de professora repercute no trabalho como poeta? E vice-versa?

Sim. O trabalho como poeta repercute em sala de aula, porque, claro, ao escrever poesia, eu acabei conhecendo certas técnicas poéticas, e isso acaba ajudando a pensar e a discutir os textos. O fato de escrever poesia traz uma vivência, uma consciência de certas técnicas, da dimensão artesanal do texto, e essa vivência ajuda no trabalho como professora, sim. E a atividade de professora também repercute na atividade poética. É muito estimulante essa experiência de ler em voz alta e ouvir textos na voz das pessoas. Para mim isso é estimulante, sobretudo no que concerne ao texto poético. Ouvir o texto em várias vozes tem, para mim, um efeito de estímulo à criação, já que o poema surge do ritmo, vem com o ritmo da língua.
Aliás, eu preciso contar esta anedota. Há um poema que eu escrevi assim: ia andando para a PUC, onde trabalho, e o poema veio vindo na minha cabeça. Quando cheguei à sala, comecei a dar a minha aula e, no momento em que havia uma tarefa em grupo para os alunos, eu anotei o poema. Ninguém sabe, ninguém viu, mas o primeiro esboço do poema surgiu ali em sala de aula. E significativamente esse poema se chama Língua materna, e é dedicado ao meu filho. Percebo que há um estímulo que vem das vozes de alunos e alunas lendo e se empolgando com os textos. E isso é muito importante.

10) Quais as qualidades de um bom leitor?

Acredito que a maior qualidade de um bom leitor é não se assustar com o que não é compreendido, ou seja, o leitor deve “montar no próprio tombo”. Essa é uma imagem de uma poeta brasileira contemporânea, Simone Brantes; eu gosto dessa expressão. É preciso não se assustar com o incompreendido e entender que é a partir do que não foi compreendido que podemos construir uma interpretação. É naquilo que fica em aberto, naquilo que fica indeterminado que algo pode surgir. Portanto, um bom leitor é a pessoa que não se assusta diante do que não ficou imediatamente compreendido, e que, ao contrário, parte dali, entendendo aquela incompreensão como um desafio produtivo, e não como algo que o coloca para escanteio. Enfrentar a frustração que temos diante da não compreensão é uma maneira de entrar no texto, e o bom leitor está tranquilo com isso. Às vezes colocar boas questões a partir de um texto lido é mais interessante do que trazer respostas, às vezes o texto nos suscita mais questões do que respostas. Isso também é algo que tem a ver com a não compreensão; há coisas que realmente não vamos resolver, mas aquele enigma no texto é um ponto de partida.


Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.


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