sábado, 15 de junho de 2024

Um corvo no canavial


A lavoura era o inferno no mundo, os suplícios das almas condenadas debaixo do sol se repetiam e a cada suplício um novo flagelo, a vara já melada de sangue, incansável apesar de vergada. Tentar fugir era muito perigoso. Uma vez seu Expedito se perdeu pela noite no matagal e foi encontrado pelos cachorros que o senhor Paulo criava ali. Quando voltou correndo com medo de ser devorado pelos bichos, o senhor Paulo mandou os filhos dele atrás do seu Expedito e os moleques enfiaram a porrada nele. Vieram rindo os três, arrastando o corpo esquálido do velho; o pai deu um beijo na testa de cada um e disse que amanhã ia dar um jeito nesse nego imbecil e que os filhos já estavam virando homens, que podia deixar tudo que Deus deu nas mãos deles. No dia seguinte, assim que o galo cantou, o senhor Paulo mandou o capitão Lopes ir até aquela senzala de merda e acordar os crioulos porque já era hora de trabalhar e esses fodidos tão dormindo ainda. — Vocês vão trabalhar pra mim e pra minha família até morrer. Quem tentar fugir vai receber castigo igual a esse merda desse preto que ficou perturbando os cachorros ontem.

Seu Expedito chegou em estado de degradação, só com um pano ensanguentado cobrindo a intimidade dele — estava em público, tivesse algum pudor —, trazido pelos filhos do senhor Paulo. O olhar de seu Expedito era um olhar de afronta resignada; o pescoço pendia, mas ele ainda se esforçava em olhar para cima. Via aquele céu escuro, certamente choveria mais tarde. Quando chovia na lavoura era um pouco de um alívio, cada gota era como um beijo nos nossos vergões — não curavam nada, duravam pouco.

O senhor Paulo mandou o filho mais velho ir ao arsenal buscar um sabre que tinha pertencido a um parente Dragão da Independência. O garoto devia ter uns dezessete anos, era um moleque feio, tinha os dentes tortos do pai, andava trôpego e corcunda. Sempre contou com as armas paternas, e agora ele mesmo empunhava um sabre, tinha poder, brilhava algo de seu próprio, talvez tenha até pensado em parricídio naquele momento, apenas por um instinto selvagem, pelo desejo de ter tudo aquilo. Muito bem, disse o pai, me dê esse sabre aqui. Nossos antepassados estariam orgulhosos de você, sempre leal ao seu pai e à sua pátria. Hoje você vai virar homem mesmo, de uma vez por todas. Com esse sabre aqui você vai capar esse preto velho e depois vai escolher uma neguinha daquelas ali pra foder. Está na hora de você aprender essas coisas, é com punho de ferro que a gente tem que tratar essa gente.
 
Seu Expedito caiu sobre os joelhos, de seus olhos não escorreu uma lágrima, a boca escancarada revelava um homem humilhado desde o seu nascimento, um homem que nunca pôde e nunca poderá ter uma segunda chance, um homem que nasceu em um mundo que o odiava e tentou, no crepúsculo de sua vida, dele escapar. Ele olhou para baixo, viu seu sangue jorrando na lama; olhou para as mãos ensanguentadas do garoto, que agora tinham suas bolas. A chuva caiu, foi disfarçando o sangue na lama, escorreu pela pele de seu Expedito volteando seu esqueleto sobressalente, foi se tornando um peso, e seu Expedito desabou com a cara na lama, seu pranto cessou, morreu.

Os outros filhos viram a cena chocados, mas também não fizeram muito da morte que se apresentava tão cruamente. Senhor Paulo abraçou o garoto assassino, os cachorros deram conta de trucidar o resto daquele corpo, os testículos eram um aperitivo. O garoto, com o sangue escorrido pela chuva nas mãos, agarrou o braço de Dina e arrastou-a para a casa grande. Dina berrava, se retorcia, olhava para trás, mas seus apelos eram em vão.

Eu tentava desviar o olhar, tinha acabado de acordar, era demais para um só corpo de gente, e eu ainda não era seu Expedito, eu não era Dina. O capitão Lopes levantava a minha cabeça e de qualquer um que
tentasse evitar a cena, era preciso ver, era preciso sentir o castigo. Seu Expedito podia ser qualquer um de nós, seu Expedito era só um preto, e era melhor um preto morto, desfazer-se da propriedade, à humilhação de um preto fugido. Uma náusea tomava conta de nossos corpos, algo que quer flutuar para desaparecer mas tem raízes lançadas no solo, fincadas na carne da terra. Seu Expedito se foi como viera, sem alterar a face do mundo com sua dor e suas efêmeras alegrias, era só um corpo
destroçado no chão, sem brilho.

Passaram-se os dias e a chuva lavou aqueles restos de homem, o cheiro acre do corpo em putrefação foi sumindo no vento, flores até teimaram em emergir em meio a tanta brutalidade. A lavoura voltou aos poucos a ser o inferno de sempre, os flagelos voltaram a ser cada vez mais insustentáveis, mas os suplícios foram embora. Dina era raptada ao bel-prazer do filho do senhor Paulo, e voltava dos cômodos escusos da casa grande coxeando, cheia de hematomas, com as costas arqueadas, completamente desfigurada, com as marcas da violação nos olhos perdidos. A paz do senhor Paulo e a prosperidade tão pedida em suas orações diárias ao pé da cama e na capela enfim lhe haviam sido
concedidas.

Quantos Expeditos e Dinas tiveram que existir para que chegássemos aonde estávamos, e quantas vezes essas mesmas flores emergiram violentamente da terra maculada, sem pedir licença a nós? Em uma noite insone eu ouvi um incessante gralhar vindo do canavial. Fui em direção ao que parecia ser o centro daquele ruído, um transe insensato tomou conta de mim, cólera, uma vertigem. Havia apenas escuro e o cruzeiro acima de nós, e eu me aproximava do que parecia ser uma besta voraz, aquele gralhar desgraçado prenunciava o fim, mas o que temer? Em frente, dizia algo dentro de mim, sem juízo e sem medo.

Estava ali, tão fora de lugar, um corvo. Um corvo apoiava-se no topo da mais viçosa cana, gralhava incessantemente, o ar diabólico, ardorosamente. Não tinha medo dos cães, aquele corvo? Era louco? Era um corvo. Estendi minha mão, queria tocá-lo, sentir sua penugem. Das profundezas de que terra saiu aquele monstro esfíngico, enigmático? Seus olhos encerravam o mundo. Encará-los era destrutivo. Seus olhos fundos não desistiam de mim, arrombavam minhas retinas, mas eu resistia. Como um espelho turvo que nos revela do avesso, o corvo refundava o mundo insuportavelmente.

Ele abriu suas asas, apresentou sua envergadura; era um belo ser, a penugem negra se confundia com o breu noturno, da cor do silêncio. E então, tão só quanto veio, o corvo se foi, voou para longe; eu corri, corri como pude em seu rastro, a despeito do escuro, a despeito do vento, a despeito dos cães e a despeito da cana, corri sem olhar para trás, entorpecido, e a aurora se rompeu. O sol emergiu implacável e vermelho. Ardeu algo aceso dentro de mim, a essa hora o galo cantaria, mas não cantou. Adeus, lavoura.


Pedro Rangel Soares

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