sexta-feira, 7 de junho de 2024

Entrevista: Marcela Sperandio — a multiartista e as pontes construídas

por Lucas Viriato e Marcella Mahara

 

Marcela Sperandio nasceu em 1986. É formada em Filosofia. Cantou no Coral da PUC-RIO e na banda de disco punk Spllash!. Foi modelo e estudou cinema. Em 2015, publicou seu primeiro livro, intitulado Estranha de mim, pela Editora OrganoGrama, com poemas e desenhos retirados de diários íntimos e cadernos escolares. Em 2018, publicou seu segundo livro de poesia: Outra que não eu, pela Editora Raiz. Atualmente, é editora de vídeo.


1) Como a leitura e a Literatura entraram em sua vida e como você se relaciona com elas hoje?  

A leitura entrou mais pela escola, pela obrigatoriedade de ler para as provas. Eu nunca lia ao longo do semestre, postergava a leitura até o último final de semana antes da prova e então me dedicava com afinco a ler o livro em dois dias. Em algumas ocasiões me vi capturada pelo texto, e vivendo com intensidade todo o universo repleto de imagens e reflexões que se abria para mim através dos livros. Esse foi o caso do livro O mágico desinventor, de Marco Túlio Costa. Um livro fantástico que aborda problemas que enfrentamos a nível global e planetário, como poluição, desmatamento e risco de extinção. Acho que eu li com dez ou onze anos.

Eu frequentei por anos uma escola católica. Era praticante, acreditava em Deus e rezava antes de dormir. Até que na sexta série estudei sobre a Inquisição. Eu sou uma mulher que gozou de todas as liberdades. Eu tive certeza de que se eu existisse naquela época teria sido assassinada pela Igreja. Foi como se meu mundo tivesse desabado. Conforme ia caindo a ficha do papel que a Igreja teve na História Ocidental e quantos massacres ela fundamentou e cometeu, eu fui me metamorfoseando de criança em adolescente, profundamente horrorizada com tudo o que eu absorvia da cultura. Estudar a colonização, o processo de escravização, a Inquisição, o nazismo, todos esses temas me tiravam do centro e alimentavam uma revolta na minha alma. Passei a olhar para fora com uma profunda descrença, um desencanto. Enquanto meu interior borbulhava, eu crescia, meio em estado de choque.

Com doze anos comecei a prática de escrever em diários e dali um outro mundo surgiu. Comecei a usar os cadernos como válvula de escape, local de desabafo e também de autoconhecimento, além de experimentação poética. 

Na escola construtivista em que eu entrei na oitava série, havia uma biblioteca incrível, onde eu li o Canto dos Malditos, livro em que o filme “Bicho de sete cabeças” foi inspirado. Pude ler com indignação a história de um jovem que foi trancado em manicômios por fumar um baseado. Conheci a luta antimanicomial no Brasil. A partir de então comecei a explorar a leitura de uma maneira muito mais apaixonada.


2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se artista ou torna-se artista?    

Acho que nada é uma coisa só, tudo tem sempre, pelo menos, dois lados. Como se a unidade fosse constituída por contrários. Nesse sentido, trazemos alguma coisa conosco, como uma faísca que não podemos explicar, assim como realizamo-nos enquanto coisa construída. Parece-me que o artista tem uma predisposição da alma em trazer à luz o que está no invisível. Gosto da ideia de pensar que o artista, o louco e o xamã tem muito em comum. Os três acessam a imensidão do invisível, do imaterial e sem forma, do escuro, do inconsciente, mas só o artista e o xamã retornam e fazem a ponte entre os dois mundos de forma estruturada. O louco permanece imerso. Acredito que esse dom artístico seja inerente, próprio do ser humano. No entanto, esse dom só se realiza enquanto prática. Portanto, arte é trabalho árduo. Quanto mais engajado você está em sua prática artística, mais acontece de um fluxo perpassar você e suas criações acontecerem com ritmo e fluidez. 

É claro que para se engajar na arte poética é necessário uma predisposição estética. Como são os sentidos do artista? Eu diria que são intensos. O artista sente intensamente e isso o alimenta e impulsiona a criar. Assim como o foco é necessário para a leitura, ele o é para arte. Um foco e uma determinação que é o próprio ofício do artista. 


3) Sendo uma filósofa e uma artista da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga? 

Eu, enquanto leitora, sou sempre uma leitora amadora! Meu jeito de amar inclui o ato de criticar. Não consigo desligar o botão do olhar crítico, mas às vezes, a obra te captura com tal intensidade que você fica imerso e não há distanciamento para crítica, apenas fruição estética. Aí a crítica chega depois, mas sempre chega.


4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação? 

Gosto de ver a arte como expressão essencial do indivíduo. Há muitos anos, quando eu era mais jovem, tinha muito mais tempo e era mais produtiva artisticamente, eu gostava de pensar na arte como excremento, algo como um vômito ou cocô. Você não pode escapar, é algo vital e necessário, um impulso incontrolável que te alivia. Eu sentia isso ao criar: produzir era quase uma imposição. Ao olhar para o mundo eu sofria e precisava me expressar e fazia isso através de textos e desenhos. Eu acho que o artista experiencia a vida intensamente e dessa intensidade toda vem a necessidade de expressão. Com o passar do tempo e com a chegada da vida adulta, eu tomei caminhos que me afastaram da arte. Trabalhar numa jornada de 54 horas semanais, de segunda à sábado, afasta qualquer um da reflexão e produção artística. Pra mim, a vida está totalmente ligada à arte. É da experiência vivida que brota o substrato para a arte. Ao mesmo tempo, entrar em contato com a obra nos dá ferramentas para elaborar visões sobre a vida.


5) O que você considera ter sido fundamental para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual? 

Eu tive muita sorte. Primeiro, por ter uma mãe atriz que me levava para assistir às suas apresentações quando eu tinha entre quatro e sete anos. Assisti muita peça da coxia. Depois, porque meu pai foi empresário de artistas brasileiros e atuou como produtor de grandes shows e em gravadoras, de modo que eu cresci rodeada de muita música boa. Na adolescência, tive a  sorte de descobrir o CEP 20.000 quando tinha entre treze e catorze anos. Lá, e em outros eventos da cidade, pude conhecer, conviver e me alimentar do texto, mas também das personalidades de grandes poetas cariocas como Guilherme Zarvos, Ricardo Chacal e Tavinho Paes. O CEP é um evento de poesia que foi crucial para a minha formação. Lá eu me encontrei, embora eu ainda me sentisse perdida. Morria de medo de subir no palco, demorei anos para relaxar. Me descobrir cantora ajudou nesse processo e só depois de cantar no coral da PUC e numa banda de punk rock chamada Spllash! que eu comecei a me sentir mais à vontade com um microfone. 

Algumas obras me formaram enquanto pessoa. Demian e O Lobo da Estepe, ambos de Herman Hesse, Orlando, de Virginia Woolf e Frankenstein, de Mary Shelley fizeram isso. Gostaria de citar duas obras cinematográficas, são elas os filmes The blood of a poet, de Jean Cocteau e Teorema, de Pasolini. Na música, o rock and roll foi crucial. Nessa fase mais adulta os livros do educador José Pacheco me ajudaram a achar um rumo produtivo pro bando de críticas que eu colecionei ao longo dos anos a respeito do sistema de ensino. Eu citaria os livros Dicionário de Valores e Inovar é construir um compromisso ético com a educação

Eu estou terminando uma pesquisa que investiga o uso veritativo do verbo “ser” em grego. Ela tem como base um livro de ensaios de Charles Kahn, Sobre o Verbo Grego Ser e o Conceito de Ser e o poema de Parmênides.

Então é isso que eu tenho lido ultimamente.

Eu indico como leitura a tradução em português do livro do Mark Coeckelbergh, Ética na inteligência artificial e o livro Superinteligência, do Nick Bostrom. Eles abordam muito do que precisamos saber para navegar na era ultra tecnológica na qual estamos entrando. 


6) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, em outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua escrita criativa?   

Acho que a Literatura proporciona ao leitor a experiência de uma ‘outra’ realidade. Quanto mais o leitor se deixa levar, mais é capturado pelo texto, então pode ter, sim, um teor de alienação, isolamento, na leitura. Mas, por outro lado, a leitura abre universos inteiros e a capacidade de se colocar no lugar do outro. Eu acho que, mesmo sem ter essa intenção por parte dos escritores, a literatura, a filosofia e a arte proporcionam um antídoto à desumanização do Outro. Através da reflexão, da expressão artística e da experiência estética, vivenciamos coisas que nos modificam e que transformam a maneira pela qual vemos o mundo e atuamos nele. Parece-me que desumanizar o Outro está na raiz de muitos dos males que vivemos. Eu acho que o mais urgente em nossa cultura é sanar isso. É esse processo que cega as pessoas e gera assassinatos, extermínios. É isso o que está por trás de barbáries como a Inquisição, a escravização, o Holocausto, que vimos há algumas décadas e, agora, o genocídio em Gaza. Por outro lado, quando lemos Ailton Krenak, vemos que a ideia de 'ser humano' do Humanismo carrega uma noção de superioridade do homem enquanto espécie. Como se ele ocupasse o topo da cadeia de seres da Terra, como se fosse a espécie mais importante e tivesse o direito legítimo de dominar e controlar as outras espécies e os recursos naturais como bem entendesse. O que a gente faz é extrair o que chamamos de recursos da natureza sem pensar em mais nada. Sem perceber que a nossa vida depende da vida dos rios, dos mares e de todo um equilíbrio que se manifesta tanto global, quanto localmente. Então chegamos num ponto em que a atividade humana é marcada pela destruição do planeta e pelo descaso com as outras espécies. Para manter o nosso estilo de vida, devoramos tudo ao nosso redor.


7) Você estreou na literatura com o livro Estranha de Mim (OrganoGrama Livros, 2015). Este livro continha muito de suas “angústias e devaneios da adolescência”, rabiscados com desenhos na marginália dos cadernos escolares. Como foi o processo desse trabalho? Qual a diferença daquela Marcela para a que vemos hoje em dia?

Era um fluxo intenso. Sou daquela geração que cresceu sem smartphone. Na minha adolescência, eu passava muito tempo no meu quarto escutando música, às vezes pintando, desenhando, com amigos, às vezes lendo, gravando vídeos e tirando fotos, bolando apresentações. Foi um tempo mágico em que eu tomava nota de tudo e rabiscava quase compulsivamente em cadernos e tinha uma rede de pessoas que vivenciavam toda aquela efervescência comigo. Eu levava comigo uns cadernos em que escrevia poemas, desenhava, relatava meu dia ou alguma reflexão. Tinha muita reclamação também. A brincadeira sempre foi se desfazer no fluxo e deixar o caos levar à ordem. Eu fazia esse processo com desenhos e textos. Os cadernos de escolas serviam como base, pois eu raramente estava presente na aula. Um dia queimei todos os diários, não sem antes retirar as partes que achava mais importante. Eu queria me desfazer daquelas reclamações, eu sempre fui muito reclamona. 

Hoje em dia é mais difícil produzir coisas desvinculadas do meu ofício de editora de vídeo. O tempo corre tão rápido e as tarefas do cotidiano se impõem de maneira que escrever com afinco e desenhar se dá “nas horas vagas”. De qualquer maneira, é possível trabalhar, cuidar dos filhos, finalizar uma pós-graduação em filosofia antiga e trabalhar no meu novo livro que é destinado ao público infantil.


8) Depois dessa estreia na poesia, você lançou outros títulos. Poderia falar um pouco mais deles? Como se deu a continuação da sua carreira como escritora?

Publiquei o livro de poemas Outra que não eu, pela Editora Raiz. O livro faz parte da coleção Ruído, com novos escritores. Durante a pandemia , participei do livro infantil Conto em Casa com a história “A roseira” que trata, de maneira simbólica, questões sobre a vida e a morte. O livro é uma coletânea de contos que abordam, com delicadeza, sentimentos angustiantes vivenciados pelas crianças durante a pandemia da Covid.


9) Está trabalhando em algum projeto atualmente? Pode nos adiantar o que vem de novidade por aí?

Estou trabalhando no meu primeiro livro infantil. A história foi criada fazendo meu filho mais velho dormir, há alguns anos. É ilustrado pelo meu marido. Fala sobre o sentimento de pertencimento ao planeta, sobre ser um filho da Mãe-Terra. Conta a história de um menino-pássaro que vive em um outro mundo e vem parar aqui. O livro traz questionamentos acerca do que é o homem e dá uma resposta, vinculando-o ao espaço que ele ocupa. O ser humano é a conexão entre o céu e a terra. É tudo isso, mas também pode não ser. Muitas vezes, estamos de fato desconectados dessa Mãe-Terra, assim como de nós mesmos. Quando colocamos os pés no chão e nos conectamos com a natureza, percebemos toda a grandiosidade da Terra, grandiosidade que está também no ser humano, sendo ele fruto da Terra. Acredito que seja isso que precisamos para seguir em frente: enraizar. 

Nós estamos com uma campanha de financiamento coletivo para publicarmos o livro. Você pode nos apoiar clicando no link e escolhendo um valor como contribuição. Separamos recompensas lindas feitas a partir das ilustrações do livro: https://benfeitoria.com/projeto/ovoodomeninopassaro.


10) Você já se aventurou como modelo, editora de vídeo, cantora de banda de rock alternativo, curadora de evento poético com Tavinho Paes, filósofa formada e praticante, entre tantas outras. Como se dá essa multiplicidade artística para você? Como isso tudo se conecta?

Minha mãe era modelo nos anos 80, então eu nasci no meio desse contexto da moda. Eu fazia fotos e comerciais para TV quando ainda era criança. Desde os doze eu escrevia e desenhava, mas mostrava bem pouco. Foi através da música que eu me realizei primeiro como artista. Durante muito tempo, tudo o que eu mais queria era cantar. Por sorte, nessa época do início da faculdade, eu mandei meus poemas para o jornal Plástico Bolha e, para a minha surpresa, vários deles foram publicados. E dois contos também! Isso me deu autoestima e vontade de publicar meus textos e desenhos mais antigos, coisa que fiz no livro Estranha de Mim.

Eu demorei pra entrar na faculdade. Antes, eu fiz um ano de curso técnico de estilismo e um semestre de educação artística. Acabei descobrindo a filosofia e entrei na PUC, onde logo comecei a pesquisar sobre cultura grega, mais especificamente sobre o deus Dionísio. Trabalhei por anos na televisão até que, depois de dois anos de pandemia, home office e a maternidade, tive um piripaque nervoso e me demiti. Hoje sou editora de vídeo, mas atuo como autônoma. 

Então eu diria que essa multiplicidade toda, no momento, se conecta através do sofrimento de não ter tempo suficiente para realizar tudo o que eu gostaria. Isso com certeza… Mas, pensando por outro lado, se conecta pela necessidade do encontro, pela troca. O que mais me instiga a produzir é, por um lado, o ímpeto expressivo e a troca com o outro, o encontro. A obra brota do artista, mas precisa de toda uma comunidade para existir. A troca é o mais importante, realizar o evento “Voz à Vossa” com o Tavinho Paes me fez perceber isso. 


11) A experiência da maternidade perpassou a sua escrita?
 
A maternidade perpassou-me por inteira. Se antes de ter filho, na época da faculdade, eu conseguia participar de diversas atividades, hoje em dia, posso me comprometer com bem menos coisas. Mas não é só isso. Virar mãe foi uma transformação profunda e me modificou em todos os sentidos. Reencontrar a sua identidade após o puerpério não é tarefa fácil. Parando para pensar, depois que virei mãe, quase tudo o que eu escrevi foi direcionado às crianças. 


12) Quais as qualidades de um bom leitor?

A qualidade de um bom leitor é o foco. Foco e uma capacidade de abertura, de se deixar levar pelo texto e por aquilo que o texto desperta em si. Uma boa leitura é um universo que se abre para o leitor e o toca completamente.


Esta entrevista foi realizada como um desdobramento das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.


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