quinta-feira, 13 de junho de 2024

Comentário sobre uma écfrase da obra "O impossível", de Maria Martins


No livro publicado pelo MAM de São Paulo em 2013 em vista da exposição Maria Martinsmetamorfoses constam dois ensaios de Verônica Stigger e Raul Antelo sobre as obras da artista. Embora os autores abordem uma gama de obras distintas, ambas reflexões giram em torno do título da exposição: metamorfose. Ao falar de escultura, a ideia de mudar de forma tem quase a força de um pleonasmo visto que, em última instância, escultores são os artistas que se debruçam sobre a matéria bruta, atuam sobre ela e fazem-na linguagem poética. O que me foi interessante nos textos em questão e motivou este trabalho e écfrase são as relações exteriores à obra de Maria Martins que Stigger e Antelo convocam em seus ensaios.

Quando Stigger reflete sobre o conjunto de esculturas amazônicas, lembra que Euclides da Cunha, padrinho de Maria Martins, descreveu a Amazônia como “a terra que ainda está crescendo”, em que “sua fisionomia altera-se diante do espectador imóvel”. Diz Stigger que “Martins estava em sintonia com todo um pensamento brasileiro moderno (não só modernista) da forma como formação incessante
(grifo meu). A constância no movimento e fluidez atribuídos à misteriosa floresta amazônica por alguns intelectuais foi mais um fator que contribuiu para que os modernistas daquela época reconsiderassem seus trabalhos com a forma clássica. Em Cobra grande (1943), Uirapuru (1944), Iacy (1943), Boto (1942) e Yemanjá (1943), Maria Martins reúne figuras chaves da cultura dos povos amazônicos e constroi esculturas onde tais figuras são embaladas por cipós (ou galhos, ou raízes), envolvendo-os como parte de um movimento natural. Nesse sentido de forma como formação incessante, é impossível não pensar em Macunaíma, de Mário de Andrade (1928), que de fato se transforma fisicamente ao longo de toda a história; e também no Cobra norato, de Raul Bopp (1931), que narra, em trinta e três poemas de verso livre, as aventuras da figura mitológica homônima pelas terras amazônicas. Este último, numa descrição extremamente metafórica, sinestésica e divertida, reaviva os elementos da paisagem (plantas, riachos e animais) através de sua linguagem. O movimento modernista brasileiro, trabalhando por um ideal nacionalista, aproxima os elementos polarizados natureza e cultura ao invocar essas novas formas, infringindo sobre um pensamento ocidental, colonial e logocêntrico.

Já no segundo texto, para Raul Antelo, subvertendo, quem sabe, a ideia de “espectador imóvel” de Euclides da Cunha, a metamorfose acontece de dentro pra fora. Antelo interpreta a obra O impossível, de Maria Martins (déc. 1940), ligando-a às interpretações de Bataille sobre o desejo e a poesia, em que reflete sobre a procura do artista pela representação poética da experiência única. Diz Antelo, ao abrir seu texto: “cabe pensar que essa escultura funciona, para a artista, como uma indagação sobre a finitude, ou se quisermos, como um modo de conceber a experiência após a finitude, que é um dado central do moderno”. E sobre a poesia, parafraseando Bataille, diz que “querendo a identidade das coisas refletidas e da própria consciência que as refletiu, quer o impossível.”. Portanto, a cada obra que se finaliza, nasce novo desejo de fazer-se outra, e assim sucessivamente. É isto que há de fluido e metamórfico no próprio artista, e aqui se encaixa bem uma frase do texto de Verônica Stigger que, ao falar de Macunaíma, nota que “não é a terra que se acha em permanente elaboração, mas o próprio homem”. O artista tenta dar corpo à experiência exterior e à consciência interior a si, mas a linguagem poética de uma obra nunca dá conta desse movimento por completo, nunca o esgota. Lembro-me da entrevista de Maria Martins conduzida por Clarice Lispector, citada no texto de Stigger e que pude ler na íntegra, em que aparece esta frase de Maria: “[a] melhor lembrança é quando começo uma escultura. No meio fico um pouco desanimada, no fim nunca é o que eu queria, e fico com esperança na próxima.”. Assim vai se desenhando a ideia da poesia sempre referente ao desejo impossível de apreensão total de um objeto, exterior ou interior ao artista, mas também a insistência e retorno a tal procedimento. Antelo chega a O impossível, portanto, por este ângulo: a retratação do movimento do que é inalcançável, do desejo do desejo, que pode falar tanto do desejo erótico quanto do poético (e tem quem diga que são iguais).

Para finalizar este trabalho, gostaria de fazer alguns comentários sobre a écfrase. Em primeiro lugar vale ressaltar a questão formal. Depois de tantos pensamentos de Bataille sobre a poesia evocados por Antelo, me arrisquei a fazer um poema e dialogar com as reflexões as quais estava tendo contato. Para sua construção, não quis me ater a nenhum contrato métrico, justamente pela liberdade e espontaneidade concedidas pelo verso livre, já que estaria fazendo um poema a partir de sensibilidades ativadas por outra obra. O único detalhe é a formatação dos versos: quis alternar as margens as quais estão alinhados para produzir um efeito similar aos dentes/garras e fendas da obra de Martins. Além disso, tentei descrever e ao mesmo tempo refletir sobre o que me pareciam as figuras, a estranheza e fascínio provocados, tal como um monstro, tal como o erótico. Quis também falar sobre essa mobilidade, infinitude, fluidez impossível de capturar. Para isso, usei a palavra “gerúndio”, imaginando que seria uma boa imagem para caracterizar algo ainda em curso, já que estamos no âmbito da linguagem, dando a ideia de que a natureza do desejo é desejar, e portanto não existe objeto apreensível, mas sempre uma vontade “de morder”.


Paula Reis Vianna

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