sábado, 22 de junho de 2024

Fogo

comtemplo
a lua

e o templo
todo

se perpetua
no tempo

flutuante
em que flutua

a mente
arfa

ardentemente

Rodrigo de Souza Leão

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Entrevista: Lu Menezes — paixões, leituras e escritas

                                                     por Anny Games, Gabriel Harle, Lucas Viriato e Marcella Mahara


Lu Menezes nasceu em São Luís (MA), em 1948, e cresceu no Rio de Janeiro, onde vive atualmente. Morou em Brasília, onde graduou-se na UnB em sociologia. No Rio, doutorou-se pela UERJ em Literatura Comparada. Publicou os livros de poesia O amor é tão esguio (ed. independente, 1979/80); — Abre-te, rosebud! (Sette Letras, 1996); Onde o céu descasca (7Letras, 2011); Gabinete de curiosidades (com Augusto Massi, Luna Parque, 2016) e Querida holandesa de Vermeer (Luna Parque, 2020), além do ensaístico Francisco Alvim por Lu Menezes (col. Ciranda da Poesia, Eduerj, 2013). Seu livro mais recente é Labor de sondar (1977-2022): poesia reunida (Círculo de poemas, 2022).


1) Como a leitura e a Literatura entraram em sua vida e como você se relaciona com elas hoje?  

Entrou via Literatura infantil e contos de fadas, ao lado de revistinhas e o que estivesse ao alcance desta primeira e infindável paixão: "leitura" em geral. Soube que aos seis anos, família reunida em torno da grande mesa na varanda do sítio de uma tia, chega o caseiro com um bilhete para ela; levanto e sussurro em seu ouvido "Me deixe ler este bilhete, por favor!". Hoje, suplico ao Tempo que me deixe tempo para ler. Quanto ao que já escrevi, não ter rede social além do WhatsApp talvez contribua para eu ser, acho, bem pouco lida. Em compensação, algumas poucas pessoas me leem muito bem! Minha poesia  em 2022 reunida pelo Círculo de Poemas e publicada pela Fósforo em Labor de sondar, vem reforçando isso.


2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se artista ou torna-se artista?

Não sei, talvez varie. Ironicamente, o grande Rimbaud, caso clássico de poeta nascido "pronto", deu as costas a ser "poeta" — título tão honorífico no meio cultural quanto irrelevante fora dele.


3) Sendo uma filósofa e uma artista da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga? 

Botão de liga-desliga não tenho nem na livre-escolha nem no ter-que-ler. Estando quase sempre sujeitos à inconstância do inconsciente, podemos — sem prever — nos decepcionar, entediar ou encantar.


4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação? 

Artistas não são "verdadeiros" ou "falsos....Talvez, verdadeiramente bons ou ruins; depende do que você, eu, gregos e troianos achem. E, na relação arte-vida, a separação ou fusão de ambas deriva da arte e da vida de cada um. Absoluta relatividade certamente aí reina.


5) O que você considera ter sido fundamental para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual? 

Fundamentais: a leitura aos 13 anos de Minha vida de menina, de Helena Morley — pela simplicidade e precisão; e, mais tarde um pouco, Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll — pelo uso da linguagem também enquanto superfície, valor da camada significante. Atualmente, releio a poesia de Borges, tão incomparavelmente entranhada no que a história humana possui de mais atemporal! Magnífico antídoto para a terrível turbulência atual no Oriente Médio. E, a propósito, em chave "jornalística", os sempre excelentes artigos dominicais de Dorrit Harazim e Bernardo Mello Franco no Globo.


6) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, em outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua escrita criativa? 

A boa literatura não é "escape" no sentido de alienação da realidade: saímos do círculo do real imediato rumo ao encontro, via imaginação & linguagem, de outras possíveis faces suas reveladas. Quanto a isso, prefiro não tentar avaliar minha própria escrita; é tarefa pertinente à crítica literária.


7) Todos já fizeram poemas algum dia, em geral na juventude. Você escreve poesia há bastante tempo. O que te faz permanecer poeta?

Não sei se permaneço "poeta"... porque nunca ambicionei "ser poeta" — mas fazer bons poemas, com o mesmo direito ao prazer de criar que qualquer outro artista tem, mesmo sendo "poesia" uma arte "não-rentável".

 

8) Você nasceu no Maranhão e veio para o Rio de Janeiro ainda jovem. Poderia nos contar um pouco sobre as lembranças que guarda da infância e do seu estado natal?

As raízes são maranhenses, mas vim criancinha para o Rio. Não tenho, por isso, lembranças narráveis de São Luís, e esta entrevista não poderia ser sobre "minha infância no Leblon de outrora". Contudo, já que o seu motor foi o fato de eu "escrever", conto que meu bisavô paterno, Jefferson Nunes, "coronel todo poderoso e chefe político", como o descreve Sebastião Nery em seu Folclore político — que nele inclui três deliciosas historietas dele, era bastante espirituoso nos embates com adversários. E meu avô materno, além de juiz de direito, hábil sonetista. Algum lastro verbal "de raiz", portanto.


9) Você diria que essas lembranças e a experiência de deslocamento do Maranhão para o Rio, levando em consideração a passagem por Brasília, repercutem de alguma forma em sua obra?

Brasília foi muitíssimo mais que uma "passagem" em minha vida. Dos 13 aos 23 anos, foi um lugar maravilhosamente singular onde tive uma adolescência singularmente boa. Na UnB, depois de ingressar em Letras, acabei graduando-me em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia. De algum modo,  infância carioca e adolescência brasiliense induziram-me a escrever tendendo a equilibrar "figuração" — à sombra do Rio —  e "abstração" — à luz de Brasília.


10) A atividade de pesquisadora repercute no seu trabalho como poeta? E vice-versa?

"Pesquisa" é algo com amplíssimo espectro...Estudar já é pesquisar, e a pesquisa que mais me envolveu até hoje foi meu percurso estudantil (culminando em doutorado na UERJ).Ser estudante foi o que mais adorei ser na vida, além de mãe. E, sim: claro que estudar repercutiu na escrita; tudo pode repercutir na poesia que faço.


11) Quais as qualidades de um bom leitor?

Gostar de ler e ler com atenção são certamente indispensáveis a um "bom leitor" ideal. Também às vezes "discutir" com o que é lido. Por exemplo, com Borges quando diz no belíssimo "Elogio da sombra" que "La vejez (...)/ puede ser el tiempo de nuestra dicha./ El animal ha muerto o casi ha muerto./ Quedan el hombre y su alma."


Esta entrevista foi realizada como um desdobramento das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.


quinta-feira, 20 de junho de 2024

Menino chorou

Menino chorou
chora menino

menino chorou
chora menino

o maculalê
o rabo de arraia
a ginga do corpo
Tomara que caia
Na gandaia
Tomara que caia
Na gandaia
são seres humanos
vivendo a madorna
Em busca de proteção
ahaha ôô


Kelton Favela Chique

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Uma Écfrase de Thais Vicente

Composição Surrealista, 1929
Ismael Nery





















Cabeça e braço e mão
E tripas e coração.
Jogados e amontoados no chão.
Um verdadeiro desmonte.
Uma imagem realmente impactante.

Cuidado, meu caro!
Observando a composição surrealista,
se não tiver estômago,
Você pode sofrer um grande desconcerto.
Mas, se não for o caso,
Sugiro que aproveite sem medo!


Thais Vicente

terça-feira, 18 de junho de 2024

έρημος, de Milena Martins Moura


acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede
           acabei de ser a sede
o sino da igreja às três da tarde quando é quente
e uma brisa pouca e velha
arrasta o cheiro dos soluços
e entalha feições ao pé da boca
           para marcar as horas
acabei de meter os pés no deserto tardio
que se deita ao sol
onde vêm os pássaros procurar em vão o de beber
porque têm pés feitos para o fogo
e eu que lhes sou grande e tenho mãos com poder de morte
acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede
com bocas abertas para o céu
minha própria matilha de bustos de areia
            se debatendo pelo formato dos olhos
            pelo nariz de ossatura protuberante
            os lábios o de baixo maior herdado do pai
            rosto desenhado com ângulos
            orelhas desiguais
tudo isso que é meu e precisa ser mantido longe da chuva
para que não se desfaça
e de mim sobre apenas um deserto
que não sabe que tem sede


Milena Martins Moura

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Ódio II

 “que acreditava que eu seria grande.
raios partam a vida e quem lá ande!...”
Álvaro de Campos

Tédio de tudo
de ti, de mim,
da escassez do
barro
das lâmpadas
de led
da poeira
e do asfalto
dos rádios
ligados em
horário político
obrigatório
da Hora do Brasil
do Repórter Esso
do gesso que nos
une, dos
óculos, da
miopia
da noite
insone
dos bêbados
deitados
da insensatez
dos corpos
na manhã
que surge
por entre
as frestas
da morte
da dor
enorme
(“tédio com
T bem grande
pra você”)
dos editores
capitalistas
(que raiva
dos poetas
perfi-
lados
mendigando
publicidade)
das sombras
das futuras
gerações
da escada
do silêncio
e outras
tantas
ausências.


Milton Rezende

domingo, 16 de junho de 2024

pezinho pornográfico


esse pezinho pornográfico
exala o cheiro chulo
de tanto pisar em rugosos bagos

esse pezinho pornográfico
espesso de baixo calão
de tanto lamber sola de um pau

esse pezinho pornográfico
firma um calcanhar grosseiro
a arrombar em pegadas o cu

esse pezinho pornográfico
de dedadas tão obscenas
faz o meia nove virar 3/4

esse pezinho pornográfico
de calço tão indecoroso
faz fundura até com uma sapata

esse pezinho pornográfico
de formato tão vulgar 
só adentra buracos incomuns

esse pezinho pornográfico
de salto alto calça baixaria
não mede o quanto de grossura engole


Vinni Corrêa

sábado, 15 de junho de 2024

Um corvo no canavial


A lavoura era o inferno no mundo, os suplícios das almas condenadas debaixo do sol se repetiam e a cada suplício um novo flagelo, a vara já melada de sangue, incansável apesar de vergada. Tentar fugir era muito perigoso. Uma vez seu Expedito se perdeu pela noite no matagal e foi encontrado pelos cachorros que o senhor Paulo criava ali. Quando voltou correndo com medo de ser devorado pelos bichos, o senhor Paulo mandou os filhos dele atrás do seu Expedito e os moleques enfiaram a porrada nele. Vieram rindo os três, arrastando o corpo esquálido do velho; o pai deu um beijo na testa de cada um e disse que amanhã ia dar um jeito nesse nego imbecil e que os filhos já estavam virando homens, que podia deixar tudo que Deus deu nas mãos deles. No dia seguinte, assim que o galo cantou, o senhor Paulo mandou o capitão Lopes ir até aquela senzala de merda e acordar os crioulos porque já era hora de trabalhar e esses fodidos tão dormindo ainda. — Vocês vão trabalhar pra mim e pra minha família até morrer. Quem tentar fugir vai receber castigo igual a esse merda desse preto que ficou perturbando os cachorros ontem.

Seu Expedito chegou em estado de degradação, só com um pano ensanguentado cobrindo a intimidade dele — estava em público, tivesse algum pudor —, trazido pelos filhos do senhor Paulo. O olhar de seu Expedito era um olhar de afronta resignada; o pescoço pendia, mas ele ainda se esforçava em olhar para cima. Via aquele céu escuro, certamente choveria mais tarde. Quando chovia na lavoura era um pouco de um alívio, cada gota era como um beijo nos nossos vergões — não curavam nada, duravam pouco.

O senhor Paulo mandou o filho mais velho ir ao arsenal buscar um sabre que tinha pertencido a um parente Dragão da Independência. O garoto devia ter uns dezessete anos, era um moleque feio, tinha os dentes tortos do pai, andava trôpego e corcunda. Sempre contou com as armas paternas, e agora ele mesmo empunhava um sabre, tinha poder, brilhava algo de seu próprio, talvez tenha até pensado em parricídio naquele momento, apenas por um instinto selvagem, pelo desejo de ter tudo aquilo. Muito bem, disse o pai, me dê esse sabre aqui. Nossos antepassados estariam orgulhosos de você, sempre leal ao seu pai e à sua pátria. Hoje você vai virar homem mesmo, de uma vez por todas. Com esse sabre aqui você vai capar esse preto velho e depois vai escolher uma neguinha daquelas ali pra foder. Está na hora de você aprender essas coisas, é com punho de ferro que a gente tem que tratar essa gente.
 
Seu Expedito caiu sobre os joelhos, de seus olhos não escorreu uma lágrima, a boca escancarada revelava um homem humilhado desde o seu nascimento, um homem que nunca pôde e nunca poderá ter uma segunda chance, um homem que nasceu em um mundo que o odiava e tentou, no crepúsculo de sua vida, dele escapar. Ele olhou para baixo, viu seu sangue jorrando na lama; olhou para as mãos ensanguentadas do garoto, que agora tinham suas bolas. A chuva caiu, foi disfarçando o sangue na lama, escorreu pela pele de seu Expedito volteando seu esqueleto sobressalente, foi se tornando um peso, e seu Expedito desabou com a cara na lama, seu pranto cessou, morreu.

Os outros filhos viram a cena chocados, mas também não fizeram muito da morte que se apresentava tão cruamente. Senhor Paulo abraçou o garoto assassino, os cachorros deram conta de trucidar o resto daquele corpo, os testículos eram um aperitivo. O garoto, com o sangue escorrido pela chuva nas mãos, agarrou o braço de Dina e arrastou-a para a casa grande. Dina berrava, se retorcia, olhava para trás, mas seus apelos eram em vão.

Eu tentava desviar o olhar, tinha acabado de acordar, era demais para um só corpo de gente, e eu ainda não era seu Expedito, eu não era Dina. O capitão Lopes levantava a minha cabeça e de qualquer um que
tentasse evitar a cena, era preciso ver, era preciso sentir o castigo. Seu Expedito podia ser qualquer um de nós, seu Expedito era só um preto, e era melhor um preto morto, desfazer-se da propriedade, à humilhação de um preto fugido. Uma náusea tomava conta de nossos corpos, algo que quer flutuar para desaparecer mas tem raízes lançadas no solo, fincadas na carne da terra. Seu Expedito se foi como viera, sem alterar a face do mundo com sua dor e suas efêmeras alegrias, era só um corpo
destroçado no chão, sem brilho.

Passaram-se os dias e a chuva lavou aqueles restos de homem, o cheiro acre do corpo em putrefação foi sumindo no vento, flores até teimaram em emergir em meio a tanta brutalidade. A lavoura voltou aos poucos a ser o inferno de sempre, os flagelos voltaram a ser cada vez mais insustentáveis, mas os suplícios foram embora. Dina era raptada ao bel-prazer do filho do senhor Paulo, e voltava dos cômodos escusos da casa grande coxeando, cheia de hematomas, com as costas arqueadas, completamente desfigurada, com as marcas da violação nos olhos perdidos. A paz do senhor Paulo e a prosperidade tão pedida em suas orações diárias ao pé da cama e na capela enfim lhe haviam sido
concedidas.

Quantos Expeditos e Dinas tiveram que existir para que chegássemos aonde estávamos, e quantas vezes essas mesmas flores emergiram violentamente da terra maculada, sem pedir licença a nós? Em uma noite insone eu ouvi um incessante gralhar vindo do canavial. Fui em direção ao que parecia ser o centro daquele ruído, um transe insensato tomou conta de mim, cólera, uma vertigem. Havia apenas escuro e o cruzeiro acima de nós, e eu me aproximava do que parecia ser uma besta voraz, aquele gralhar desgraçado prenunciava o fim, mas o que temer? Em frente, dizia algo dentro de mim, sem juízo e sem medo.

Estava ali, tão fora de lugar, um corvo. Um corvo apoiava-se no topo da mais viçosa cana, gralhava incessantemente, o ar diabólico, ardorosamente. Não tinha medo dos cães, aquele corvo? Era louco? Era um corvo. Estendi minha mão, queria tocá-lo, sentir sua penugem. Das profundezas de que terra saiu aquele monstro esfíngico, enigmático? Seus olhos encerravam o mundo. Encará-los era destrutivo. Seus olhos fundos não desistiam de mim, arrombavam minhas retinas, mas eu resistia. Como um espelho turvo que nos revela do avesso, o corvo refundava o mundo insuportavelmente.

Ele abriu suas asas, apresentou sua envergadura; era um belo ser, a penugem negra se confundia com o breu noturno, da cor do silêncio. E então, tão só quanto veio, o corvo se foi, voou para longe; eu corri, corri como pude em seu rastro, a despeito do escuro, a despeito do vento, a despeito dos cães e a despeito da cana, corri sem olhar para trás, entorpecido, e a aurora se rompeu. O sol emergiu implacável e vermelho. Ardeu algo aceso dentro de mim, a essa hora o galo cantaria, mas não cantou. Adeus, lavoura.


Pedro Rangel Soares

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Uma Écfrase de Victor Augusto




Glorioso pintor Di,
O que dizer do que me dizes?
Te conheci por Glauber Rocha
Por Marília, Lucas, também Ives.
Ouço a poesia que inspiras,
Vejo o Brasil que tu pintaste.
No teu enterro, diz sua família,
Teu amigo foi um traste.
Mas me causou agitação
Ver sua obra ser narrada,
Me causou inquietação
Ouvir tais versos de tua estrada
Das mulheres de Paris
Da tequila mexicana,
Sabendo que a mais bonita
Mais parece uma baiana.
Sou teu amigo de Brasil
E malandro não me engana.
Soube dos atos de vandalismo?
Os vândalos pegaram cana
Depois do antipatriotismo,
Depois de rasgarem o teu quadro.
Hoje, são eles, caro Di,
Que veem o sol nascer quadrado.
Há na presidência um brasileiro
Parece saído de suas pinturas.
Acredite, Di Cavalcanti,
Houve amor, mas muita luta,
O povo não entendeu
O valor dos tons pintados,
Talvez não soube apreciar
O valor do teu legado.
Mas respiro o aroma colorido
Da arte tua, dos teus amigos,
Agradeço por apreciar
E ter na memória eles comigo,
Ser fruto da tua semente
É nascer na atualidade.
Os infelizes, reacionários
Cairão antes cedo
Do que tarde.


Victor Augusto

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Comentário sobre uma écfrase da obra "O impossível", de Maria Martins


No livro publicado pelo MAM de São Paulo em 2013 em vista da exposição Maria Martinsmetamorfoses constam dois ensaios de Verônica Stigger e Raul Antelo sobre as obras da artista. Embora os autores abordem uma gama de obras distintas, ambas reflexões giram em torno do título da exposição: metamorfose. Ao falar de escultura, a ideia de mudar de forma tem quase a força de um pleonasmo visto que, em última instância, escultores são os artistas que se debruçam sobre a matéria bruta, atuam sobre ela e fazem-na linguagem poética. O que me foi interessante nos textos em questão e motivou este trabalho e écfrase são as relações exteriores à obra de Maria Martins que Stigger e Antelo convocam em seus ensaios.

Quando Stigger reflete sobre o conjunto de esculturas amazônicas, lembra que Euclides da Cunha, padrinho de Maria Martins, descreveu a Amazônia como “a terra que ainda está crescendo”, em que “sua fisionomia altera-se diante do espectador imóvel”. Diz Stigger que “Martins estava em sintonia com todo um pensamento brasileiro moderno (não só modernista) da forma como formação incessante
(grifo meu). A constância no movimento e fluidez atribuídos à misteriosa floresta amazônica por alguns intelectuais foi mais um fator que contribuiu para que os modernistas daquela época reconsiderassem seus trabalhos com a forma clássica. Em Cobra grande (1943), Uirapuru (1944), Iacy (1943), Boto (1942) e Yemanjá (1943), Maria Martins reúne figuras chaves da cultura dos povos amazônicos e constroi esculturas onde tais figuras são embaladas por cipós (ou galhos, ou raízes), envolvendo-os como parte de um movimento natural. Nesse sentido de forma como formação incessante, é impossível não pensar em Macunaíma, de Mário de Andrade (1928), que de fato se transforma fisicamente ao longo de toda a história; e também no Cobra norato, de Raul Bopp (1931), que narra, em trinta e três poemas de verso livre, as aventuras da figura mitológica homônima pelas terras amazônicas. Este último, numa descrição extremamente metafórica, sinestésica e divertida, reaviva os elementos da paisagem (plantas, riachos e animais) através de sua linguagem. O movimento modernista brasileiro, trabalhando por um ideal nacionalista, aproxima os elementos polarizados natureza e cultura ao invocar essas novas formas, infringindo sobre um pensamento ocidental, colonial e logocêntrico.

Já no segundo texto, para Raul Antelo, subvertendo, quem sabe, a ideia de “espectador imóvel” de Euclides da Cunha, a metamorfose acontece de dentro pra fora. Antelo interpreta a obra O impossível, de Maria Martins (déc. 1940), ligando-a às interpretações de Bataille sobre o desejo e a poesia, em que reflete sobre a procura do artista pela representação poética da experiência única. Diz Antelo, ao abrir seu texto: “cabe pensar que essa escultura funciona, para a artista, como uma indagação sobre a finitude, ou se quisermos, como um modo de conceber a experiência após a finitude, que é um dado central do moderno”. E sobre a poesia, parafraseando Bataille, diz que “querendo a identidade das coisas refletidas e da própria consciência que as refletiu, quer o impossível.”. Portanto, a cada obra que se finaliza, nasce novo desejo de fazer-se outra, e assim sucessivamente. É isto que há de fluido e metamórfico no próprio artista, e aqui se encaixa bem uma frase do texto de Verônica Stigger que, ao falar de Macunaíma, nota que “não é a terra que se acha em permanente elaboração, mas o próprio homem”. O artista tenta dar corpo à experiência exterior e à consciência interior a si, mas a linguagem poética de uma obra nunca dá conta desse movimento por completo, nunca o esgota. Lembro-me da entrevista de Maria Martins conduzida por Clarice Lispector, citada no texto de Stigger e que pude ler na íntegra, em que aparece esta frase de Maria: “[a] melhor lembrança é quando começo uma escultura. No meio fico um pouco desanimada, no fim nunca é o que eu queria, e fico com esperança na próxima.”. Assim vai se desenhando a ideia da poesia sempre referente ao desejo impossível de apreensão total de um objeto, exterior ou interior ao artista, mas também a insistência e retorno a tal procedimento. Antelo chega a O impossível, portanto, por este ângulo: a retratação do movimento do que é inalcançável, do desejo do desejo, que pode falar tanto do desejo erótico quanto do poético (e tem quem diga que são iguais).

Para finalizar este trabalho, gostaria de fazer alguns comentários sobre a écfrase. Em primeiro lugar vale ressaltar a questão formal. Depois de tantos pensamentos de Bataille sobre a poesia evocados por Antelo, me arrisquei a fazer um poema e dialogar com as reflexões as quais estava tendo contato. Para sua construção, não quis me ater a nenhum contrato métrico, justamente pela liberdade e espontaneidade concedidas pelo verso livre, já que estaria fazendo um poema a partir de sensibilidades ativadas por outra obra. O único detalhe é a formatação dos versos: quis alternar as margens as quais estão alinhados para produzir um efeito similar aos dentes/garras e fendas da obra de Martins. Além disso, tentei descrever e ao mesmo tempo refletir sobre o que me pareciam as figuras, a estranheza e fascínio provocados, tal como um monstro, tal como o erótico. Quis também falar sobre essa mobilidade, infinitude, fluidez impossível de capturar. Para isso, usei a palavra “gerúndio”, imaginando que seria uma boa imagem para caracterizar algo ainda em curso, já que estamos no âmbito da linguagem além dos versos finais, dando a ideia de que a natureza do desejo é desejar, e portanto não existe objeto apreensível, mas sempre uma vontade “de morder”.


Paula Reis Vianna

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Écfrase da obra O impossível, de Maria Martins


 












primeiro é pelo barro, terracota,

e depois o mármore.

depois se afeiçoa à cera perdida,

que é o “infinito porque não tem limites”.


com a cera molda-se mais livremente

mas uma vez que é revestida com o gesso

e o gesso, tornado negativo,

preenchido de bronze, é levado ao forno,

o calor do forno desfaz tudo:

cera, gesso e molde.

recriar O impossível por volta de três vezes

— todas elas diferentes;
todas elas parecidas—

custou cerca de dois anos.

tal tempo parece um disparate

(ou mesmo impossível)

para alguém que está moldando algo como aquilo.

na escultura, duas figuras estão sentadas cara

a cara, e de suas cabeças

saem dentes, afiadas garras

e se olharmos assim, parecem

pentes de cabelo

se os pentes dessem-nos

um pouco de medo.

O impossível se estica

e possivelmente alcança

a representação do desejo de desejar.

o observador é impelido a notar a selvageria,

monstruosidade e invasão

alongadas numa textura

lisa e erótica,

límpida e antropofágica.

as figuras estão como dois amantes

prestes a se beijar

se beijar fosse um ato afiado, corrosivo,

que deixasse lascas

e tirasse nacos.

um ato reservado

unicamente ao nosso aparelho dental.

um ato

que acontece no gerúndio.

o desejo, portanto, está aí:

corrosivo e dental, salivando.

sem conter nada, mas sempre querendo

morder.



Paula Reis Vianna

terça-feira, 11 de junho de 2024

Tintório ou Tintorial


Auto-retrato - Toureiro, 1922
Ismael Nery






















Olhos arqueados, 
como se mirassem flechas 
a quem faz contato.

Olhos zangados,
Como se estivessem em chamas,
As negras pupilas. 


Num auto retrato,
Seu olhar contrariado
Parece fazer um breve relato
De um momento descontente.

Nos finos traços em óleo sobre a tela,
A expressão de um sentimento Tintorial
é transmitida como um sentimento próprio,
de fato.

Aparentemente,
além do poeta,
o pintor também é um fingidor,
descarado e indecente,
capaz de fingir que é dor,
a dor que deveras sente.

Resta uma dúvida, afinal.
É, essa dor,  um sentimento
Tintório ou tintorial?


Thais Vicente

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Um texto de Eduardo Moraes


Sempre gostei de Matemática. Matemágica – diriam os mais gaiatos. Os números e as infinidades que giram em torno deles sempre me fascinaram. As contas de cabeça foram diminuindo ao ver que eu tendia para as Humanas, mas faço uso da máquina de calcular sem vergonha ou pudor, brinco com os números incansavelmente.

Viramos amigos.

E a harmonia mais gostosa dos números é a combinação deles com o tempo. Adoro brincar com o relógio e sua mania infatigável de contar as horas, os minutos e os segundos.

180 segundos. Tempo médio entre as estações da Linha 1 do metrô carioca. Fiz essa conta nas minhas incontáveis viagens de Copacabana à agitada Central do Brasil. A espera pelos vagões inacabáveis que nos levarão de lugar algum para lugar nenhum? Demorados 240 segundos. Sim, demorados, para quem está com pressa e atrasado todos os dias.

90 segundos, já chegarei neles.

Comprando a passagem na estação Siqueira Campos, ouço um dos trens partindo. Era o meu, pegaria o próximo nos longos 240 segundos subsequentes. Fui descendo devagar, deixando o tempo correr, desci um degrau de cada vez.

Pelo menos 120 segundos passaram da bilheteria à plataforma.

Foi quando vi um rosto conhecido. Sabia de onde, mas nunca tinha trocado duas palavras. Talvez tivesse em alguma rede social, mas nossa relação era nula. Morena, queimada de sol na pele e no cabelo, típica carioca, não tinha como negar. Eu sabia que ela namorava. Fui chegando um pouco mais perto. Proposital? Não digo (e nem sei dizer). Tiro meu casaco num movimento estabanado, retomo a compostura e o coloco na mochila.

Ela me viu.

Olho sob angulação discreta, mas consigo perceber suas pupilas dilatando. Fico bobo, arrumo a camisa social azul marinho, pomposo. Miro a moça passando os olhos para a esquerda, ainda modesto e a vejo usando a estratégia do meu primeiro olhar, ao mesmo tempo em que ajeita a postura. Eu me permito voltar o olhar à direita, agora mais vagarosamente, ela arruma o cabelo, num movimento tão brusco quanto o meu ao retirar o casaco.

Precisávamos de um pouco de Karatê Kid.

Ela me olha fixamente enquanto eu não a encaro. Eu encaro, ela vira o olhar e com os lábios em movimento, molhando suas superfícies, mira um ponto fixo e dá dois passos destemidos à frente, que imaginei ser apenas um charme.

Charme? Aos 90 minutos (segundos) de jogo? Aí era demais.

Eu estava em transe. Ela não fez mais nada. Voltei a mim e retomei os meus sentidos, olhei de relance para o ponto que ela olhava.

Era o metrô.

Ainda faltavam 30 segundos de espera, mas o trem já estava ali, acabando com o
meu flerte. Me recomponho por completo, e percebo que estou do lado errado da
plataforma.

Sabia!

Os números não erram, mas os romances no Rio, mesmo que de 90 segundos, nos fazem errantes.


Eduardo Moraes

domingo, 9 de junho de 2024

a festa de Léo

























para Luciana Bezerra

a cidade
(dividida metade)

o dinheiro 
(ou a falta dele)

as drogas
(e o uso delas)

a família
(na força dela)

a festa
(fartura sem falta)

a vida
(como der e vier)


Lucas Viriato

sábado, 8 de junho de 2024

Dialogue, poema de Patrícia Lavelle


J'ai ressenti ton regard durcir
entre mes
mots :
intumescence immédiate
dans cette fente
obscure
entre le corps et le discours.


Patrícia Lavelle

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Entrevista: Marcela Sperandio — a multiartista e as pontes construídas

por Lucas Viriato e Marcella Mahara

 

Marcela Sperandio nasceu em 1986. É formada em Filosofia. Cantou no Coral da PUC-RIO e na banda de disco punk Spllash!. Foi modelo e estudou cinema. Em 2015, publicou seu primeiro livro, intitulado Estranha de mim, pela Editora OrganoGrama, com poemas e desenhos retirados de diários íntimos e cadernos escolares. Em 2018, publicou seu segundo livro de poesia: Outra que não eu, pela Editora Raiz. Atualmente, é editora de vídeo.


1) Como a leitura e a Literatura entraram em sua vida e como você se relaciona com elas hoje?  

A leitura entrou mais pela escola, pela obrigatoriedade de ler para as provas. Eu nunca lia ao longo do semestre, postergava a leitura até o último final de semana antes da prova e então me dedicava com afinco a ler o livro em dois dias. Em algumas ocasiões me vi capturada pelo texto, e vivendo com intensidade todo o universo repleto de imagens e reflexões que se abria para mim através dos livros. Esse foi o caso do livro O mágico desinventor, de Marco Túlio Costa. Um livro fantástico que aborda problemas que enfrentamos a nível global e planetário, como poluição, desmatamento e risco de extinção. Acho que eu li com dez ou onze anos.

Eu frequentei por anos uma escola católica. Era praticante, acreditava em Deus e rezava antes de dormir. Até que na sexta série estudei sobre a Inquisição. Eu sou uma mulher que gozou de todas as liberdades. Eu tive certeza de que se eu existisse naquela época teria sido assassinada pela Igreja. Foi como se meu mundo tivesse desabado. Conforme ia caindo a ficha do papel que a Igreja teve na História Ocidental e quantos massacres ela fundamentou e cometeu, eu fui me metamorfoseando de criança em adolescente, profundamente horrorizada com tudo o que eu absorvia da cultura. Estudar a colonização, o processo de escravização, a Inquisição, o nazismo, todos esses temas me tiravam do centro e alimentavam uma revolta na minha alma. Passei a olhar para fora com uma profunda descrença, um desencanto. Enquanto meu interior borbulhava, eu crescia, meio em estado de choque.

Com doze anos comecei a prática de escrever em diários e dali um outro mundo surgiu. Comecei a usar os cadernos como válvula de escape, local de desabafo e também de autoconhecimento, além de experimentação poética. 

Na escola construtivista em que eu entrei na oitava série, havia uma biblioteca incrível, onde eu li o Canto dos Malditos, livro em que o filme “Bicho de sete cabeças” foi inspirado. Pude ler com indignação a história de um jovem que foi trancado em manicômios por fumar um baseado. Conheci a luta antimanicomial no Brasil. A partir de então comecei a explorar a leitura de uma maneira muito mais apaixonada.


2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se artista ou torna-se artista?    

Acho que nada é uma coisa só, tudo tem sempre, pelo menos, dois lados. Como se a unidade fosse constituída por contrários. Nesse sentido, trazemos alguma coisa conosco, como uma faísca que não podemos explicar, assim como realizamo-nos enquanto coisa construída. Parece-me que o artista tem uma predisposição da alma em trazer à luz o que está no invisível. Gosto da ideia de pensar que o artista, o louco e o xamã tem muito em comum. Os três acessam a imensidão do invisível, do imaterial e sem forma, do escuro, do inconsciente, mas só o artista e o xamã retornam e fazem a ponte entre os dois mundos de forma estruturada. O louco permanece imerso. Acredito que esse dom artístico seja inerente, próprio do ser humano. No entanto, esse dom só se realiza enquanto prática. Portanto, arte é trabalho árduo. Quanto mais engajado você está em sua prática artística, mais acontece de um fluxo perpassar você e suas criações acontecerem com ritmo e fluidez. 

É claro que para se engajar na arte poética é necessário uma predisposição estética. Como são os sentidos do artista? Eu diria que são intensos. O artista sente intensamente e isso o alimenta e impulsiona a criar. Assim como o foco é necessário para a leitura, ele o é para arte. Um foco e uma determinação que é o próprio ofício do artista. 


3) Sendo uma filósofa e uma artista da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga? 

Eu, enquanto leitora, sou sempre uma leitora amadora! Meu jeito de amar inclui o ato de criticar. Não consigo desligar o botão do olhar crítico, mas às vezes, a obra te captura com tal intensidade que você fica imerso e não há distanciamento para crítica, apenas fruição estética. Aí a crítica chega depois, mas sempre chega.


4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação? 

Gosto de ver a arte como expressão essencial do indivíduo. Há muitos anos, quando eu era mais jovem, tinha muito mais tempo e era mais produtiva artisticamente, eu gostava de pensar na arte como excremento, algo como um vômito ou cocô. Você não pode escapar, é algo vital e necessário, um impulso incontrolável que te alivia. Eu sentia isso ao criar: produzir era quase uma imposição. Ao olhar para o mundo eu sofria e precisava me expressar e fazia isso através de textos e desenhos. Eu acho que o artista experiencia a vida intensamente e dessa intensidade toda vem a necessidade de expressão. Com o passar do tempo e com a chegada da vida adulta, eu tomei caminhos que me afastaram da arte. Trabalhar numa jornada de 54 horas semanais, de segunda à sábado, afasta qualquer um da reflexão e produção artística. Pra mim, a vida está totalmente ligada à arte. É da experiência vivida que brota o substrato para a arte. Ao mesmo tempo, entrar em contato com a obra nos dá ferramentas para elaborar visões sobre a vida.


5) O que você considera ter sido fundamental para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual? 

Eu tive muita sorte. Primeiro, por ter uma mãe atriz que me levava para assistir às suas apresentações quando eu tinha entre quatro e sete anos. Assisti muita peça da coxia. Depois, porque meu pai foi empresário de artistas brasileiros e atuou como produtor de grandes shows e em gravadoras, de modo que eu cresci rodeada de muita música boa. Na adolescência, tive a  sorte de descobrir o CEP 20.000 quando tinha entre treze e catorze anos. Lá, e em outros eventos da cidade, pude conhecer, conviver e me alimentar do texto, mas também das personalidades de grandes poetas cariocas como Guilherme Zarvos, Ricardo Chacal e Tavinho Paes. O CEP é um evento de poesia que foi crucial para a minha formação. Lá eu me encontrei, embora eu ainda me sentisse perdida. Morria de medo de subir no palco, demorei anos para relaxar. Me descobrir cantora ajudou nesse processo e só depois de cantar no coral da PUC e numa banda de punk rock chamada Spllash! que eu comecei a me sentir mais à vontade com um microfone. 

Algumas obras me formaram enquanto pessoa. Demian e O Lobo da Estepe, ambos de Herman Hesse, Orlando, de Virginia Woolf e Frankenstein, de Mary Shelley fizeram isso. Gostaria de citar duas obras cinematográficas, são elas os filmes The blood of a poet, de Jean Cocteau e Teorema, de Pasolini. Na música, o rock and roll foi crucial. Nessa fase mais adulta os livros do educador José Pacheco me ajudaram a achar um rumo produtivo pro bando de críticas que eu colecionei ao longo dos anos a respeito do sistema de ensino. Eu citaria os livros Dicionário de Valores e Inovar é construir um compromisso ético com a educação

Eu estou terminando uma pesquisa que investiga o uso veritativo do verbo “ser” em grego. Ela tem como base um livro de ensaios de Charles Kahn, Sobre o Verbo Grego Ser e o Conceito de Ser e o poema de Parmênides.

Então é isso que eu tenho lido ultimamente.

Eu indico como leitura a tradução em português do livro do Mark Coeckelbergh, Ética na inteligência artificial e o livro Superinteligência, do Nick Bostrom. Eles abordam muito do que precisamos saber para navegar na era ultra tecnológica na qual estamos entrando. 


6) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, em outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua escrita criativa?   

Acho que a Literatura proporciona ao leitor a experiência de uma ‘outra’ realidade. Quanto mais o leitor se deixa levar, mais é capturado pelo texto, então pode ter, sim, um teor de alienação, isolamento, na leitura. Mas, por outro lado, a leitura abre universos inteiros e a capacidade de se colocar no lugar do outro. Eu acho que, mesmo sem ter essa intenção por parte dos escritores, a literatura, a filosofia e a arte proporcionam um antídoto à desumanização do Outro. Através da reflexão, da expressão artística e da experiência estética, vivenciamos coisas que nos modificam e que transformam a maneira pela qual vemos o mundo e atuamos nele. Parece-me que desumanizar o Outro está na raiz de muitos dos males que vivemos. Eu acho que o mais urgente em nossa cultura é sanar isso. É esse processo que cega as pessoas e gera assassinatos, extermínios. É isso o que está por trás de barbáries como a Inquisição, a escravização, o Holocausto, que vimos há algumas décadas e, agora, o genocídio em Gaza. Por outro lado, quando lemos Ailton Krenak, vemos que a ideia de 'ser humano' do Humanismo carrega uma noção de superioridade do homem enquanto espécie. Como se ele ocupasse o topo da cadeia de seres da Terra, como se fosse a espécie mais importante e tivesse o direito legítimo de dominar e controlar as outras espécies e os recursos naturais como bem entendesse. O que a gente faz é extrair o que chamamos de recursos da natureza sem pensar em mais nada. Sem perceber que a nossa vida depende da vida dos rios, dos mares e de todo um equilíbrio que se manifesta tanto global, quanto localmente. Então chegamos num ponto em que a atividade humana é marcada pela destruição do planeta e pelo descaso com as outras espécies. Para manter o nosso estilo de vida, devoramos tudo ao nosso redor.


7) Você estreou na literatura com o livro Estranha de Mim (OrganoGrama Livros, 2015). Este livro continha muito de suas “angústias e devaneios da adolescência”, rabiscados com desenhos na marginália dos cadernos escolares. Como foi o processo desse trabalho? Qual a diferença daquela Marcela para a que vemos hoje em dia?

Era um fluxo intenso. Sou daquela geração que cresceu sem smartphone. Na minha adolescência, eu passava muito tempo no meu quarto escutando música, às vezes pintando, desenhando, com amigos, às vezes lendo, gravando vídeos e tirando fotos, bolando apresentações. Foi um tempo mágico em que eu tomava nota de tudo e rabiscava quase compulsivamente em cadernos e tinha uma rede de pessoas que vivenciavam toda aquela efervescência comigo. Eu levava comigo uns cadernos em que escrevia poemas, desenhava, relatava meu dia ou alguma reflexão. Tinha muita reclamação também. A brincadeira sempre foi se desfazer no fluxo e deixar o caos levar à ordem. Eu fazia esse processo com desenhos e textos. Os cadernos de escolas serviam como base, pois eu raramente estava presente na aula. Um dia queimei todos os diários, não sem antes retirar as partes que achava mais importante. Eu queria me desfazer daquelas reclamações, eu sempre fui muito reclamona. 

Hoje em dia é mais difícil produzir coisas desvinculadas do meu ofício de editora de vídeo. O tempo corre tão rápido e as tarefas do cotidiano se impõem de maneira que escrever com afinco e desenhar se dá “nas horas vagas”. De qualquer maneira, é possível trabalhar, cuidar dos filhos, finalizar uma pós-graduação em filosofia antiga e trabalhar no meu novo livro que é destinado ao público infantil.


8) Depois dessa estreia na poesia, você lançou outros títulos. Poderia falar um pouco mais deles? Como se deu a continuação da sua carreira como escritora?

Publiquei o livro de poemas Outra que não eu, pela Editora Raiz. O livro faz parte da coleção Ruído, com novos escritores. Durante a pandemia , participei do livro infantil Conto em Casa com a história “A roseira” que trata, de maneira simbólica, questões sobre a vida e a morte. O livro é uma coletânea de contos que abordam, com delicadeza, sentimentos angustiantes vivenciados pelas crianças durante a pandemia da Covid.


9) Está trabalhando em algum projeto atualmente? Pode nos adiantar o que vem de novidade por aí?

Estou trabalhando no meu primeiro livro infantil. A história foi criada fazendo meu filho mais velho dormir, há alguns anos. É ilustrado pelo meu marido. Fala sobre o sentimento de pertencimento ao planeta, sobre ser um filho da Mãe-Terra. Conta a história de um menino-pássaro que vive em um outro mundo e vem parar aqui. O livro traz questionamentos acerca do que é o homem e dá uma resposta, vinculando-o ao espaço que ele ocupa. O ser humano é a conexão entre o céu e a terra. É tudo isso, mas também pode não ser. Muitas vezes, estamos de fato desconectados dessa Mãe-Terra, assim como de nós mesmos. Quando colocamos os pés no chão e nos conectamos com a natureza, percebemos toda a grandiosidade da Terra, grandiosidade que está também no ser humano, sendo ele fruto da Terra. Acredito que seja isso que precisamos para seguir em frente: enraizar. 

Nós estamos com uma campanha de financiamento coletivo para publicarmos o livro. Você pode nos apoiar clicando no link e escolhendo um valor como contribuição. Separamos recompensas lindas feitas a partir das ilustrações do livro: https://benfeitoria.com/projeto/ovoodomeninopassaro.


10) Você já se aventurou como modelo, editora de vídeo, cantora de banda de rock alternativo, curadora de evento poético com Tavinho Paes, filósofa formada e praticante, entre tantas outras. Como se dá essa multiplicidade artística para você? Como isso tudo se conecta?

Minha mãe era modelo nos anos 80, então eu nasci no meio desse contexto da moda. Eu fazia fotos e comerciais para TV quando ainda era criança. Desde os doze eu escrevia e desenhava, mas mostrava bem pouco. Foi através da música que eu me realizei primeiro como artista. Durante muito tempo, tudo o que eu mais queria era cantar. Por sorte, nessa época do início da faculdade, eu mandei meus poemas para o jornal Plástico Bolha e, para a minha surpresa, vários deles foram publicados. E dois contos também! Isso me deu autoestima e vontade de publicar meus textos e desenhos mais antigos, coisa que fiz no livro Estranha de Mim.

Eu demorei pra entrar na faculdade. Antes, eu fiz um ano de curso técnico de estilismo e um semestre de educação artística. Acabei descobrindo a filosofia e entrei na PUC, onde logo comecei a pesquisar sobre cultura grega, mais especificamente sobre o deus Dionísio. Trabalhei por anos na televisão até que, depois de dois anos de pandemia, home office e a maternidade, tive um piripaque nervoso e me demiti. Hoje sou editora de vídeo, mas atuo como autônoma. 

Então eu diria que essa multiplicidade toda, no momento, se conecta através do sofrimento de não ter tempo suficiente para realizar tudo o que eu gostaria. Isso com certeza… Mas, pensando por outro lado, se conecta pela necessidade do encontro, pela troca. O que mais me instiga a produzir é, por um lado, o ímpeto expressivo e a troca com o outro, o encontro. A obra brota do artista, mas precisa de toda uma comunidade para existir. A troca é o mais importante, realizar o evento “Voz à Vossa” com o Tavinho Paes me fez perceber isso. 


11) A experiência da maternidade perpassou a sua escrita?
 
A maternidade perpassou-me por inteira. Se antes de ter filho, na época da faculdade, eu conseguia participar de diversas atividades, hoje em dia, posso me comprometer com bem menos coisas. Mas não é só isso. Virar mãe foi uma transformação profunda e me modificou em todos os sentidos. Reencontrar a sua identidade após o puerpério não é tarefa fácil. Parando para pensar, depois que virei mãe, quase tudo o que eu escrevi foi direcionado às crianças. 


12) Quais as qualidades de um bom leitor?

A qualidade de um bom leitor é o foco. Foco e uma capacidade de abertura, de se deixar levar pelo texto e por aquilo que o texto desperta em si. Uma boa leitura é um universo que se abre para o leitor e o toca completamente.


Esta entrevista foi realizada como um desdobramento das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.


quinta-feira, 6 de junho de 2024

Bebedeira, de Jovino Machado

o tédio na banheira
é o intervalo
entre a ressaca
e a próxima bebedeira

Jovino Machado

quarta-feira, 5 de junho de 2024

um poema para Oxum


omiro wanran wanran wanran omi ro

água ensolarada, yèyè sawo
bem vinda água do bosque Osogbo
joia do fundo
da barriga dos seus filhos
canto pra que se espalhem os caminhos pro teu rio
onde a água é contralto e nossas guelras funcionam
com fôlego de namorados


Juliana  Bernardo

terça-feira, 4 de junho de 2024

Balada da saudade


e mesmo na coisa
a coisa pode sentir
saudades de si

Heyk Pimenta

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Um poema de Clara Góes


Esperança é bicho
Que não sabe tempo,
salta por felicidade de ser.


Clara Góes

domingo, 2 de junho de 2024

TWO-LANE BLACKTOP


Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas
são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contém em si a possibilidade
de fazer gente.


Matilde Campilho

sábado, 1 de junho de 2024

Pergunta


as perguntas
não estão
nas hóstias

as respostas
não estão
na bula

simplesmente
não há
respostas

nenhum
deus
que se engula


Rodrigo de Souza Leão