quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Pulso, de Claudia Roquette-Pinto
O que o corpo quer
é a vertigem de se perder
no salto das águas
(não: resistir ao curso),
cruzar o campo de força,
suas explosões
entre os corpos mudos,
cumprir o gesto hesitado,
o impulso que entorna o caldo,
precipitar o susto
(bem-vindo e sem reparo)
de cair dentro do outro
enfronhar-se
no escuro desse pulso,
consumir,
chegar ao fim.
Claudia Roquette-Pinto
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
A vida nos encontros
Como uma labareda de fogo
Movimento em passos aleatórios.
Isso enquanto chama.
Enquanto onda não sou nada.
Nada definido pelo menos.
As ondas se cruzam,
se amam e tornam-se algo,
real, palpável.
Como alma e corpo imoral,
caminho na rua inexpressivo.
Andrógino até o próximo contato.
Até que uma nova onda cruze
minha potencialidade de tomar forma,
contorno, identidade, palavras.
Até lá sou puro som sem melodia.
Uma onda de gente, aleatória;
indefinida até o próximo cruzamento.
Dimitri Merino
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
LUAMÉRICA
Domingos Guimaraes
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Um poema de Ana Chiara
Caderneta de viagem:
Anoto para depois
Não ler.
As minúcias miosótis
A música deste lado
Do sol
Luminosidades
O suor pelas costas
Teu sul
Estrangeira paisagem
Ao norte língua perdida
Retrocesso
Fruto maduro
O apodrecimento
Da polpa de um pêssego.
Ana Chiara
domingo, 7 de dezembro de 2025
Da civilização
na calçada
o corpo
feito
carne
na tábua
o dente ri
o dente morde
o farrapo
o pano de trapo
o restaurante gourmet
(mora na filosofia:
ele não tem nada a ver
com isso)
na calçada
o carro
as duas rodas
fincadas
a janela fechada a mão
que afaga é a mesma
que dá
porrada
na calçada
o corpo
morno
a gasolina
(morra na filosofia)
a rua
o rato
o resto
o restaurante
gourmet
na calçada
o corpo
como
carne
na tábua
Paulo D'Auria
sábado, 6 de dezembro de 2025
Um poeminha de Alvaro Posselt
Entre arranhões e lambidas
para cuidar de tanto gato
precisarei de sete vidas
Alvaro Posselt
sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
Em abismo
Dias que escorrem pelo ralo adentro
deixando um rasto de espuma na pia
no fundo de uma cozinha vazia
num hipotético apartamento
num prédio ainda em construção
numa rua sem mão nem contramão
numa cidade num continente
traçado num mapa de espuma
entorno do ralo de pia nenhuma.
Paulo Henriques Britto
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
Cadência
quem disse que é fácil
sabe só a teoria
o trânsito é pesado
e nada linear
mas hei de vencer
vendo daqui a distância
até lá
apoiado na ciência
e no mistério
na telepatia
no abraço amor telúrico
apagamento gradativo
do rancor
até conseguir o passe
para virar a página
daí em diante
já é sobrevivência
Mauro Santa Cecília
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Marés, de André Vinícius Pessôa
A lua
cheia
de si
é nua.
Se
é minha
já não é.
Amei-a.
Só
(se derrama a lua):
irradia alheia.
André Vinícius Pessôa
terça-feira, 2 de dezembro de 2025
Rota de colisão
Habituado aos caminhos errados
escolhas impensadas
nunca chego ao destino
Sempre aplaudido
Tomo o rumo do caos,
da incoerência, do desafio
A trilha da poesia
o nosso destino
de pecado e salvação
Vou correndo em direção à vida
na fatal rota de colisão.
Hudson Pereira
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
Anúncio classificado
Ẹgrium Tạdrel
domingo, 30 de novembro de 2025
Gerald Thomas arma o circo de horrores em “Sabius, Os Moleques” para demolir os castelos dos reis
“A gente fica dizendo assim: ‘os tempos de hoje são horríveis. Bom era no passado!’. Não era! Não era nada bom no passado. Não era! No passado... tinha Holocausto... tinha guerra. Para de me enfrentar com essa câmera!”.
Ouvidas na voz do ator Jefferson Schroeder no palco do Teatro Raul Cortez do Sesc 14 Bis, em São Paulo (SP), essas palavras demolidoras dizem muito sobre a reflexão proposta pelo diretor Gerald Thomas no espetáculo Sabius, Os Moleques, em cartaz até 21 de dezembro, de quinta-feira a domingo.
Com a inquietude que pauta a existência e a trajetória teatral do encenador nos palcos do Brasil e do mundo, a encenação de Sabius, Os Moleques, estreada na última quarta-feira, 26 de novembro, mostra um universo em desencanto e, sob esse prisma, se afina com a obra pregressa do diretor. Mais uma vez, Gerald Thomas arma um circo de horrores em cena para chacoalhar a mente do espectador já anestesiada pela futilidade e fugacidade dos joguinhos das redes sociais, atacadas no texto com acidez.
Na primeira metade, Sabius, Os Moleques tangencia a forma de uma peça-instalação. A estética visual impera na cena. Thomas submete as ideias a um conjunto exuberante de iluminação (o desenho de luz é de Wagner Pinto), cenário e trilha sonora que impacta pela beleza ao mesmo tempo em que anuncia o desconforto que pauta um texto que afronta o status quo e a noção de que o mundo já foi um lugar bom. É quando o texto ganha musculatura, na segunda metade da encenação, que Sabius, Os Moleques se engrandece no palco.
“Conheço a história. Conheço esse horror chamado colonialismo, imperialismo, globalização – chamem do que quiserem. É a pirâmide que age em favor do um por centro. E que não te inclui, não me inclui, e está indo em busca da lama”, reflete Gerald Thomas através da voz de Fabiana Gugli, atriz associada ao universo do diretor pela longa parceria na Cia. de Ópera Seca.
Em Sabius, Os Moleques, Fabiana Gugli é a única atriz em elenco majoritariamente masculino, formado por Apolo Faria, Nilson Muniz e Pedro Inoue, além do já mencionado Jefferson Schroeder, ator responsável pelo alívio cômico da encenação por meio de tiradas e entonações mordazes. É especialmente aliciante a cena em que Gugli, alçada ao alto do palco por um cabo de aço, evoca a figura de Nossa Senhora ao som de uma “Ave Maria” operística.
A peça permite altos voos. Na trama, um planeta Terra que sucumbiu à humanidade comete suicídio e cai de sua órbita em uma cratera de outro mundo. Ali, cinco sábios, historicamente de eras distintas (caracterizados pelos respectivos períodos históricos), depõem a respeito dos momentos que antecederam o "acidente" sofrido pela Terra e discutem entre si.
Com esse mote, Gerald Thomas não deixa pedra sobre pedra, demolindo os castelos dos reis. O mundo está um horror porque sempre foi um horror desde o início do que pode ser considerado civilização. Sobre os escombros, o encenador ergue um espetáculo que enche os olhos sem deixar de revolver certezas e confortos do espectador. Para isso serve o teatro de Gerald Thomas.
Mauro Ferreira
sábado, 29 de novembro de 2025
O corte ao contrário
A medida que a cor se distanciava,
eu me tornei ausente.
Há tempos buscava o lado contrário do vazio,
o extremo vazado de mim,
há tempos não esperava o silêncio,
tão largo, tão amplo de leitura incompreensível.
Sem saber ao certo quem sou,
há tempos desejo o corte ao contrário:
o caminho inverso do pincel sobre a tela.
Então direi olhando para a noite
que nunca me viu adormecer:
Sou a leveza da quintessência branca,
a terceira margem do cinza negativo,
10 gramas da esquizofrenia do vermelho,
a mancha que mancha o olhar alheio,
eu sou a imaginação viva do preto sobre preto.
Mozileide Neri
sexta-feira, 28 de novembro de 2025
Da minha banda
da banda de Seo Tranca Rua
de Seo sete Encruza
de Seo Calinô
cheguei da banda de lá
molhada de chuva
e trazendo uma flor
vim mordendo um sorriso
sabendo que o mundo
é feito de dor
Roberta Attili
quinta-feira, 27 de novembro de 2025
A uma dama crioula
No inebriante país que o sol acaricia,
Sob um dossel de agreste púrpura bordado
E a cuja sombra nosso olhar se delicia,
Conheci uma crioula de encanto ignorado.
A graciosa morena, cálida e arredia,
Tem na postura um ar nobremente afetado;
Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,
Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.
Caso viesses, Senhora, à heroica e eterna França,
Junto às margens do Sena ou onde o Loire se lança,
Tu que és digna de ornar os solares altivos,
Farias, ao abrigo das sombras discretas,
Mil sonetos brotar no coração dos poetas,
Que de teus olhos, mais que os negros, são cativos.
Charles Baudelaire
(Esse poema, traduzido por Ivan Junqueira, foi publicado originalmente em 1857 e pode ser encontrado no Brasil na edição pela Editora Nova Fronteira)
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
Um poema de Alina
Mi piel de obsidiana me ilumina en las noches.
como las panteras, podré tomar cualquier forma,
pero no otro color.
Alina
(Conheça aqui um pouco mais sobre o trabalho dessa poeta, mãe, negra, nascida em Cuba.)
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Linda e preta
Jarbas Bittencourt
(Ouça aqui a canção de Jarbas Bittencourt interpretada por Nara Couto)
segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Raça extinta
Onde está o meu poovo?
Eu não os vejo.
Nos programas de televisão.
Nas profissões liberais.
E nos comerciais.
Estão invisíveis?
Eu não os vejo.
Calaram sua voz?
Eu não os escuto.
Onde está o meu povo?
Será que estão nas favelas?
Onde, ainda nas senzalas?
Onde está o meu povo?
Eu não os vejo.
Rosângela Muniz
domingo, 23 de novembro de 2025
Alma Corsária
De tanto sono me baixa uma lucidez estranha
em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,
sob o fundo escuro da noite meio baça
(cilíndrica, roliça, bizarra)
seu vulto verde acocorado sobre a água
da piscina que não tem um pensamento.
Eu sinto inveja dessas águas anuladas
tão plácidas, idênticas ao próprio contorno
enquanto eu mesma nem sei onde começo,
quando acabo
e sofro o assédio de tudo o que me toca.
O mundo ora me engole, ora me vara
e tudo o que aproxima me desterra.
Chorei, ao ver no chão da cela,
o botão arrancado na contenda,
os óculos pisados do escritor judeu.
Tenho um coração que estala
com o peteleco das palavras de Clarice.
Numa vila miserável na Bahia,
um negro lindo, lindo,
dança ao som do corisco
— e só me apaixono por casos perdidos,
homens com um quê de irremediável.
Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,
vi abrir-se a máquina do mundo
sob a luz inclinada de Ipanema,
na Serra da Bocaina, no meio da floresta,
no alto da escada no topo do morro
por onde a moça sequestrada vinha subindo
debaixo das lágrimas do pai.
Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera "é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo".
Sim, eu acredito no corpo.
Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.
Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.
Cláudia-Roquette Pinto
(Essa é a versão do poema publicada no Plástico Bolha, n7, em setembro de 2006 e posteriormente publicada na Antologia de Poesia Plástico Bolha em 2014. Confira o livro Alma Corsária, lançada pela autora em 2022.)
sábado, 22 de novembro de 2025
La Lune de Gorée
sexta-feira, 21 de novembro de 2025
Candombe
“Não, que o quê?— respondem.
Uê, morde por dentro
Uê, quem sabe desses meninos
Edimilson de Almeida Pereira
quinta-feira, 20 de novembro de 2025
Zumbi
Foi Zumbi:
Zumbi quem me ensinou
a coragem e a esperança,
a força e a perseverança
que só conhece quem lutou.
Sim, foi Zumbi
quem me manteve acordada
azeitando as armas da batalha
para um dia feliz.
Tudo se fez madrugada
em abraços e tornados casa,
sendo tempo de raiz e asa
enquanto cerzíamos a alvorada.
E mesmo hoje,
com os sonhos desabrigados,
dançam os corpos marcados
de quem sabe acender a noite.
De quem pode virar o bote
e incendiar reinados
quando, de novo, acordados
para cessar o açoite.
Elaine Freitas de Oliveira
Mãe-Preta
Raul Bopp
(Esse poema, assim como Bate-Pilão foi publicado em 1932, no livro Urucungo, pela Editora José Olympio, organizado por Augusto Massi.)
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Padrasto
Brasil, se tua mãe é África
e teu pai é euro,
se tua mãe, mágica
e teu pai dinheiro,
por que te afastas tanto do ventre,
por que tão patriarca se tornaste?
Se tua mãe é Oxum
e teu pai é culpa,
por que abandonaste teus filhos sozinhos na luta?
Brasil padrasto
não vês que não tem identidade alguma
um reflexo apenas no gasto espelho branco?
Brasil, pra onde ruma,
se renegas a mãe que só te ama?
Amor e respeito não se compra
nem com prata nem com arrogância.
A ganância , país ingrato, é um veneno
que mata teus filhos primeiros.
Perdoai, Mãe África, perdoai
este país sem passado e sem futuro
que abate seus filhos a tiros
na engrenagem cega do ouro.
Paulo D'Auria
terça-feira, 18 de novembro de 2025
Neguinho
Neguinho era branco, muito magro, baixinho, feio, narigudo, pé grande e pau pequeno. Detestava futebol, novela, praia, churrasco e pagode, ou seja, tudo em Neguinho era estranho. Gostava de cinema europeu que assistia desde criança na cabine de projeção do centro cultural onde o tio trabalhava. Na verdade, o tio dormia e ele tomava contada projeção.
Amava a escuridão da sala de projeção. Como não sabia ler, podia inventar as histórias que quisesse para aqueles filmes, o mesmo filme poderia ter enredos completamente diferentes e como a sala vivia vazia, muitas vezes, podia terminar o filme a hora que bem entendesse. Na tela podia viver outras vidas, ser alguém, ali era impossível viver sem ele. Neguinho era Deus.
Foda mesmo era quando tinha que voltar pra casa, geral tinha mania de falar que morar no morro era maneiro, maneiro é o caralho! Os vizinhos eram tudo um bando de filhos da puta! Só por que a caxanga dele era de telha, muitos ficavam esculachando. As outras casas eram de laje, tinham umas até com antena parabólica, mas de que adianta? Eles moravam na favela que nem ele! Era tudo um a mesma merda.
Do lado da casa dele era um terreiro de macumba que tinha batucada todo dia, do outro lado da rua uma igreja evangélica com direito à música ao vivo, mal tocada e mal cantada. De manhã cedo abria a birosca da Edna que só tocava e pagode. Pra completar, ainda tinha a oficina do Jô que tocava funk o dia todo. Aquela mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda dizem que a favela agora é pacificada.
Teve um dia que tacaram um cano de ferro que quebrou a telha e caiu na cama, exatamente onde ele dormia. Já pensou se ele tivesse deitado na hora? Morria! Essas paradas são sinistras!
Os arrombados dos vizinhos ainda foram chamar a polícia! Os PMs vão fazer o quê?
— Tô lá em casa, tranquilão. Escuto bater na porta, me aparece o Abelha com os PMs dizendo que eu quebrei o vidro da janela da casa dele. Quebrei mesmo, mas falei que não quebrei. Ele não falou que ninguém viu ele tacando o ferro no meu telhado? Falei logo que ninguém tinha me visto jogando a pedra na janela. Até provar que berimbau não é gaita rolou o maior bate-boca e ficou tudo por isso mesmo. Tem dia que me vem uns pensamentos neuróticos, todo mundo me vê assim, magrinho, baixinho, mas eu sou ruim! Vai vendo!
Neguinho desceu o morro do Vidigal bolado e quando viu aquele monte de gente descendo pra pista pra fazer uma manifestação na rua do governador, foi junto, nem sabia o que era, mas foi.
Quando chegou lá o bagulho já estava doido, cheio de carro de polícia, rolava tiro, bomba, spray de pimenta. Neguinho tremia de excitação, nem sabia mais pra onde estava indo, aquilo tudo era lindo, se sentia o cão solto no meio do redemoinho, quebrava os vidros dos carros, das portas dos bancos, das lojas. Saqueava as mercadorias e não era para roubar, era só pra botar fogo e ver tudo arder. Nunca tinha visto uma fogueira tão linda.
As luzes do fogo e das câmeras de TV se misturavam e ele mostrava mais a cara, sorria, saiu no jornal com foto e tudo. Agora era o vândalo procurando: José Desidério da Silva.
Márcio Januário
segunda-feira, 17 de novembro de 2025
Bembé da liberdade
Os pretos todos novos
Jogados à terra em flor
Foram aterrados aos poucos
Não como gente de valor
As ruínas do cais do Porto
O Valongo que se mostrou
Vem revelar um passado
que nos é constrangedor
São camadas e camadas
De terra, tempo, rancor
Tentativas e descasos
Pra se esconder o horror
Congo, Angola e Benguela
Pedra do Sal testemunhou
A diáspora africana
Roma Negra Salvador
Ben Ben Bembé
Dá licença que me vou
Ben Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Vou tocar meu Agogô
Ben Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Dá licença que me vou
Ben, Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Vou pro Bembé bater meu tambor
A história permanece
Não prescreve uma dor
Deixa rastro sobre o lastro
Do chão em que se pisou
Hoje eu canto a minha graça
O meu credo, o meu valor
Não vou deixar barato
Qualquer preconceito de cor
Reafirmo a minha presença
Com toda glória e vigor
Grito forte, canto alto
Foi o Bembé que me ensinou
Osvan Costa
domingo, 16 de novembro de 2025
Flor de Luanda
Meus escritos estão na Lua, penso em Lua. Viajo à Luanda, para recordar o sorriso da noite de Luanda. Lembro de agosto, quando a Lua sorriu para meus olhos. Dedico à Lua este poema. Preocupo-me com o tempo. A Lua e o poeta.
A Luanda, mulher encantadora. Que, apesar de não guardar suas ansaiedades, encantou-me com seu sorriso das nuvens de África.
Comprar-lhe-ei uma flor
Uma flor de Luanda
A mais remota das Áfricas
A flor que da areia molhada pelas lágrimas
desabrocha na guerra e semeia esperança
Meu impasse é errar teu sorriso
e confundi-la com a flor
São Luandas
Luas de África
Amarradas às armas não tão brandas
Mas brancas.
Ei de dá-la uma flor
para matar sua dor
afogar o desamor da noite que lhe sufoca, flor.
Manoel Canuto
sábado, 15 de novembro de 2025
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Guimarães Rosa é humanizado na cena minimalista de "Pormenor de ausência"
O escritor mineiro João Guimarães Rosa (27 de junho de 1908 – 19 de novembro de 1967) está entronizado no panteão dos imortais da literatura brasileira por livros como Sagarana (1946) e Grande sertão: veredas (1956), obras-primas referenciais pelo estilo inovador da prosa de Rosa.
Na cena de Pormenor de ausência, espetáculo que vem rodando o Brasil desde 2022 e que no momento está em cartaz no Teatro Vannucci, no Rio de Janeiro (RJ), em temporada às segundas e terças-feiras, Guimarães Rosa aparece humanizado na pele do ator paulistano Giuseppe Oristanio.
Sob direção de Ernesto Piccolo, o ator interpreta o escritor nos últimos anos de sua vida, em saga para se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras e, na luta por uma cadeira na ABL, o romancista se despe da aura sagrada e se mostra um homem picado pelo bichinho da vaidade. Se a obra já estava consolidada, a alma do escritor ainda estava insaciada, movida pelo desejo de uma imortalidade que os livros já haviam lhe garantido, mas que Rosa enxergava somente na vaga da ABL.
Com boa caracterização, Giuseppe Oristanio interpreta Guimarães Rosa na primeira pessoa, dando voz ao texto escrito por Lívia Baião a partir de pesquisa sobre a vida do escritor, o que deu à dramaturga acesso a cartas, documentos e textos de ficção do autor que debutou no universo literário em 1936 com um livro de poesia, Magma.
Em Pormenor de ausência, Guimarães Rosa é o narrador da própria história, de uma saga que mistura vaidade, obsessão e morte. Na encenação minimalista, calcada no texto e no ator, a luz e a música entram somente no fim da peça, para realçar um desfecho já notoriamente trágico.
Como se sempre pressentisse que a chegada à ABL fosse o ápice e o fim da saga existencial, Rosa de fato morreu três dias após tomar posse na cadeira de número 2 em 16 de novembro de 1967, em cerimônia pautada por elogios superlativos de apoiadores, como o jurista Afonso Arinos de Melo Franco (1905–1990).
Pormenor de ausência retrata um Guimarães Rosa às voltas com crenças religiosas, sérios problemas de saúde e dilemas comportamentais. A cena enfatiza que a grandeza da obra muitas vezes contrastou com a dimensão ordinária de uma alma humana como muitas, vítima das armadilhas do ego. É o homem que está em cena, com inseguranças e medos.
Essa humanização de Guimarães Rosa ao longo da hora de duração do monólogo contribui para dissolver qualquer aura mitológica da imagem do autor que desbravou as grandes veredas do sertão mineiro. A recorrente perspectiva da morte talvez seja a senha para o entendimento da obsessão do escritor pela imortalidade intelectual conferida com a entrada na Academia Brasileira de Letras.
Com um fardão posto em cena em uma das extremidades do palco, como a lembrar para o espectador da saga particular de Guimarães Rosa, Pormenor de ausência descontrói a imagem sertaneja, ruralista, que talvez ainda persista no imaginário de quem desconhece as múltiplas atividades desse escritor que também foi diplomata e médico. Mas que passou para a história como um escritor grandioso, visto em cena com as pequenezas comuns a toda a gente.
Mauro Ferreira
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Oxumaré
Senhor que une a terra
Suas cores incendeiam os céus
Céus e terra
Terra e céus
Serpentes que giram
Entrelaçam mundo
Fio de contas amarelo e preto
Todas as cores são Suas são
Ri dos gêneros humanos
Feminino e masculino
Para Ele não há
Apenas existir
Infinitamente
Cobrarcoíris
Apenas É
Arroboboi Oxumaré!
No fim do arco-irís
Tem riqueza
Quem é digno de ir lá?
E se tudo mudar
E se tudo muda
Deixe a roda girar
A vida é pra dançar
Guaiamum
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
Àquela de cabelos d'África
Tal qual a árvore do Éden me instiga o pecado
Guilherme Ottoni
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Dias de Kizomba
Ab(dias) de lutas e não dias de luto.
Um homem como Abdias,
estrela incandescente,
não morre.
A sua luz
cor negra zagaia
feriu a branca consciência
de uma democracia racial
nula e vil.
Um homem como Abdias,
estrela Nascimento,
Zumbi eternizado,
não morre.
A sua luta
Ziguezagueia
d'África à diáspora
espalhando sementes baobás
em cada uma/um de nós.
Conceição Evaristo
segunda-feira, 10 de novembro de 2025
Um poema de Vic Torinno
Sempre disseram que preto não pode falar
Preto não tem voz
O preto que tem voz é sempre calado
Mais um sorriso preto apagado
Mais uma esperança preta tombada
Mais um corpo preto no chão
Mais sangue preto que escorre
Mais uma preta pra estatística
Mais um dos nossos mortos.
Descansa
Luz no teu caminho porque o povo de Aruanda te abraça e te ilumina
Descansa.
Vic Torinno
domingo, 9 de novembro de 2025
Um poema para Xangô
um poema bravo que cante o fogo & busque
um olhar que leve
a caminhar sem treva
a estar completa e tocar
o outro apenas como um campo de força
ereto
amigo,
perder é um pavio
é osso
cante o fogo & busque
um poema novo
Juliana Bernardo
sábado, 8 de novembro de 2025
Prece de areia
Ogum Beira-mar
corre maré solta
traz faísca no olhar
quebra a louça
Ogum Beira-Mar
vem navegar
no fio da navalha
nos olhos de Mãe Iemanjá
Ogum Beira-Mar
vou contigo, não arrisco
caio no mar
vou navegar
Sétima onda
rajada de vento
Iansã no terreiro
na água e no mar
Dá passagem
Ogum Beira-Mar
Armadura prateada
búzio em flor
água salgada
na ronda da Calunga Grande
Seu Beira-Mar faz morada
Como bravos navegantes
de destino incerto
pedimos sua proteção
nos caminhos dos mistérios
Ogum Beira-Mar
vou contigo, não arrisco
caio no mar
vou navegar
Karina Gercke
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
Milionário do sonho
Elisa Lucinda e Emicida
(Ouça aqui a canção cantada e rimada pelos artistas!)
quinta-feira, 6 de novembro de 2025
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
Dia a dia
Um dia vi meus amigos jogando ping pong numa
travessa da Rocinha II do Karatê na Cidade de Deus.
Parei, observei e fiquei por um instante imensamente
feliz porque sorriram juntamente comigo.
Outro dia avistei diversas minas gatas da comunidade
tomando açaí e sentadas numa mureta. Elas sorriram
pra mim e sorri pra elas também.
Daí, avistei jovens tirando uma partida de futebol
numa quadra. Eles acenaram pra mim com respeito
e emocionadamente chorei. Hoje escrevo, publico e
divido esses momentos com todos vocês.
Nélio Fernandes
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Mamãe mar
Mãe d'água
Rainha sereia
A balançar no vem e vai que embala
Fica doce feito bala
Peixinho ele é
Quando visita mamãe
Viaja nas profundezas azuis
Belezas do mundo fundo do mar
Tem areia, conchas, corais
Peixes, tartarugas, golfinhos, baleias
Navios e mistérios ainda mistérios
O menino a sonhar...
Coisas para lá...
De um horizonte além mar...
Banditt
segunda-feira, 3 de novembro de 2025
Monjolo (Chorado do Bate-Pilão)
Fazenda velha. Noite e dia
Bate-pilão
Negro passa a vida ouvindo
Bate-pilão
Relógio triste o da fazenda.
Bate-pilão
Negro deita. Negro acorda.
Bate-pilão
Quebra-se a tarde. Ave-Maria.
Bate-pilão
Chega a noite. Toda a noite
Bate-pilão
Quando há velório de negro
Bate-pilão
Negro levado pra cova
Bate-pilão
(1926)
Raul Bopp
domingo, 2 de novembro de 2025
Negra, sim!
Nas minhas vivências
As potências e os afetos adotaram uma postura
"Quero ser livre com sentido"
Sou intensa, tenho um coração que pulsa, pulsa, pulsa...
Não quero dormir, não quero fugir...
Só quero viver, viver!
Eu me construo, eu me reconstruo.
Eu vivo!
Sou mulher negra, sim
Enxugo lágrimas e só caminho quando sei onde vou chegar
Meu mundo é um sonho real
Nele construo ideias,
Crio sonhos e meu ego se enaltece!
Sou a união estável entre seres que se amam
Quero a paz entre os povos
a harmonia para o planeta em que vivemos.
Não tenho dúvidas em meu "Ser"
Só tenho garra e vontade de "Ser", de querer, de saber,
de vencer!
Sou negra cheia de graça
Não digam para mim: ponha-se no seu lugar!
O meu lugar é onde eu quiser estar!
Negra, sim!
Mery Onírica
sábado, 1 de novembro de 2025
Vera Fischer se espelha no jogo de cena da peça "O casal mais sexy da América”
Comédia escrita pelo dramaturgo norte-americano Ken Levine com fidelidade às regras do playwriting, America's sexiest couple estreou em julho de 2022 nos Estados Unidos, pondo em cena temas como etarismo e abuso sexual, a partir do reencontro de um casal de atores em fase outonal de suas carreiras.
Três anos depois, o texto ganha a primeira montagem brasileira em adaptação fiel de Tadeu Aguiar, também diretor da encenação, que vem percorrendo capitais do Brasil ao longo de 2025. No momento, O casal mais sexy da América está em cartaz no Rio de Janeiro (RJ), no Teatro Clara Nunes, um dos palcos do Shopping da Gávea, espécie de Cinemark do teatro carioca.
O grande atrativo da peça é a presença de Vera Fischer no papel de Susan White, atriz veterana que fez muito sucesso nos anos 1990, ao estrelar série de TV com o ator Robert McAllister, personagem de Leonardo Franco. Três décadas depois, enquanto luta para se manter em cena, Susan reencontra casualmente Robert em um dos quartos do hotel onde estão hospedados para ir ao funeral de um colega da mesma série. O encontro traz à tona memórias dolorosas, em jogo de cena armado para provocar o riso do espectador, com direito a uma cena de sexo confeitada com o humor pastelão das comédias mais populares.
Com elenco completado por Vitor Thiré, bem aproveitado no papel de um jovem millennial que trabalha no hotel, O casal mais sexy da América se escora na presença magnética de Vera Fischer. Uma das referências de beleza feminina no Brasil, a atriz catarinense, ao longo de sua carreira, lutou para provar que tinha talento. Esse talento é comprovado na pele de Susan.
Vera Fischer festeja 74 anos neste mês de novembro, precisamente no dia 21, e enfrenta há anos o mesmo ocaso de Susan White no mercado do audiovisual. Outrora protagonista de novelas como Coração alado (1980) e Laços de família (2000), sem falar em séries como Desejo (1990), a atriz já não encontra espaço no mundo das novelas e séries. E volta e meia se queixa disso em entrevistas.
Dessa forma, a encenação de O casal mais sexy da América se alimenta de um jogo de espelhos entre atriz e personagem. É como se Vera se visse refletida em Susan. E, quando a personagem desabafa sobre os efeitos do etarismo na profissão, é quase inevitável que o espectador interprete as falas como queixas da própria Vera Fischer em curiosa interseção entre ficção e realidade.
Com montagem de contorno realista, O casal mais sexy da América sustenta a atenção do público como esse jogo de cena ancorado na presença luminosa da impagável estrela Vera Fischer.
Mauro Ferreira
Mês da Consciência Negra no Plástico Bolha
sexta-feira, 31 de outubro de 2025
Um poema de Carlos Orfeu
o edifício
arquitetura-niemeyer
fauna pétrea com salas
escadas/elevadores/funcionários
engole o poente
em sua concretude
e desce todos os andares
na pupila
entre a efusão da realidade
pessoas perambulam na vertigem
com seus relógios de estimação
nas coleiras rosnando
tempo
Carlos Orfeu
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Canto, de Paloma Roriz
Certas palavras brilham.
Abertas em voo,
encostam velozes nos objetos.
Encontram nos rostos,
desenham linhas ao redor da boca,
tocam a ponta dos dedos,
como se vertessem azeite antigo.
Palavras fibrosas, que curam as horas.
Palavras pétreas, que antecipam o silêncio.
Paloma Roriz
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
terça-feira, 28 de outubro de 2025
Ettore com Lucas
Enquanto a gente discorre
entre lascas de queijo
acompanhadas de mel
Heineken e pão fresco
sobre a febril atividade
humana, na rua que vejo
pela vidraça o verão
tem pernas de modelo.
Até que escorrendo do sol
feito uma espécie de cera
e atravessando a conversa
com o rumor da abelha
que prepara o aguilhão
para ferroar suas presas
a tristeza cai ardente
sobre a tarde atrás da mesa.
Alexandre Bruno Tinelli
segunda-feira, 27 de outubro de 2025
noite-se
teu ventre azul,
seco de poesia
feito rio manso
em que foi deitar
ao estilo falo,
no trincar dos dentes
como um pau na
boca, que riça
sua pele e que
vai morrendo
pra enfim, gozar!
Anelise Freitas
domingo, 26 de outubro de 2025
um poema de Thiago de Freitas Peixoto
Sobre a sujeira
eu não sei o que mais incomoda
a poeira sobre quem se acomoda
ou quem fica passando pano.
Thiago de Freitas Peixoto
sábado, 25 de outubro de 2025
Um poema de Beatriz Bastos
Desde que nasci
te escrevo
estas palavras
seus olhos, algo seu, algo meu
que ao escrever
te prendo, te liberto,
para sempre
na minha pele
como em palavras
nuas.
Beatriz Bastos
sexta-feira, 24 de outubro de 2025
Luz acesa
Ẹgrium Tạdrel
quinta-feira, 23 de outubro de 2025
Carnicidades
É Rio de Janeiro e tarde cai
no céu dourado que arde o grito
mudo sufoco pensamento sexo.
sigo ambulante e só
vejo a pedra talhada pela fome
em pleno êxtase do riso enganado e seco
prenhe de janelas ovos uivos vivos e mortos
na noite em que mora o silêncio feito de estrondos
consertos comícios de cometas comércios.
Vago livre num voo breve
pairo desprovido desprevenido
desatino a língua escolhida pelo deus
que são tantos que são todos
todo mundo a cidade e a carne.
André Vinícius Pessôa
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
Haicai de Verão
de infinitas lágrimas
são feitas as praias
Lucas Viriato
terça-feira, 21 de outubro de 2025
Rua Debret
Há muito tempo,
eu diria milênios,
que não abraço o meu amor
como abracei aquele dia
na rua Debret, quando dentro
dos bolsos os ingressos do cinema
suspiravam pelo
que ali acontecia,
e dentro das bocas os beijos
Dançavam,
pasmos com tamanha alegria.
Hudson Pereira
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Cloe, de Carlos Andreas
Banhada por canais
concêntricos
sobrevoada por pipas
de cidade grande
as pessoas
não me reconhecem
nas ruas
com o
guepardo
na coleira,
mesmo
aqui entre
os pórticos
onde por acaso
me abriguei
da chuva
Carlos Andreas
domingo, 19 de outubro de 2025
sábado, 18 de outubro de 2025
Via indireta
Às vezes não amo as rosas,
mas as mesas que as sustêm.
Mas me dirijo às flores
num engano que convém.
José Irmo Gonring
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Marco Nanini é fiel a um teatro de ideias ao reencontrar Gerald Thomas em “Traidor”
Vinte anos após armar a cena com a reflexão política de Um circo de rins e fígados (2005), Marco Nanini continua em cartaz com o espetáculo em que reencontra Gerald Thomas, um dos encenadores mais potentes do teatro brasileiro. A reunião de ator e diretor acontece em Traidor. Em rotação pelo Brasil desde novembro de 2023, mês em que estreou em São Paulo (SP), o espetáculo aterrissa no Teatro Luiz Mendonça, no Recife (PE), para duas apresentações agendadas para 18 e 19 de outubro.
Traidor tem texto escrito por Gerald Thomas a partir de observações ácidas sob o fervente caldeirão em que está mergulhado o mundo contemporâneo. Na cena, marcada pela exuberante estética visual criada pelo diretor que se alterna entre Brasil e Nova York, Nanini personifica um ator que, às voltas com o mundo em ebulição da própria cabeça, reflete com certo ar nietzschiano sobre os (des)caminhos do Homem, enquanto permanece isolado em uma ilha, cercado de indagações existenciais.
“Se houvesse um cruzamento entre Kafka e Shakespeare, então esse seria Traidor, uma espécie de híbrido entre o Joseph K de O Processo e o Próspero de A Tempestade, cuja mente renascentista olha para o futuro da civilização, perdoa os detratores e os absolve", sintetiza o encenador.
Na encenação de Gerald Thomas, o mundo é um reino em desencanto, terreno fértil para o cultivo de questionamentos e reflexões existenciais de um ator que se sente estranho no ninho da era digital e das redes nem sempre sociais. Um ator que, no delírio da mente, mostra resiliência na defesa e manutenção da emoção. “A gente se emociona, sim”, repete o ator, em elo com o espetáculo de 2005, encerrado com frase similar.
O ator está só em cena. Nem a presença do coro masculino que encorpa a encenação ao transitar pelo palco dilui a sua solidão na dramaturgia fragmentada e intencionalmente desconexa de Gerald Thomas. Povoado por destroços, sinais da decomposição do mundo contemporâneo, o cenário entroniza o ator ao mesmo tempo em que o desnuda diante do público. O ator-rei está nu, incapaz de se vestir com a bestialidade cotidiana que o assombra como um fantasma.
Traidor se conecta com a obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) porque põe em cena a angústia do homem moderno — no caso, um ator, mas poderia ser qualquer homem — diante do absurdo da condição humana. Teatro do absurdo? Sim: há muito de Samuel Beckett (1906 – 1989) na medida em que o texto não está lá para ser “entendido” como uma apostila ou uma cartilha da dramaturgia convencional, e sim para ser sentido como um turbilhão de sensações aflitivas que traduzem o descontrole da existência humana no caos apocalíptico do século XXI. Se o teatro por vezes soa absurdo, é porque a vida é absurda.
Totalmente entregue ao jogo cênico proposto por Gerald Thomas, Marco Nanini expõe em Traidor a fidelidade a um teatro de ideias em que música, iluminação, cenografia — todas exuberantes, como de hábito nos espetáculos de Gerald — enchem olhos e ouvidos sem atenuar o desconforto da mente do espectador.
Diante do apocalipse iminente, o dramaturgo aposta na colagem de cacos (em afinidade com o cenário em ruínas) e de ideias encadeadas com certo humor e sem lógica aparente no texto provocativo. Em Traidor, o trabalho de Marco Nanini está posto a serviço do teatro de Gerald Thomas. O que somente engrandece o ator no exercício inquieto do ofício.
Mauro Ferreira
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Poeminha de Rodrigo de Souza Leão
cavo o meu espaço
cavando a sepultura
buraco nas alturas
Rodrigo de Souza Leão
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Rocinha
Olhar a favela
Assim tão bela
Dessa grande janela
Me mostra as sequelas
Expostas
À mostra
Os tais pormenores
Como num entalhe
Falam por si só
Aonde a vida
Aberta em ferida
É de deus um milagre
Da bala perdida
Ou do pó
Bela favela
Favela bela
São becos, ruelas
Atalhos, vielas
Nascida dos passos
De desbravadores
De amores e desamores
Dos que foram empurrados
Morro acima
Deletados
Marginalizados
Eu ouço o seu grito
Às vezes aflito
Às vezes tristão
Ou então
Eufórico
Estúpido
Melancólico
Na ânsia de só querer chamar atenção
Eu vejo a sua luta
Eu vejo a batalha
Na eterna permuta
De guerra e de paz
Na vida favelada
Que cresce aos centos
Ao longo do tempo
Frágil
Fugaz
Favela moleca
Favela sapeca
Malandreada
Morena ondulada
Bailando com a gente
De frente pro mar
Eu cresço a te observar
Kell
segunda-feira, 13 de outubro de 2025
Cacoete
todos os poemas
são inconfessáveis
mas pensando bem
não faz diferença
acho que ninguém
revira esta gaveta
à procura de pistas
de que importa um tropeço
na sapatilha ou o cacoete
daqueles que desviam
os olhos
dos olhos?
Alice Sant'Anna
domingo, 12 de outubro de 2025
Descaptura de um órgão
isso merece o medo
se você disser que não está com medo
está mentindo
é como descer uma montanha gigante
sem experiência alguma
Mauro Santa Cecília
sábado, 11 de outubro de 2025
espantalho vespertino
amarro meu pulsos num laço
à boca, coração de veado e uma fita
tapo minhas orelhas com mato
vendo meus olhos com trapo
esqueço meus pé no telhado
com suspiro, um segundo e acabo.
Ana Salek
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Mineiridade
Quando chego de Minas
trago sempre na boca um gosto de terra.
Chego aqui com o coração fechado,
Um trem esquisito no peito.
Meus olhos chegam divagando saudades,
meus pensamentos cheios de uais
e esta cidade aqui me machuca
me deixa maciça, cimento
e sem jeito.
Chegando de Minas,
trago sempre nos bolsos
queijos, quiabos babentos
da calma mineira.
É duro, é triste
Ficar aqui
com tanta mineiridade no peito.
Conceição Evaristo
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Cafeterias
Colombo
Gioconda
Starbucks
Cafeína
Esch Café
Manon
Casa Cavé
Argumento
(nobres endereços para sofrer em silêncio)
Hudson Pereira
terça-feira, 7 de outubro de 2025
O nada
Nada vi nada sei
Nada me interessa
Nada é normal
Nada é tão tudo que eu chego
A não ver nada
Nada dá medo
Nada é ver ouvir e calar
O nada é não se incomodar com nada
Pra viver nesse mundo de covardia é preciso
Muitas vezes você ser surdo
Portanto o nada não ouve, não vê
Não sabe de nada
Lindacy Fidelis
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Oração sem sujeito
Oh grande ácido acetil-salicílico,
Ẹgrium Tạdrel
domingo, 5 de outubro de 2025
Felina, de Noélia Ribeiro
you
beside me
inside me
behind me
hiding me
near me
hear me
you and me
you all me
me all
Noélia Ribeiro
sábado, 4 de outubro de 2025
Um poema de Luana Carvalho
Todos os dias me sujo de coisas eternas café preto
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
3x4, de André Vinícius Pessôa
Que tempo é esse?
Que medida da esperança deitada na grama?
Que é desse jardim das delícias?
Mil e uma noites com seus dias quentes?
Mergulhar no fado
atravessar a nado
criar o verso fátuo:
a tão pequena gota.
3x4
meu retrato
minha cara à tapa.
Mão no leme:
a hora é nua.
Saravá
a terra treme.
Minha tara
sua lua.
André Vinícius Pessôa
quinta-feira, 2 de outubro de 2025
“O motociclista no globo da morte” expõe o estado-violência do ser humano
Monólogo escrito
por Leonardo Netto e estrelado pelo ator Eduardo Moscovis, sob direção de
Rodrigo Portella, impacta ao mostrar a ebulição da humanidade através da
história de um homem comum diante da barbárie.
O poeta e dramaturgo Bertolt Brecht (1898 – 1956) já alertou que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém reputa como violentas as margens que o comprimem”. No monólogo O motociclista no globo da morte, escrito por Leonardo Netto e encenado pelo ator Eduardo Moscovis sob direção minimalista de Rodrigo Portella, a violência espreita o espectador como um bicho acuado, pronto para atacar a qualquer momento. Só que o ataque, previsto desde o início do monólogo, é desferido ao fim de forma surpreendente e atinge o espectador como soco no estômago que chacoalha a mente e provoca a reflexão sobre um mundo em permanente estado de violência na vida cotidiana.
Na cena orquestrada por Rodrigo Portella, a violência é de início interior e tem a semente escondida na alma do personagem de Moscovis, Antônio, homem pacífico que vê o mundo implodir por força de circunstâncias trágicas provocadas por atos contínuos de misoginia e de crueldade com um animal. Nesse contexto, Antônio poderia até ser visto e saudado como herói, mas, como também lembrou o escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre (1905 - 1980), toda e qualquer violência é sempre uma derrota.
Antônio sai derrotado do embate com outro Antônio, um ser humano como ele, um homônimo, um semelhante. Mas a sensação de derrota é geral ao fim da cena muda em que impera um incômodo silêncio. E até no silêncio ator e texto se agigantam no espetáculo em cartaz de quinta-feira a domingo no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro (RJ), até 26 de outubro.
O motociclista no globo da morte chega à cena com o mesmo impacto de Prima facie (2024), monólogo blockbuster da temporada anterior estrelado por Debora Falabella sobre a injustiça praticada pela Justiça contra mulheres vítimas de violência sexual. Há um elo entre os dois espetáculos porque Rita, personagem citada inúmeras vezes no texto de O motociclista no globo da morte, mas invisível aos olhos do espectador, também é vítima psicológica da espiral de violência misógina.
Mas é Antônio, o homem em tese pacífico vivido por Moscovis, que exterioriza e põe em prática uma violência que, afinal, reside e lateja dentro de todos os seres humanos, espectadores de videogames e de filmes sanguinários. Mesmo porque, nesse globo da morte chamado planeta Terra, já é difícil saber até que ponto a violência da vida real é potencializada pelos estímulos da violência da ficção.
Antônio derrapa e perde o controle no globo da morte. No momento do acidente, a iluminação de Ana Luzia de Simoni deixa o ator com menos luz na cena intencionalmente casual, reforçando a ideia, proposta pelo diretor Rodrigo Portella, de que Antônio é homem comum, ordinário, o que também se traduz visualmente pelo figurino de Gabriela Marra.
O espetáculo se impõe pela força do texto, da interpretação do ator (especialmente comovente na descrição do ato de violência) e da direção acertadamente crua. Todos os acessórios, como a trilha sonora de Muato, corroboram a sensação de que o sucedido com Antônio pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. E é essa consciência crescente ao longo do espetáculo que atiça a reflexão do espectador, capturado para olhar para dentro de si mesmo e detectar os polos potenciais de violência internalizada.
O motociclista no globo da morte reforça o dedo na ferida social. E a mente arde, ciente de que todo mundo pode ser Antônio se comprimido pelas margens estreitas da barbárie. Até porque, em última instância, como já sublinhou um líder budista da linhagem do dalai-lama, a violência interna ou externa é um sinal de desespero.
Mauro Ferreira
África
África,
Tão exótica na forma:
Os imensos embondeiros,
As resinas de acácia
E, nas planícies,
Os ungulados,
As placas de búfalo,
As patas de elefantes,
O satãs rebelados.
África,
Tão rica:
Os rios em delta,
Os lagos brancos,
Os oceanos largos
E, no deserto,
As pirâmides colossais
Observando os séculos
África,
Tão melancólica no fundo:
Gemente,
Dolorosa,
O choro engolido
Pela areia ardente,
Pranto da prole desgraçada
Que nutriu com seu sangue
A América.
África,
Tão grotesca:
O cavalo do beduíno,
O guizo das cascavéis,
O sudário do Saara
Amortalhado de suplícios,
O canal de Suez
Amarrando os seus pés.
África:
Forma e fundo,
Alimária do mundo.
Raquel Naveira
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Pranto
nada machuca tanto
(e gera mais espanto)
do que este curto corte
da fina folha em branco
Lucas Viriato
terça-feira, 30 de setembro de 2025
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Um poema de Thiago de Freitas Peixoto
Em legítima defesa
oito tiros para derrubar a presa.
Todos na altura do peito.
do suspeito de ser culpado
de estar no lugar errado
e não portar certas respostas.
Quem viu atura calado.
Thiago de Freitas Peixoto
domingo, 28 de setembro de 2025
Um poema de Paulo D'Auria
embora cheio
de fome
seja uma figura de linguagem
é também uma realidade
onde não cabe
poesia alguma
Paulo D'Auria
sábado, 27 de setembro de 2025
Um poema de Adriano Lobão Aragão
longe das vitórias
cultivamos batalhas
e com mãos vazias
te oferecemos esses tesouros:
a entrega dos dias
cercados de solidões companheiras
o que a vida nos der de dádiva
chamaremos amor
Adriano Lobão Aragão
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
Um poema de José Elvis Ermano
nem sangue
nem hóstia
era mel de babaloo
na boca da beata
José Elvis Ermano
quarta-feira, 24 de setembro de 2025
Mar da noite
A fenda crescente
da lua minguante
ancora uma estrela.
Ao largo da noite
um errante cometa
singra o quadrante.
No céu de água negra,
preciso sextante,
a mente navega.
O pio da coruja
é farol de tormento!
Um amor flutuante.
Tânia Pagano
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Descoberta
tudo flui
num átimo
cabe à vida o fardo
de carregar a lágrima
superposta em cruz
as alegrias não tecem mais
o sentido dos dias
à espera do homem
o inexorável fim
Luiz Otávio Oliani
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Wit, de Eduardo Tornaghi
As coisas não são o que vemos
As coisas nem são o que são
Toda certeza que temos
É vaidade
Qualidade do que é vão
Eduardo Tornaghi
domingo, 21 de setembro de 2025
sábado, 20 de setembro de 2025
sombra
como pode o sol debaixo da pedra?
toda sua giganteza atrás dum pedregulho tão pequeno
pedrinha de ladrilhar a rua pro meu amor passar
o amor é traiçoeiro
Bruna Escaleira
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
Um poema de Frederico Barbosa
mundo inundado de
filme negro fumaça morcego no ar
antena de rápido radar
anda
por ecos ondas e nós
Frederico Barbosa
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
Salto ornamental
os poucos segundos diante da câmera
não fariam jus aos anos (uma vida
inteira) de ensaios e dores musculares
e alimentação regrada e tantas outras privações
os poucos segundos mostram
a atleta no trampolim
ela se prepara para o salto
ornamental que quem sabe
vai lhe render uma medalha
uma vaga nas olimpíadas
a consideração de alguém tanta coisa
o treinador apreensivo finge
Alice Sant'Anna
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Um poema de Daniel Pereira
beijos e abraços
sabor babaloo
dedo na boca, pose
ares de mon amour
faz e acontexe
cresce e aparexe,
tipo assim, bye-bye
ai, ai, sai
é luxo, não é lixo
sacou, bicho?
Daniel Pereira
terça-feira, 16 de setembro de 2025
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Seppuku
Rendidas sob a katana
e a flor da honra, as mãos
se preparam para esculpir
o fim:
toda a luz do vivido —
agora — entregue a lâmina
e ao eterno sono. Exceto,
a cerejeira escarlate
na lã do kimono.
Salgado Maranhão
domingo, 14 de setembro de 2025
Um poema de José Elvis Ermano
urubus e andorinhas
decidem na porrinha
a cor do entardecer
José Elvis Ermano
sábado, 13 de setembro de 2025
Zezé Motta faz do mundo ativista de Maya Angelou um templo de delicadeza
A escritora e poeta norte-americana Maya Angelou (4 de abril de 1928 – 28 de maio de 2014) deixou rastro de luz e ativismo no mundo ao perpetuar em relatos autobiográficos a força perene do povo negro diante dos abusos cotidianos da branquitude dos Estados Unidos. Essa luz tem sido espalhada nos palcos do Brasil pela atriz e cantora Zezé Motta com o espetáculo Vou fazer de mim um mundo, monólogo ora em cena no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro (RJ), até 5 de outubro, após passar por Brasília (DF) e Belo Horizonte (MG).
Em Vou fazer de mim um mundo, primeiro monólogo da carreira da atriz fluminense de 81 anos, Zezé Motta interpreta trechos do primeiro livro autobiográfico de Maya Angelou, Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, publicado em 1969. No livro, obra-prima de literatura calcada na resistência e no humanismo que se agigantam em oposição à brutalidade do racismo e da violência sexual praticada contra mulheres negras, a escritora relata o estupro que sofreu aos oito anos em St. Louis (EUA) e uma série de abusos cometidos nos Estados Unidos segregacionistas dos anos 1930 e 1940.
Na voz e no tempo de delicadeza da interpretação de Zezé Motta, as palavras de Maya Angelou calam fundo na alma do espectador. Sem carregar no tom, a atriz concentra e interioriza a emoção de um relato que combate o horror com a poesia. Aliás, foi pela poesia e pela literatura que a escritora saiu do estado de mudez — no qual permanecera por anos, refugiada no mundo interior — e que recuperou a voz. Voz que se tornou ativista com a escrita de livros autobiográficos e que levaram Maya — nascida Marguerite Ann Johnson — a ser condecorada em 2010 com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo então presidente dos Estados Unidos Barack Obama.
Em Vou fazer de mim um mundo, Zezé Motta aproxima o universo ativista de Maya Angelou do Brasil, com a consciência de que, parafraseando verso de música do grupo Titãs, miséria humana é miséria humana em qualquer canto do mundo. Maya Angelou foi brutalizada na infância por uma miséria humana recorrente no cotidiano brasileiro, historicamente regido pela violência e pela injustiça social.
No monólogo, encenado por Zezé sob direção de Elissandro de Aquino, o paralelo entre Brasil e Estados Unidos é feito não somente pelo canto de temas afro-brasileiros entre temas norte-americanos, mas também pela citação de nomes como Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) e Elza Soares (1930 – 2022), cantora brasileira que também transcendeu os abusos sofridos ao longo da vida pela força da palavra, no caso da palavra cantada.
Na cena de Vou fazer de mim um mundo, a música executada pela percussionista Mila Moura e pelo guitarrista Pedro Leal David (diretor musical arranjador do espetáculo) embala o canto transcendental de Zezé Motta. Mas é a palavra de Maya Angelou a força motriz do monólogo em que Zezé se eleva com voz ativa, pronta a neutralizar o horror do racismo com a resistência do humanismo, espalhando a luz irradiada pela escrita ativista da autora norte-americana.
Mauro Ferreira
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Enfim
Quanta coisa fiz
quando tudo impedia
que a felicidade, alegria
quantificasse em mim
Enquanto fingia
sentir o que eu sentia
tanta coisa mudou
que acabou, enfim
Quando não mais quis
querendo você, veio e diz
o quanto gostaria
que a gente fosse feliz
Mariana Teixeira
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Quinta
Sempre quinta.
Primeiro: um breve intervalo,
uma conversa distraída
uma pausa do dia-a-dia.
E uma quinta...
Um dia foi mais longa,
porque eu aceitei deitar para descansar.
Rosilene Jorge dos Ramos
quarta-feira, 10 de setembro de 2025
Matrimandir
arquitetura que é poema
de água luz pedras
cristal e silêncio
— beleza
lugar idealizado
construído imaginado
a duras custas
— dedicação
reflexo no espaço
dos sonhos da Mãe
centro da galáxia
— Auroville
Lucas Viriato
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Da inocência
No abatedouro das línguas
não vibra palavra encaroçada:
doce no tacho,
olhar de criança cobrindo ossos de galinha
no chão de domingo
- anúncio de dança:
amarelinha
goiabada
e o gosto do verbo nos dedos
Carolina Barreto
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
domingo, 7 de setembro de 2025
Soneto social
É sete de setembro. E queimam balas
sábado, 6 de setembro de 2025
Um poema de Isabel Diegues
intuo
tua boca
carnuda
dando
(doce
cena)
na maior
orgia
a língua
a alguém
enquanto
todo mundo
doido
duvida
da tua
aliteração
Isabel Diegues
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
O quarto azul
No abismo oco o mundo exausto
Alto e forte o choro guerreiro
Tatuado e recluso em números
A fantasia de porta em porta
Disfarça ao mutante o preconceito
O quarto rosa é de algodão
O bebê no colo sacia a vida
Nos bicos de mel da enamorada
A mulher ciente olha o tempo
O quarto azul é indicador
Neuza Ladeira
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Como fugir
(decúbito frontal,
boca de gruta pro mar,
reunidos sal, dente-raiz,
concha e estrela morta)
como o silêncio reconstruído
na lenta aproximação dos minérios.
como esfinge sem jurisdição,
porto de um tétano intocado.
como habitante - sem trabalho -
do intestino de um colosso náufrago.
Daniel Valentim Mansur
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Cantata pra Mnemosyne
finalmente li o poema "quando eu tinha seis anos"
era o paraíso. mesa para quatro, comida pra dois
os meus olhos correndo as antigas avenidas. solidão
tão espessa a chuva, para tão curto encontro, senhor
— senhor, era como chamava, em mania
senhor, era o que escorria fogo dos lábios.
o poema inesquecível, chuva de zeus sobre dânae
os dedos perdidos em algum buraco. ponte preta, manicaca.
tão perenes os traumas, pra o dilaceramento tão breve, senhor.
Nina Rizzi
segunda-feira, 1 de setembro de 2025
País
Quantas Igrejas de São Francisco
no topo de tantas ladeiras de pedra
e sem calçamento...
Quantas Sebastianas e Antônios
caminham até elas de olhar baixo,
desde o fundo mais fundo
do tempo mais antigo...
André Giusti
domingo, 31 de agosto de 2025
Desejo
Despistando o mar nos olhos
riria
e diria
ainda que nas entrelinhas
que um desejo assim
desse tamanho
não cabe no peito
e só um leito
acalma a alma
de quem ama
Mariana Teixeira
sábado, 30 de agosto de 2025
Grupo Galpão parte da obra de Saramago para pôr em cena um ensaio sobre a miséria humana
Publicado há 30 anos, em 1995, o romance Ensaio sobre a cegueira contribuiu para consagrar em escala mundial o escritor português José Saramago (1922 – 2010), laureado em 1998 com o Prêmio Nobel de Literatura. Nas páginas da obra, Saramago expôs a brutalidade da alma humana ao narrar o surgimento e a expansão de uma epidemia de cegueira que escancara a podridão das estruturas sociais calcadas na opressão e na colonização.
A partir do livro de Saramago, o Grupo Galpão — fundado em novembro de 1982 em Belo Horizonte (MG) e, desde então, uma sólida referência de bom teatro em todo o Brasil — põe em cena um ensaio sobre a miséria humana. (Um) Ensaio sobre a Cegueira é o 27º espetáculo desse grupo mineiro que já contabiliza mais de dois milhões de espectadores e mais de 100 prêmios ao longo de 43 anos de existência.
Após passar por Belo Horizonte (MG) e Porto Alegre (RS), o espetáculo está em temporada no Rio de Janeiro (RJ), cidade onde ficará em cartaz até 14 de setembro no Teatro Carlos Gomes, de quarta-feira a domingo.
A direção e a dramaturgia contemporâneas de Rodrigo Portella tomam algumas liberdades em relação à escrita de Saramago. Há falas em que os atores explicitam o fato de estarem fazendo teatro, em comunicação direta com o público, olho no olho. Mas a essência da obra de Saramago está lá, intacta. A narrativa é fiel ao livro.
E o que se vê é um espetáculo altamente potente, daqueles que grudam nas retinas e provocam reflexões nas mentes. O despojamento do início é como o começo silencioso de uma epidemia. Ninguém imagina o que vai acontecer em cena em um futuro muito próximo. Mas o futuro chega e instala o caos social no palco. No caso, a partir da disseminação do “mal branco”, nome dado à epidemia de cegueira em que os que perdem a visão passam a “ver” tudo branco.
À medida que a epidemia se alastra, o individualismo predador do capitalismo se espalha entre os sanatórios controlados e vigiados com armas por militares. Fica claro que o “mal branco” pode ser visto também como analogia para os sistemas ditatoriais que aprisionam e aniquilam todos os que podem prejudicar a “ordem social”.
É no aliciante segundo ato, situado nos sanatórios, que a encenação do Galpão se agiganta. Há forte teatralidade nas cenas em que as misérias humanas começam a aparecer com a escassez de comida e as exigências de um chefe miliciano para que as mulheres cegas o sirvam. É quando os silêncios impostos pelo diretor Rodrigo Portella dizem tudo.
A opção por trazer alguns espectadores literalmente para a cena — retirados da plateia e com os olhos vendados assim que sobem no palco — contribui para a sensação de que ninguém ali, no palco ou na plateia, está imune à cegueira. A epidemia pode atingir qualquer um a qualquer momento.
Entre os cegos, há a “mulher que vê”, personagem da atriz Fernanda Vianna. E é especialmente emblemática a cena em que ela vê a traição do marido no sanatório e essa visão expõe o que dói ser visto. No fim, a moral da história é que ver, enxergar o outro como ele é, é uma benção que não depende somente dos olhos, mas sobretudo de um estado de espírito, de uma predisposição para não se deixar enganar pelas convenções sociais. Como diz o dito popular, o pior cego é aquele que não quer ver. Com a peça do Grupo Galpão, tudo fica às claras. Principalmente a miséria humana e as corroídas estruturas de poder da sociedade do século XXI.
Mauro Ferreira








