segunda-feira, 24 de junho de 2024

ARQUIVOS EM CONFRONTO, Marília Rothier



Resumo 
As tendências contemporâneas dos estudos literários articulam alguns aspectos dos Estudos Culturais com a chamada Crítica Genética, que trabalha com os arquivos dos escritores. A análise de anotações, desenhos, esquemas, rascunhos busca reconstituir as etapas de escritura do texto, enquanto a pesquisa do cenário cultural revela o contexto da atividade de produção literária. Este ensaio concentra seu foco nos arquivos de Pedro Nava e Guimarães Rosa para distinguir a peculiaridade de seus diferentes processos de construção narrativa. Palavras-chave: arquivos literários, memórias, tradição épica

Nos meados do século XX, a teoria da literatura, empenhada em afastar-se dos fundamentos da tradição crítica, questionou o valor da intencionalidade autoral e passou a trabalhar com as noções de “texto” e “escritura”, cujo estatuto supunha a autonomia da linguagem, como lugar de produção do sentido. Foi um momento de estratégica violência afirmativa em que Roland Barthes, tendo anunciado a “morte do autor”, cuidou de definir o estatuto da textualidade. Ainda está bem presente a lembrança de suas palavras: “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem (...) é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco e preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).

Hoje, com décadas de exercício de interpretação textual, os conceitos propostos por Barthes e seus contemporâneos perderam a radicalidade. Não é o caso de recuperar- se a autoridade do escritor, mas tem-se procurado rastrear as marcas de seu corpo, inscritas no texto, como índice da inserção histórica do mesmo. Quando se atenta para essa dimensão, fica patente que os traços datados do trabalho da escritura transportam, em seu deslizamento pela página, o conjunto de saberes e valores coletivos da cultura. Assim, longe de apresentar-se neutro, o texto testemunha o conflito acirrado de forças históricas, presentes na sua construção e desdobradas nos acasos de sua divulgação.

Se, ainda nos anos sessenta, a lição de Bakhtin veio somar-se às considerações 
barthesianas, desenvolveram-se, nas décadas seguintes, de um lado, a chamada crítica genética, e, de outro, os estudos culturais. A primeira alargou os domínios da textualidade literária para abarcar as notas de leitura, os rascunhos, os manuscritos rasurados, a coleta de dados, a correspondência, os diários, enfim, tudo que restou, nas gavetas privadas do escritor, depois que sua obra tornou-se pública. O interesse por
esses arquivos levou ao destaque do processo da escritura e relativizou a importância da versão definitiva, trazendo, como conseqüência, um tipo de enfraquecimento dos cânones, pela desatualização do conceito de obra prima. Já os estudos culturais trouxeram a literatura – como as demais artes – para o amplo e complexo domínio da cultura, inserindo a tarefa interpretativa na rede interdisciplinar, que enfoca o objeto em todas as etapas de seu desenvolvimento, desde a construção, na oficina íntima do autor, até o mercado com suas regras, onde a obra se disponibiliza para a leitura e entra no circuito da recepção. Ao longo desse trajeto intrincado, consideram-se as trocas intertextuais, o intercâmbio entre as subjetividades, bem como a interferência das mais variadas atividades sociais nos movimentos artísticos.

A linha de pesquisa literária, que combina o conhecimento dos arquivos com a perspectiva cultural, tem procurado desenvolver uma vertente muito específica de crítica biográfica. Trata-se da tentativa de rastrear um trabalho de construção identitária, onde o processo de subjetivação acha-se imbricado no jogo intertextual produtor da escritura, ambos – processo e jogo – permeáveis, em diferentes graus, às forças sociais suas contemporâneas. Pretende-se, como resultado, o encaminhamento da interpretação do texto, nas várias dimensões de sua historicidade: o estágio de desenvolvimento da língua e do gosto estético, a trajetória de vida do escritor dentro de seu círculo social e a ordem da cultura, que engloba as demais, interferindo nas mesmas, à medida que vai-se deixando transformar por influência delas. Nessa linha é que se pretende considerar aspectos de dois arquivos de escritores, dos mais ricos dentre os acervos brasileiros – o de Guimarães Rosa e o de Pedro Nava. Vale registrar que, conforme a terminologia usada por Almuth Grésillon, os manuscritos de ambos classificam-se como “escritura de programa” (GRÉSILLON, 1994, p. 102). Um exame, mesmo apressado, dos arquivos de Rosa e Nava mostra que esses escritores jamais se lançavam à aventura de deixar que a mão deslizasse livre sobre o papel. Ao contrário, o enorme volume de documentos de trabalho arquivados atesta que seus escritos resultaram de laboriosa pesquisa, seguida de mais de uma etapa de organização e articulação do material, cuja versão redigida ainda sofreu numerosas rasuras e reelaborações.

As obras desses dois escritores legitimaram-se por fortunas críticas bem distintas, foram produzidas e publicadas em datas e circunstâncias diversas; no entanto, seus autores evocam traços equivalentes da educação mineira tradicional, tendo-se formado literariamente, com certeza, enquanto freqüentavam a mesma faculdade de medicina, na Belo Horizonte dos anos vinte. O conjunto de traços identitários, que singulariza seja a assinatura, seja o tecido textual de Guimarães Rosa (1908 – 1967) e de Pedro Nava (1903 – 1984) remete ao contexto histórico da modernização da sociedade brasileira, conforme o modelo ocidental capitalista, baseado na urbanização e industrialização. Como ponto de partida para esta leitura interpretativa de obra e arquivo, parece interessante observar o grau de proximidade ou distância que as notas, rascunhos, recortes e publicações guardam em relação àquele modelo.

A questão – qual o campo de pesquisas dos dois escritores? – serve de ponto de partida para o exame dos acervos. No Arquivo Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, encontram-se cadernetas de viagem , cartas-questionários a parentes e amigos, cadernos de anotações de leitura, além de numerosos conjuntos (em cadernos ou folhas datilografadas) de “estudos para a obra”. Por seu turno, o Arquivo Pedro Nava, conservado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, revela o processo de composição do texto das Memórias, através de documentos reunidos conforme três etapas: as numerosíssimas fichas de levantamento de dados, os “bonecos”, onde se esquematizam os capítulos, e os “originais” datilografados, com muitas rasuras, alguns acréscimos e, ainda, desenhos e figuras, colados à direita do texto. Nos dois casos, as demais seções do arquivo – correspondência, documentos pessoais, recortes e iconografia – têm muitos pontos de intersecção com os manuscritos diretamente responsáveis pela composição da obra. Quando se analisam os registros de pesquisa (de gabinete ou de campo), já se localiza uma diferença paradigmática entre o trabalho de Rosa e o de Nava. Este, voltado para o memorialismo, anota suas próprias lembranças e as respostas de companheiros de geração às suas perguntas. Seu fichário compõe-se, em sua maior parte, de recortes de jornais e revistas e de depoimentos da experiência individual de profissionais liberais, bem situados na hierarquia social das principais cidades brasileiras. Aquele, dedicado à restauração da narrativa épica, anota suas leituras dos relatos tradicionais clássicos e dos livros de viagens pelo Brasil, além de preencher cadernetas de campo, referentes às suas excursões pelo sertão. Seus informantes não são intelectuais mas, predominantemente, vaqueiros ou, pelo menos, fazendeiros e comerciantes, ligados ao mundo rural. Tais informantes transmitem uma experiência antes coletiva que particular.

Como ponto de partida para um comentário comparativo entre aspectos dos dois arquivos, vale lembrar as preciosas considerações de Jacques Derrida em seu esforço de reconceituação contemporânea de “arquivo”. O arquivo é o suplemento artificial da memória, a estratégia mental ou a providência prática de registro dos fatos, passíveis de se apagarem. Conforme a teoria freudiana, que fundamenta as reflexões de Derrida, a economia psíquica equilibra-se entre o “princípio do prazer” ou da preservação – a força dos arkhai – e a “pulsão destruidora”, a força do esquecimento. Daí o estatuto necessariamente fragmentário e lacunar de todo arquivo, que já supõe, como origem, a inevitável “amnésia” (DERRIDA, 2001, p. 22,23). Dedicando-se à escrita de sua vida, Nava interrompe freqüentemente o relato para tecer considerações sobre os mecanismos da memória; paralelamente, o acervo de seus documentos – organizado e doado por ele mesmo à Casa de Rui Barbosa -- pode ser considerado paradigmático da condição paradoxal do arquivo. Qualquer estudioso de Nava percebe, de imediato, a característica, ao mesmo tempo, excessiva e lacunar do acervo. O processo de composição dos seis volumes publicados das Memórias acha-se cuidadosamente documentado nas três etapas, acima referidas: fichário de notas, “boneco” e texto revisto (anterior à datilografia definitiva, encaminhada à editora). As notas são numeradas, em vermelho, de modo que é possível acompanhar sua inserção na feitura dos bonecos, que,
por sua vez, prefiguram a ordem da matéria na versão redigida. No entanto, o arquivo só guarda o registro completo dessas etapas nas seções referentes aos quatro últimos volumes. Como registra o próprio autor, grande parte do tarefa inicial de levantamento de dados e rascunho foi destruída, quando do término do trabalho de redação. Em uma das etiquetas classificadoras do material lê-se:
Fichas como as usadas na parte escrita sobre Torres Homem. Apenas o modelo pois foram inutilizadas milhares de outras fichas à medida que se escrevia, tal qual foi feito com as de Baú de ossos e Balão cativo, até que veio o conselho de Drummond: guardar tudo, jogar nada fora.(AMLB-FCRB)
 
As seções preservadas do arquivo – o conselho do poeta parece ter sido seguido à risca – apresentam-se,  como que por compensação, entulhadas de documentos. Muitas notas se repetem, cada tópico traz diversos desdobramentos, os capítulos, esquematizados compondo os bonecos, têm duas ou três versões, com pequenas diferenças e acréscimos. Mais sugestiva, contudo, é a evidência de que a escritura de Nava funcionou, predominantemente, como work in progress, impulsionada pelo desejo de englobar todas as lembranças -- as próprias e as alheias, as confirmadas e as discutíveis --, de modo que a busca não terminasse nunca e um volume pudesse, sempre, engendrar o seguinte. Quando se consultam as caixas enormes, onde estão guardados os “originais” dos volumes, e se observam, como fez Flora Süssekind, as caricaturas, mapas e recortes da “página ao lado” do texto (SÜSSEKIND, 1993, p. 253- 259), percebe-se que a etapa de pesquisa, que deveria restringir-se ao fichário, invade todas as demais, na tentativa persistente de resgatar o vivido da voragem do esquecimento. Se cada página de Nava paga tributo a Proust, é porque o brasileiro queria também explorar a possibilidade de desdobramento infinito do “acontecimento lembrado”, transformado, assim, numa "chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1985, p. 37). Empenhando-se em conservar a herança da família, os presentes dos amigos, as impressões retidas na própria memória e até mesmo as aparições fantasmagóricas das noites insones, Pedro Nava tipifica, à maneira hiperbólica que lhe é peculiar, o “mal de arquivo”. O que o move é a paixão de registrar tudo, recuar às origens mais remotas -- tarefa fadada ao fracasso e, por isso mesmo, irresistivelmente sedutora. Se os leitores das Memórias deixam-se contaminar por essa febre, os estudiosos de seu arquivo são muito mais afetados por tal doença tão incômoda quanto produtiva.

Adquirido pelo IEB, em 1973, seis anos após a morte do escritor, o arquivo de 
Guimarães Rosa, embora contendo os originais das obras de juventude (inclusive os preciosos originais de Sezão que, revisto e amputado de alguns de seus contos, publicou-se com o título de Sagarana), concentra-se, tendo em  vista a documentação do processo escritural, no período de maturidade, quando o médico e diplomata se profissionaliza na carreira literária. Pelos meados dos anos quarenta, quando já havia contemplado os principais monumentos da Europa culta – e registrado, com croquis e descrições pormenorizadas, seus trajetos de turista e de visitante contumaz dos museus e galerias --, Guimarães Rosa começa a trabalhar, sistematicamente, encaminhando, em definitivo, sua obra na direção do resgate da tradição épica. Ana Luiza Martins Costa (COSTA, 2002), boa conhecedora do arquivo, enfoca paralelamente os dois rumos da pesquisa do escritor: o de leitura cuidadosa da epopéia antiga, registrada nos poemas eruditos (Ilíada, Odisséia, Divina comédia), e o de levantamento da narratologia sertaneja, tanto estudando os relatos de viajantes, quanto procedendo à busca etnográfica do saber oral dos vaqueiros de Minas, do Pantanal e da Bahia. Essas duas vertentes da preparação para os grandes livros de 1956, Corpo de baile e Grande sertão: veredas, responsáveis, também, pelos volumes de contos posteriores, acham-se representadas, no arquivo, sob a forma primeira de cadernetas de campo e de cadernos com notas de leitura. Correspondendo a uma segunda elaboração do material, encontram-se numerosos “estudos para a obra”, que consistem num exercício de passar a limpo as anotações, buscando, certamente, incorporá-las à memória pessoal e imprimindo nelas o selo estético da assinatura do autor. Esses estudos revelam um paciente manuseio reflexivo, pois estão marcados com lápis de cor, com classificação de assunto ou indicação do texto que devem compor. Alguns das cadernetas mereceram mais de uma reelaboração, como é o caso daquelas onde se registrou a viagem de 1952, quando Rosa seguiu, durante dez dias, a comitiva do vaqueiro Manuelzão, conduzindo um gado da fazenda da Sirga até a de São Francisco. Conforme a classificação do IEB, há quatro pastas (E-26, E-27, E-28, E-29), de retranscrições e comentários, sob o título “Boiada”. Trata-se de um dos elos mais importantes da gênese do Grande sertãotambém das sete novelas de Corpo de baile.

A descrição, acima, de parte dos documentos do acervo rosiano, mostra-os tão excessivos quanto os de Nava. Os dois escritores precisaram de uma montanha de papel e de inumeráveis horas do exercício físico de escrever como estratégia para a produção de seus textos. Nesse sentido, o arquivo desromantiza a criação, evidenciando uma atividade monótona e cansativa de repetição de frases (e também de desenhos, mapas e perfis, especialmente no caso de Nava), onde as interferências inventivas vão-se revelando, de detalhe em detalhe, e onde as dívidas com a memória cultural acham-se devidamente contabilizadas, nas longas listas de citações, pastiches de textos, apropriações de falas e cruzamentos de referências. O aspecto corriqueiro dos documentos composicionais, no entanto, preserva certo segredo da construção literária. Se, nos papéis de Nava, apesar de incompletos, tem-se a ilusão de acompanhar, passo a passo, os mecanismos da memória (espontânea e artificial) concretizando-se no relato escrito, não é possível rastrear a passagem entre os numerosos rascunhos de Rosa e a configuração da narrativa dada por pronta. O arquivo de Guimarães Rosa não contém nada que se aproxime dos “bonecos”. A trajetória do texto perde-se no mistério das lacunas imponderáveis, entre a profusão dos estudos e o rigor dos “originais”, revistos na versão publicada.

Em seu estudo mais recente, Pedro Nava: o risco da memória, Eneida Maria de Souza considera a produção naviana como memória de “um Brasil moderno”. Os antecedentes familiares -- reconstituídos a partir de documentos, como a contabilidade do alemão Halfeld, fundador de Juiz de Fora, onde se superpõem a história pública e a privada --, os anos de formação do autor-narrador e, nos dois últimos volumes (já narrados em terceira pessoa), o início da carreira profissional e o convívio com os companheiros de geração, recém-ingressos na política, toda a trajetória apresentada funciona como espelho onde a classe dirigente brasileira pode encarar-se, no momento decisivo em que seus intelectuais traçam os rumos para o processo de modernização. Se resenharmos o teor do conteúdo do arquivo, que respaldou a construção desse edifício literário, teremos indícios seguros das referências identitárias da geração burguesa, formada nos anos vinte, sob a égide das vanguardas. Tais referências é que explicam as escolhas do escritor em relação ao tipo de escrita escolhido e o ponto de vista adotado.

O dossiê arquivístico de Beira-mar, volume que registra o contato dos inquietos estudantes mineiros com os mentores do movimento modernista, é o espaço mais adequado para a caracterização do tipo de material selecionado e reunido pelo colecionador-autor. No fichário e no boneco desse quarto volume das Memórias, além das anotações e esquemas, dos recortes, desenhos e mapas, encontra-se outro tipo de documento, resgatado ou produzido por iniciativa do memorialista: questionários enviados por Nava a seus companheiros de geração (Drummond, Emílio Moura, Alberto Campos, entre outros) e respondidos pelos mesmos, depoimentos espontâneos de colegas (como o de Pedro Salles, contemporâneo na Faculdade de Medicina) e correspondência familiar da época de que trata o texto. Esses papéis vêm somar outras vozes à do memorialista, dando maior abrangência à visão autobiográfica da narrativa. Mas é preciso observar que as vozes conjuradas pelo escritor são sempre de iguais, isto é, de indivíduos de seu meio social, com valores e interesses equivalentes aos seus próprios, o que pluraliza as posições marcadas pelo relato, mas nunca o desloca do espaço restrito do mesmo. É claro que o memorialista não é ingênuo e, ao longo da pesquisa, busca complexificar sua perspectiva histórica, inserindo fragmentos do saber de outras classes, como os ditos populares colhidos alhures e croquis de personagens marginais, distribuídos entre suas notas. Entretanto, tal abertura do espectro social tem a função restrita de fornecer moldura ao retrato da “boa sociedade”, que se vai desenhando.

Se os depoentes e entrevistados são portadores de sobrenomes tradicionais, o cenário, onde os mesmos movimentam-se enquanto personagens e tornam-se objeto de pequenas biografias, é composto pelos quarteirões principais da cidade, com seus bares, livrarias, cinemas e até cabarés – mas freqüentados pelos filhos-família. No acervo correspondente à construção de Beira-mar, a maioria do material verbal e iconográfico concentra-se no “Bar do Ponto”, centro nervoso da capital mineira. As primeiras páginas do boneco, por exemplo, resultam da observação de postais dessa área de Belo Horizonte, postais reunidos ao longo das décadas para testemunhar as mudanças e respaldar, com a beleza das imagens dos anos vinte, a nostalgia do narrador. Pode-se perceber, assim, através da coleção de lembranças instrumentalizada pelo escritor, que a memória do Brasil moderno, que, aí, se delineia, privilegia o espaço urbano burguês e seus valores letrados e (relativamente) progressistas. Ainda que representada caricaturalmente, para denunciar a agressividade de suas relações, a tradicional família mineira toma conta da cena narrativa.

Contemporâneo de Pedro Nava no curso médico, como já assinalado acima, Guimarães Rosa teria sido um dos possíveis destinatários das consultas expedidas pelo memorialista, caso não tivesse morrido cedo, em 1967, antes, portanto, que Nava iniciasse a pesquisa para seu trabalho. No entanto, Rosa não é sequer mencionado em Beira-mar, nem tampouco consta das listas de conhecidos e amigos, quase onipresentes, nos prototextos do volume sobre a geração modernista mineira. Trata-se de um indício de que o futuro autor de Sagarana não fez vida literária em Belo Horizonte, não tendo estabelecido nenhum contato com Mário de Andrade ou qualquer dos integrantes da “caravana paulista”, que, em 1924, instigaram os “rapazes da Rua da Bahia” a integrar as hostes da vanguarda. Prova disso é que não há nenhum texto de Guimarães Rosa em A Revista – bela iniciativa de Drummond e Martins de Almeida, que canalizou a produção dos novos. E, se o próprio Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus e Nava integraram todas as demais iniciativas revolucionárias da cultura (e, secundariamente, da política) mineira, Rosa está ausente das mesmas, tanto quanto do amplo dossiê do memorialista de sua geração.

Quando se enfoca o arquivo de Guimarães Rosa, encontra-se a contrapartida de sua ausência nas rodas do Café Estrela. Sua estréia como contista, nos anos 1929 e 1930, deu-se por via muitíssimo diversa daquela, sofisticadamente experimental, escolhida por Drummond e seu grupo. Certamente ainda um leitor convencional da literatura européia de suspense, Rosa enviava suas narrativas góticas para o concurso literário da revista popular, O Cruzeiro. Lá é que ficaram registrados seus primeiros exercícios ficcionais: “O mistério de Highmore Hall”, “Chronos kai anagke” e “Caçadores de camurças”. Se observarmos, também, os contos descartados de Sezão (estes já dos meados da década de trinta), veremos que, aí – e praticamente só aí – rastreiam-se referências autobiográficas aos tempos de estudante. Mas estas denotam apenas interesse médico e curiosidade científica.

A via de acesso à literatura, no caso de Rosa, -- tal como se apresenta enquanto lacuna no arquivo de Nava e como registro em seu próprio acervo – fez-se por razões e acasos, que o afastaram da trajetória majoritária dos de sua geração. A temática do volume Sezão e, mais tarde, da versão publicada, Sagarana, ao lado dos depoimentos recentes de amigos da época, indica a tradição oral coletiva como a poderosa memória de infância, que se foi combinando, na juventude e na maturidade, primeiro com o atrativo dos gêneros de massa, depois com a sedução das estórias sertanejas. Ao contrário de seus contemporâneos, Guimarães Rosa não se deixou impressionar pelo ritmo moderno da recém-construída capital de Minas. As referências estéticas estáveis, oferecidas pelas linhagens épicas clássica e local, marcaram sua produção literária -- do primeiro livro publicado em 1946 a Tutaméia – por uma rigorosa distância crítica diante das vanguardas poéticas e do progressismo sócio-econômico. Tendo incorporado, gradativamente, as conquistas da linguagem experimental, encaminhou suas pesquisas para o resgate de valores capazes de preservar os velhos saberes interioranos e, assim, interferir saudavelmente na configuração da cultura brasileira, nos meados do século XX.

O paralelo entre os arquivos de Nava e de Rosa mostra os dois procedimentos diferentes presidindo a escolha do assunto e da orientação estético-política da obra. Na construção memorialística, onde predomina a perspectiva individual, vimos que o levantamento dos dados segue o modelo (auto)biográfico e que os entrevistados pertencem ao mesmo espaço do autor-entrevistador, pois devem corroborar uma visão burguesa e moderna da história cultural enfocada. De outro lado, para aquele que se deseja o guardião do relato épico, é a tradição coletiva que conta, seja resgatada dos antigos, seja colhida da sabedoria oral do povo. Por isso mesmo, as entrevistas, a correspondência familiar, o registro da própria vivência do memorialista são substituídos pelas cadernetas de campo, onde o autor faz-se etnógrafo para recolher as falas de vaqueiros, pequenos lavradores, rezadeiras, velhos e bobos, agregados das fazendas. O acervo de Guimarães Rosa — cujo documento emblemático pode ser considerado o caderno de quadrinhas de Zito, o cozinheiro da boiada — compõe-se, prioritariamente, de inscrições do saber do outro, isto é, de quem habita as margens da cultura hegemônica. É interessante observar que a própria correspondência de parentes e amigos, de que o escritor se apropria no processamento de sua literatura, define a constituição peculiar do arquivo de Rosa. As cartas, anotadas por ele e incluídas em seus “estudos para a obra”, são dirigidas à recolha da cultura popular. Destaca-se, nesse item, a já famosa carta em que seu amigo Pedro Barbosa, de Paraopeba, responde ao questionário, proposto pelo escritor, com o objetivo de conhecer melhor um bobo, acolhido como tratador de porcos na fazenda. Como se sabe, as respostas do fazendeiro Barbosa transformaram-se no conto “Mechéu”, incluído em Tutaméia. O principal interlocutor epistolar de Guimarães Rosa foi, entretanto, seu pai, Florduardo Pinto Rosa, constantemente solicitado pelo filho, não a dar notícias ou narrar episódios da vida doméstica, mas a deixar registrados os casos do sertão, protagonizados em caçadas ou ouvidos de vaqueiros, num balcão de armazém próximo à estação de embarque das boiadas.

Os prototextos da obra de Guimarães Rosa, incluindo a etapa de pesquisa e as etapas de elaboração do material, caracterizam-se pela presença da sigla m%, precedendo palavras, frases ou expressões. Conforme os estudiosos do arquivo, trata-se do índice de interferência do autor no objeto de sua apropriação. m% - flor-de-todos / flor-de-todo-o mundo [V. Saint Hilaire: “flor de toda gente, dont les corolles blanches embaumaient l’air de leur doux parfum (...) . No descer dos carrascos. Arbustos de 6 a 10 pés, muito juntos, seus ramos se confundindo). Chama-se a isso: carrasquinho. m% - terras da paróquia “traíras, lambaris, piamparas, curimatãs, timburés” m% - Piampara (lugar) m% - onde o belo rio corre entre a caatinga morta (AMLB-FCRB) Á medida que, através do trabalho de cópia, o escritor erudito incorporava, a seu acervo, a tradição popular, a repetição da fala do outro ia ganhando, gradativamente, a marca própria (e experimental) do herdeiro – marca que, no entanto, não limita o texto aos contornos do indivíduo, mas literatiza o discurso através da combinação tensa de diferentes linhagens populares. Ao lado das cadernetas do sertão estão as da Europa; os “cadernos de estudo” registram informes geográficos, históricos, botânicos e zoológicos; às listas de metáforas homéricas somam-se as listas de toponímicos tupis. As coleções de dados componentes do acervo de Rosa fazem deste uma “biblioteca de Babel”. Com a especificidade, hoje, destacável, de tratar-se de uma típica Babel pós-colonial, onde confrontam-se, em equilíbrio tenso, o cânone do ocidente e os saberes “subalternos”.

A dimensão cultural, que abre perspectivas produtivas para os estudos literários, ao fazer ressurgir o corpo do autor, através do exame crítico das impressões deixadas em seus manuscritos, percebe que a escritura – em diferença com o que pensava Barthes – não traz o apagamento da identidade. Ao contrário, quando interpretado em contraponto com seus rascunhos, todo texto permite que se recupere seu processo complexo de construção identitária. Não se trata, é evidente, do estabelecimento de uma identidade plena e fechada, que limite o sentido das palavras à circunstância de vida de seu autor. Trata se, sim, de desentranhar do trabalho escritural – desenhado entre as lacunas e riquezas do arquivo – um perfil composto de valores culturais, que responde pelos sentidos a serem produzidos e pela força de interferência a ser exercida sobre a sociedade, ao longo da carreira de divulgação do texto.

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