sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Mineiridade
Quando chego de Minas
trago sempre na boca um gosto de terra.
Chego aqui com o coração fechado,
Um trem esquisito no peito.
Meus olhos chegam divagando saudades,
meus pensamentos cheios de uais
e esta cidade aqui me machuca
me deixa maciça, cimento
e sem jeito.
Chegando de Minas,
trago sempre nos bolsos
queijos, quiabos babentos
da calma mineira.
É duro, é triste
Ficar aqui
com tanta mineiridade no peito.
Conceição Evaristo
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Cafeterias
Colombo
Gioconda
Starbucks
Cafeína
Esch Café
Manon
Casa Cavé
Argumento
(nobres endereços para sofrer em silêncio)
Hudson Pereira
terça-feira, 7 de outubro de 2025
O nada
Nada vi nada sei
Nada me interessa
Nada é normal
Nada é tão tudo que eu chego
A não ver nada
Nada dá medo
Nada é ver ouvir e calar
O nada é não se incomodar com nada
Pra viver nesse mundo de covardia é preciso
Muitas vezes você ser surdo
Portanto o nada não ouve, não vê
Não sabe de nada
Lindacy Fidelis
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Oração sem sujeito
Oh grande ácido acetil-salicílico,
Ẹgrium Tạdrel
domingo, 5 de outubro de 2025
Felina, de Noélia Ribeiro
you
beside me
inside me
behind me
hiding me
near me
hear me
you and me
you all me
me all
Noélia Ribeiro
sábado, 4 de outubro de 2025
Um poema de Luana Carvalho
Todos os dias me sujo de coisas eternas café preto
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
3x4, de André Vinícius Pessôa
Que tempo é esse?
Que medida da esperança deitada na grama?
Que é desse jardim das delícias?
Mil e uma noites com seus dias quentes?
Mergulhar no fado
atravessar a nado
criar o verso fátuo:
a tão pequena gota.
3x4
meu retrato
minha cara à tapa.
Mão no leme:
a hora é nua.
Saravá
a terra treme.
Minha tara
sua lua.
André Vinícius Pessôa
quinta-feira, 2 de outubro de 2025
“O motociclista no globo da morte” expõe o estado-violência do ser humano
Monólogo escrito
por Leonardo Netto e estrelado pelo ator Eduardo Moscovis, sob direção de
Rodrigo Portella, impacta ao mostrar a ebulição da humanidade através da
história de um homem comum diante da barbárie.
O poeta e dramaturgo Bertolt Brecht (1898 – 1956) já alertou que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém reputa como violentas as margens que o comprimem”. No monólogo O motociclista no globo da morte, escrito por Leonardo Netto e encenado pelo ator Eduardo Moscovis sob direção minimalista de Rodrigo Portella, a violência espreita o espectador como um bicho acuado, pronto para atacar a qualquer momento. Só que o ataque, previsto desde o início do monólogo, é desferido ao fim de forma surpreendente e atinge o espectador como soco no estômago que chacoalha a mente e provoca a reflexão sobre um mundo em permanente estado de violência na vida cotidiana.
Na cena orquestrada por Rodrigo Portella, a violência é de início interior e tem a semente escondida na alma do personagem de Moscovis, Antônio, homem pacífico que vê o mundo implodir por força de circunstâncias trágicas provocadas por atos contínuos de misoginia e de crueldade com um animal. Nesse contexto, Antônio poderia até ser visto e saudado como herói, mas, como também lembrou o escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre (1905 - 1980), toda e qualquer violência é sempre uma derrota.
Antônio sai derrotado do embate com outro Antônio, um ser humano como ele, um homônimo, um semelhante. Mas a sensação de derrota é geral ao fim da cena muda em que impera um incômodo silêncio. E até no silêncio ator e texto se agigantam no espetáculo em cartaz de quinta-feira a domingo no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro (RJ), até 26 de outubro.
O motociclista no globo da morte chega à cena com o mesmo impacto de Prima facie (2024), monólogo blockbuster da temporada anterior estrelado por Debora Falabella sobre a injustiça praticada pela Justiça contra mulheres vítimas de violência sexual. Há um elo entre os dois espetáculos porque Rita, personagem citada inúmeras vezes no texto de O motociclista no globo da morte, mas invisível aos olhos do espectador, também é vítima psicológica da espiral de violência misógina.
Mas é Antônio, o homem em tese pacífico vivido por Moscovis, que exterioriza e põe em prática uma violência que, afinal, reside e lateja dentro de todos os seres humanos, espectadores de videogames e de filmes sanguinários. Mesmo porque, nesse globo da morte chamado planeta Terra, já é difícil saber até que ponto a violência da vida real é potencializada pelos estímulos da violência da ficção.
Antônio derrapa e perde o controle no globo da morte. No momento do acidente, a iluminação de Ana Luzia de Simoni deixa o ator com menos luz na cena intencionalmente casual, reforçando a ideia, proposta pelo diretor Rodrigo Portella, de que Antônio é homem comum, ordinário, o que também se traduz visualmente pelo figurino de Gabriela Marra.
O espetáculo se impõe pela força do texto, da interpretação do ator (especialmente comovente na descrição do ato de violência) e da direção acertadamente crua. Todos os acessórios, como a trilha sonora de Muato, corroboram a sensação de que o sucedido com Antônio pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. E é essa consciência crescente ao longo do espetáculo que atiça a reflexão do espectador, capturado para olhar para dentro de si mesmo e detectar os polos potenciais de violência internalizada.
O motociclista no globo da morte reforça o dedo na ferida social. E a mente arde, ciente de que todo mundo pode ser Antônio se comprimido pelas margens estreitas da barbárie. Até porque, em última instância, como já sublinhou um líder budista da linhagem do dalai-lama, a violência interna ou externa é um sinal de desespero.
Mauro Ferreira
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Pranto
nada machuca tanto
(e gera mais espanto)
do que este curto corte
da fina folha em branco
Lucas Viriato
terça-feira, 30 de setembro de 2025
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Um poema de Thiago de Freitas Peixoto
Em legítima defesa
oito tiros para derrubar a presa.
Todos na altura do peito.
do suspeito de ser culpado
de estar no lugar errado
e não portar certas respostas.
Quem viu atura calado.
Thiago de Freitas Peixoto
domingo, 28 de setembro de 2025
Um poema de Paulo D'Auria
embora cheio
de fome
seja uma figura de linguagem
é também uma realidade
onde não cabe
poesia alguma
Paulo D'Auria
sábado, 27 de setembro de 2025
Um poema de Adriano Lobão Aragão
longe das vitórias
cultivamos batalhas
e com mãos vazias
te oferecemos esses tesouros:
a entrega dos dias
cercados de solidões companheiras
o que a vida nos der de dádiva
chamaremos amor
Adriano Lobão Aragão
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
Um poema de José Elvis Ermano
nem sangue
nem hóstia
era mel de babaloo
na boca da beata
José Elvis Ermano
quarta-feira, 24 de setembro de 2025
Mar da noite
A fenda crescente
da lua minguante
ancora uma estrela.
Ao largo da noite
um errante cometa
singra o quadrante.
No céu de água negra,
preciso sextante,
a mente navega.
O pio da coruja
é farol de tormento!
Um amor flutuante.
Tânia Pagano
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Descoberta
tudo flui
num átimo
cabe à vida o fardo
de carregar a lágrima
superposta em cruz
as alegrias não tecem mais
o sentido dos dias
à espera do homem
o inexorável fim
Luiz Otávio Oliani
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Wit, de Eduardo Tornaghi
As coisas não são o que vemos
As coisas nem são o que são
Toda certeza que temos
É vaidade
Qualidade do que é vão
Eduardo Tornaghi
domingo, 21 de setembro de 2025
sábado, 20 de setembro de 2025
sombra
como pode o sol debaixo da pedra?
toda sua giganteza atrás dum pedregulho tão pequeno
pedrinha de ladrilhar a rua pro meu amor passar
o amor é traiçoeiro
Bruna Escaleira
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
Um poema de Frederico Barbosa
mundo inundado de
filme negro fumaça morcego no ar
antena de rápido radar
anda
por ecos ondas e nós
Frederico Barbosa
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
Salto ornamental
os poucos segundos diante da câmera
não fariam jus aos anos (uma vida
inteira) de ensaios e dores musculares
e alimentação regrada e tantas outras privações
os poucos segundos mostram
a atleta no trampolim
ela se prepara para o salto
ornamental que quem sabe
vai lhe render uma medalha
uma vaga nas olimpíadas
a consideração de alguém tanta coisa
o treinador apreensivo finge
Alice Sant'Anna
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Um poema de Daniel Pereira
beijos e abraços
sabor babaloo
dedo na boca, pose
ares de mon amour
faz e acontexe
cresce e aparexe,
tipo assim, bye-bye
ai, ai, sai
é luxo, não é lixo
sacou, bicho?
Daniel Pereira
terça-feira, 16 de setembro de 2025
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Seppuku
Rendidas sob a katana
e a flor da honra, as mãos
se preparam para esculpir
o fim:
toda a luz do vivido —
agora — entregue a lâmina
e ao eterno sono. Exceto,
a cerejeira escarlate
na lã do kimono.
Salgado Maranhão
domingo, 14 de setembro de 2025
Um poema de José Elvis Ermano
urubus e andorinhas
decidem na porrinha
a cor do entardecer
José Elvis Ermano
sábado, 13 de setembro de 2025
Zezé Motta faz do mundo ativista de Maya Angelou um templo de delicadeza
A escritora e poeta norte-americana Maya Angelou (4 de abril de 1928 – 28 de maio de 2014) deixou rastro de luz e ativismo no mundo ao perpetuar em relatos autobiográficos a força perene do povo negro diante dos abusos cotidianos da branquitude dos Estados Unidos. Essa luz tem sido espalhada nos palcos do Brasil pela atriz e cantora Zezé Motta com o espetáculo Vou fazer de mim um mundo, monólogo ora em cena no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro (RJ), até 5 de outubro, após passar por Brasília (DF) e Belo Horizonte (MG).
Em Vou fazer de mim um mundo, primeiro monólogo da carreira da atriz fluminense de 81 anos, Zezé Motta interpreta trechos do primeiro livro autobiográfico de Maya Angelou, Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, publicado em 1969. No livro, obra-prima de literatura calcada na resistência e no humanismo que se agigantam em oposição à brutalidade do racismo e da violência sexual praticada contra mulheres negras, a escritora relata o estupro que sofreu aos oito anos em St. Louis (EUA) e uma série de abusos cometidos nos Estados Unidos segregacionistas dos anos 1930 e 1940.
Na voz e no tempo de delicadeza da interpretação de Zezé Motta, as palavras de Maya Angelou calam fundo na alma do espectador. Sem carregar no tom, a atriz concentra e interioriza a emoção de um relato que combate o horror com a poesia. Aliás, foi pela poesia e pela literatura que a escritora saiu do estado de mudez — no qual permanecera por anos, refugiada no mundo interior — e que recuperou a voz. Voz que se tornou ativista com a escrita de livros autobiográficos e que levaram Maya — nascida Marguerite Ann Johnson — a ser condecorada em 2010 com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo então presidente dos Estados Unidos Barack Obama.
Em Vou fazer de mim um mundo, Zezé Motta aproxima o universo ativista de Maya Angelou do Brasil, com a consciência de que, parafraseando verso de música do grupo Titãs, miséria humana é miséria humana em qualquer canto do mundo. Maya Angelou foi brutalizada na infância por uma miséria humana recorrente no cotidiano brasileiro, historicamente regido pela violência e pela injustiça social.
No monólogo, encenado por Zezé sob direção de Elissandro de Aquino, o paralelo entre Brasil e Estados Unidos é feito não somente pelo canto de temas afro-brasileiros entre temas norte-americanos, mas também pela citação de nomes como Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) e Elza Soares (1930 – 2022), cantora brasileira que também transcendeu os abusos sofridos ao longo da vida pela força da palavra, no caso da palavra cantada.
Na cena de Vou fazer de mim um mundo, a música executada pela percussionista Mila Moura e pelo guitarrista Pedro Leal David (diretor musical arranjador do espetáculo) embala o canto transcendental de Zezé Motta. Mas é a palavra de Maya Angelou a força motriz do monólogo em que Zezé se eleva com voz ativa, pronta a neutralizar o horror do racismo com a resistência do humanismo, espalhando a luz irradiada pela escrita ativista da autora norte-americana.
Mauro Ferreira
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Enfim
Quanta coisa fiz
quando tudo impedia
que a felicidade, alegria
quantificasse em mim
Enquanto fingia
sentir o que eu sentia
tanta coisa mudou
que acabou, enfim
Quando não mais quis
querendo você, veio e diz
o quanto gostaria
que a gente fosse feliz
Mariana Teixeira
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Quinta
Sempre quinta.
Primeiro: um breve intervalo,
uma conversa distraída
uma pausa do dia-a-dia.
E uma quinta...
Um dia foi mais longa,
porque eu aceitei deitar para descansar.
Rosilene Jorge dos Ramos
quarta-feira, 10 de setembro de 2025
Matrimandir
arquitetura que é poema
de água luz pedras
cristal e silêncio
— beleza
lugar idealizado
construído imaginado
a duras custas
— dedicação
reflexo no espaço
dos sonhos da Mãe
centro da galáxia
— Auroville
Lucas Viriato
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Da inocência
No abatedouro das línguas
não vibra palavra encaroçada:
doce no tacho,
olhar de criança cobrindo ossos de galinha
no chão de domingo
- anúncio de dança:
amarelinha
goiabada
e o gosto do verbo nos dedos
Carolina Barreto
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
domingo, 7 de setembro de 2025
Soneto social
É sete de setembro. E queimam balas
sábado, 6 de setembro de 2025
Um poema de Isabel Diegues
intuo
tua boca
carnuda
dando
(doce
cena)
na maior
orgia
a língua
a alguém
enquanto
todo mundo
doido
duvida
da tua
aliteração
Isabel Diegues
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
O quarto azul
No abismo oco o mundo exausto
Alto e forte o choro guerreiro
Tatuado e recluso em números
A fantasia de porta em porta
Disfarça ao mutante o preconceito
O quarto rosa é de algodão
O bebê no colo sacia a vida
Nos bicos de mel da enamorada
A mulher ciente olha o tempo
O quarto azul é indicador
Neuza Ladeira
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Como fugir
(decúbito frontal,
boca de gruta pro mar,
reunidos sal, dente-raiz,
concha e estrela morta)
como o silêncio reconstruído
na lenta aproximação dos minérios.
como esfinge sem jurisdição,
porto de um tétano intocado.
como habitante - sem trabalho -
do intestino de um colosso náufrago.
Daniel Valentim Mansur
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Cantata pra Mnemosyne
finalmente li o poema "quando eu tinha seis anos"
era o paraíso. mesa para quatro, comida pra dois
os meus olhos correndo as antigas avenidas. solidão
tão espessa a chuva, para tão curto encontro, senhor
— senhor, era como chamava, em mania
senhor, era o que escorria fogo dos lábios.
o poema inesquecível, chuva de zeus sobre dânae
os dedos perdidos em algum buraco. ponte preta, manicaca.
tão perenes os traumas, pra o dilaceramento tão breve, senhor.
Nina Rizzi
segunda-feira, 1 de setembro de 2025
País
Quantas Igrejas de São Francisco
no topo de tantas ladeiras de pedra
e sem calçamento...
Quantas Sebastianas e Antônios
caminham até elas de olhar baixo,
desde o fundo mais fundo
do tempo mais antigo...
André Giusti
domingo, 31 de agosto de 2025
Desejo
Despistando o mar nos olhos
riria
e diria
ainda que nas entrelinhas
que um desejo assim
desse tamanho
não cabe no peito
e só um leito
acalma a alma
de quem ama
Mariana Teixeira
sábado, 30 de agosto de 2025
Grupo Galpão parte da obra de Saramago para pôr em cena um ensaio sobre a miséria humana
Publicado há 30 anos, em 1995, o romance Ensaio sobre a cegueira contribuiu para consagrar em escala mundial o escritor português José Saramago (1922 – 2010), laureado em 1998 com o Prêmio Nobel de Literatura. Nas páginas da obra, Saramago expôs a brutalidade da alma humana ao narrar o surgimento e a expansão de uma epidemia de cegueira que escancara a podridão das estruturas sociais calcadas na opressão e na colonização.
A partir do livro de Saramago, o Grupo Galpão — fundado em novembro de 1982 em Belo Horizonte (MG) e, desde então, uma sólida referência de bom teatro em todo o Brasil — põe em cena um ensaio sobre a miséria humana. (Um) Ensaio sobre a Cegueira é o 27º espetáculo desse grupo mineiro que já contabiliza mais de dois milhões de espectadores e mais de 100 prêmios ao longo de 43 anos de existência.
Após passar por Belo Horizonte (MG) e Porto Alegre (RS), o espetáculo está em temporada no Rio de Janeiro (RJ), cidade onde ficará em cartaz até 14 de setembro no Teatro Carlos Gomes, de quarta-feira a domingo.
A direção e a dramaturgia contemporâneas de Rodrigo Portella tomam algumas liberdades em relação à escrita de Saramago. Há falas em que os atores explicitam o fato de estarem fazendo teatro, em comunicação direta com o público, olho no olho. Mas a essência da obra de Saramago está lá, intacta. A narrativa é fiel ao livro.
E o que se vê é um espetáculo altamente potente, daqueles que grudam nas retinas e provocam reflexões nas mentes. O despojamento do início é como o começo silencioso de uma epidemia. Ninguém imagina o que vai acontecer em cena em um futuro muito próximo. Mas o futuro chega e instala o caos social no palco. No caso, a partir da disseminação do “mal branco”, nome dado à epidemia de cegueira em que os que perdem a visão passam a “ver” tudo branco.
À medida que a epidemia se alastra, o individualismo predador do capitalismo se espalha entre os sanatórios controlados e vigiados com armas por militares. Fica claro que o “mal branco” pode ser visto também como analogia para os sistemas ditatoriais que aprisionam e aniquilam todos os que podem prejudicar a “ordem social”.
É no aliciante segundo ato, situado nos sanatórios, que a encenação do Galpão se agiganta. Há forte teatralidade nas cenas em que as misérias humanas começam a aparecer com a escassez de comida e as exigências de um chefe miliciano para que as mulheres cegas o sirvam. É quando os silêncios impostos pelo diretor Rodrigo Portella dizem tudo.
A opção por trazer alguns espectadores literalmente para a cena — retirados da plateia e com os olhos vendados assim que sobem no palco — contribui para a sensação de que ninguém ali, no palco ou na plateia, está imune à cegueira. A epidemia pode atingir qualquer um a qualquer momento.
Entre os cegos, há a “mulher que vê”, personagem da atriz Fernanda Vianna. E é especialmente emblemática a cena em que ela vê a traição do marido no sanatório e essa visão expõe o que dói ser visto. No fim, a moral da história é que ver, enxergar o outro como ele é, é uma benção que não depende somente dos olhos, mas sobretudo de um estado de espírito, de uma predisposição para não se deixar enganar pelas convenções sociais. Como diz o dito popular, o pior cego é aquele que não quer ver. Com a peça do Grupo Galpão, tudo fica às claras. Principalmente a miséria humana e as corroídas estruturas de poder da sociedade do século XXI.
Mauro Ferreira
sexta-feira, 29 de agosto de 2025
Lumbini
cidade de Lumbini
um mosaico de templos
e monastérios budistas
que parece não ter fim
as variadas vertentes
da religião precisam
marcar seu ponto em
algum lugar por ali
patrimônio histórico onde
as distâncias são longas
e caminha-se bastante
entre um canto e outro
e como um poema
no epicentro de tudo
está o lugar preciso do
nascimento de Buda
Lucas Viriato
quinta-feira, 28 de agosto de 2025
Uno, um poema de Paulo D'Auria
tem o elo
e a corrente
a ponte
e o muro
tem a mão
e o murro
o são
e o burro
vivendo dentro
da gente
tudo tem dois
lados
inclusive
o uno.
Paulo D'Auria
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
terça-feira, 26 de agosto de 2025
Um fio gelado
Um fio gelado
Laminado
Desliza suave
Sobre a fase seca
Corta e revela
O guardado
Sagrado
E na terra fértil da memória
Brotam os espinhos
Que escondi de mim
De ti
Regina Mello
segunda-feira, 25 de agosto de 2025
Abissais
No abismo desses teus olhos
cristalizo meus ais.
Percorro luzes e sombras.
Em cada penumbra
deixo meus delírios
acontecerem.
Abro e fecho portas e janelas.
Esquecer-te?
Impossível jogo: te vejo na luz dessa foto por entre labirintos.
Portas e janelas te espelham
Sou cego de ti.
Vera Casa Nova
domingo, 24 de agosto de 2025
Para Woody Allen
Trago em mim
Todas
Só para te divertir
Sou tua maravilha
Tela
Oitava arte
Barba Azul
Por outro lado
Tens todos os homens
Que quis
Quando te quero
Só para eu te querer
Portanto
Não temos o que temer
Quando eu te amo
E a mim tu amas
Nós te queremos
Vós me quereis
Rosália Milsztajn
sábado, 23 de agosto de 2025
Muralha
Passam-se horas,
dias,
meses e anos
e eu aqui,
nesse compasso de espera...
Contagem regressiva
e prenúncio de longa viagem
sem retorno.
Atormentada,
ébria de desejos,
esbarro-me na miragem
de reflexos indefinidos
da minha própria imagem
destorcida e sufocada
pela ânsia de viver!
Lenita Holtz
sexta-feira, 22 de agosto de 2025
Bruma
Neblina na retina
turva a visão
embebeda o dia
e faz do passo
compasso sem harmonia
A via, que não via
me atravessa
enquanto tropeço
no passo
na fala
no verso
Mariana Teixeira
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Um poema de Thiago de Freitas Peixoto
Se fosse possível viver
das coisas que dão prazer
e não dinheiro ou poder.
a vida teria mais nexo.
Seríamos poesia e sexo.
Thiago de Freitas Peixoto
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
abducción con cumplicidad
eu trago a palavra
na ponta da língua
lambida sugada
molhada em saliva
se queres sabê-la
beija-me a boca
depois cala o bico
pois isso é segredo
é pacto é acordo
fechado com lacre
entre bruxa e corvo
abracadabra
Líria Porto
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Loop
Quando você coça
o queixo esquece
é real na cena
ou na tela
Quando você coça
o queixo na tela
e repete anula
ou recria
Otávio Campos
Simone Leitão e Plástico Bolha convidam a ouvir a Academia Jovem Concertante 🎹🎹🎹
segunda-feira, 18 de agosto de 2025
Yoga, de Luiza Mussnich
estique os braços como lanças
abra os olhos dos joelhos
conte cinco respirações
na posição do coração
cobra
elefante
golfinho
cachorro
com as pernas em ângulo de noventa graus
expire nas costelas
procure sentir a carga de energia
do ponto que há entre as sobrancelhas
relaxe a relação do maxilar com a mandíbula
alivie a tensão da lombar a cada respiração
entregue seu corpo ao chãohmmm
Luiza Mussnich
Escrita de Clarice Lispector reina em cena nas vozes das atrizes Beth Goulart e Ester Jablonski entre o mito e o mistério
Que mistério tem Clarice – prosadora nascida na Ucrânia, mas naturalizada brasileira e de fato e de direito uma das maiores escritoras do país – para mobilizar tantas mentes inquietas com a sua escrita? A obra literária de Clarice Lispector (1920–1977) é a base de dois textos encenados por duas atrizes simultaneamente, em palcos do Rio de Janeiro, de sexta-feira a domingo, até 31 de agosto.
No Teatro Fashion Mall, Beth Goulart encarna a escritora de forma (in)crível – e também interpreta trechos de textos da autora do romance Perto do coração selvagem (1943) – em Simplesmente eu, Clarice Lispector, espetáculo que estreou em 2009 e que, 16 anos depois, vem arrebatando novas multidões no retorno à cena desde o primeiro semestre de 2025.
Orquestrada pela própria atriz, hábil na seleção e costura dos textos, a peça de Beth Goulart é sinfonia exuberante em que gestos, falas, expressões, canto – a atriz dá voz a um tema sacro – e luz se afinam e contribuem para manter a aura de encantamento em torno de Clarice, personificada na exímia caracterização de Beth.
No porão da Casa de Cultura Laura Alvim, Ester Jablonski interpreta quatro contos de Clarice no monólogo Silêncios claros, sob a direção de Fernando Philbert, com cena mais despojada, calcada nos textos das narrativas breves. Como o espetáculo de Beth Goulart, o solo de Ester Jablonski está voltando à cena. Estreou originalmente em 2013, no Rio de Janeiro, e retorna aos palcos cariocas pela eterna magia que envolve Clarice Lispector.
Os contos são “O grande passeio”, “Uma tarde plena”, “A fuga” e “Uma galinha”. Todos se situam na cidade do Rio de Janeiro (RJ), mas os temas são universais e os textos, escritos sob ótica feminina.
Clarice Lispector entendia muito da solidão e da opressão femininas. “A fuga”, por exemplo, flagra uma mulher em momento breve e fugaz de liberdade, numa válvula de escape do casamento que a esmaga por 12 anos. Doze anos que pesam como quilos de chumbo, como ressalta Clarice na voz de Ester. Enquanto a atriz descreve a fuga não concretizada, menos por medo do que pela falta de dinheiro, para embarcar no navio que a livraria do peso daquela união, o espectador viaja pela imaginação daquela mulher através da voz de Ester, que encena Clarice sem afetações.
“O grande passeio” sobressai na costura fina de Silêncios claros ao lado de “A fuga”. No conto que abre a peça, Ester Jablonski narra a história de Margarida, idosa que vive de caridade e é conhecida por Mocinha. A senhora, que causa espanto ao se dar ao luxo de passear, convive com fragmentos da memória e com migalhas da compaixão alheia desde que veio parar no Rio de Janeiro, vinda da Maranhão natal. Clarice Lispector descortina a intensidade do sentimento que banha o mundo solitário de Mocinha às voltas com fantasmas do passado.
No palco, a literatura de Clarice ganha certa teatralidade, mérito do diretor Fernando Philbert na condução de Ester Jablonski em cena. Silêncios claros, afinal, não é um recital de contos, mas uma peça viva como a escrita de Clarice Lispector. A Clarice que procurou desmistificar o ato de escrever em entrevista reproduzida em cena por Beth Goulart na pele da romancista em um dos grandes momentos de Simplesmente eu, Clarice Lispector. Mas é que há tanta densidade no fluxo do pensamento literário de Clarice que talvez haja a necessidade de criar um mito em torno dela para tentar explicar um mistério insondável.
Que mistério tem Clarice para guardar-se assim tão firme no coração dos atores, dos poetas, dos compositores, enfim, de todos os brasileiros? A pergunta já foi feita em 1968 através de um poeta, José Carlos Capinan, letrista de “Clarice”, canção de Caetano Veloso. Talvez ninguém saiba responder a contento.
Desde que irrompeu em 1943 como grande expoente da geração de autorias brasileiras da década de 1940, Clarice Lispector vem se perpetuando na memória nacional sem jogadas de marketing. Natural, a força da obra da escritora vem mesmo e tão somente da escrita densa, intensa e poética que ora reverbera nos palcos cariocas em dois monólogos que merecem ser vistos. Cada uma a seu modo, as peças “Simplesmente eu, Clarice Lispector” e “Silêncios claros” perpetuam a escrita, o mito e o mistério de Clarice.
Mauro Ferreira
domingo, 17 de agosto de 2025
Um poema de Clara de Góes
Opacidade cega
das manhãs em teu olhar
perdido.
A fúria dos esquecidos
flagelo de troianas
cassandras caladas.
Carrego meu corpo partido entre ruínas.
Clara de Góes
sábado, 16 de agosto de 2025
Poeminha de Rodrigo de Souza Leão
eu luto
contra
o luto
Rodrigo de Souza Leão
sexta-feira, 15 de agosto de 2025
Um poema de Isabel Diegues
quinta-feira, 14 de agosto de 2025
Mestre da bricolagem, Barrão mostra à Curitiba onde a coruja dorme
A primeira exposição individual do artista no Museu Oscar Niemeyer (MON) vai pegar milhares no contrapé até novembro
Curiosidade, 2021, Barrão
Quase tão bons quanto
as obras do artista plástico Barrão são os nomes com que ele as batiza. Aliás,
como é triste ver no folheto de uma exposição um quadro “sem título”. Barrão
vai por outro caminho.
Escolhe ótimos
títulos para seus seres de cerâmicas coloridas, esculturas de resíduos pintadas
a tinta automotiva, e para suas aquarelas e instalações invulgares, que recebem
nomes como “Mufakaos”, “Soldado Kurosawa Figurante”, “Ninfas Derramadas” e
outros tantos.
O espectador fica procurando
a sutileza que moveu o artista, mas, quando percebe o conjunto completo da obra,
nota como a intenção de seu criador pode ter sido tanto insinuar ou converter quanto
até mesmo perverter o seu sentido, aplicando a ela uma mão a mais de informação
poética.
Tudo sempre, claro,
para confundir, pois Barrão é expoente daquela arte pop que rebentou nos anos
1980 feito um braço solar da new wave à brasileira, linda e cheia de
rock, videomakers e Chacrinha — arte que empurrou a ditadura para o abismo.
Teia à Toa é também
o belo (e aliterado) título da primeira mostra individual de Barrão em Curitiba
em seus mais de 40 anos de carreira. Com curadoria de Luíza Mello, a exposição
no Museu Oscar Niemeyer reúne perto de 70 obras, todas criadas no século 21,
muitas nos últimos 3 anos.
Habitante local, me alegro de ver Teia à Toa ocupando a sala 3 do MON, que é como chamamos o prédio que leva o nome do arquiteto comunista. Folhetos de agências de turismo e legendas de vídeos de tiktokers preferem chamá-lo de “Museu do Olho”.
Oscar Niemeyer no
MON
O prédio projetado
por Niemeyer nos anos 1970 para abrigar a burocracia no centro cívico
modernista da capital foi reinventado no final do século 20. Ganhou um anexo,
cuja curvatura lembra de fato um olho elipsoidal, e, hoje, além de ser o museu
mais importante do estado, é o segundo ponto turístico mais concorrido da
cidade.
Todos os dias,
dezenas de ônibus estacionam ali, trazendo milhares de turistas de todo o
Brasil, especialmente às quartas-feiras, quando a entrada é gratuita — não por
acaso o dia que escolhi para visitar a mostra.
Eu queria observar a
reação dos turistas, estratégia que funcionou, já que pude captar a sensação de
divertido estranhamento na cara das pessoas, algo que, imagino, deve agradar o
autor da mostra. A obra de Barrão é, sobretudo, muito engraçada.
Enquanto eu deambulava pelo salão, a meu redor se encontravam dezenas de pessoas e muitas crianças que davam trabalho à equipe da segurança. Difícil mantê-las na distância recomendada e impedi-las de mexer em cavalinhos, gorilas e lanternas espalhados pelo espaço.
Sala da exposição Teia à Toa
Quando vi um casal de
jovens bonitos e espertos se divertindo tanto quanto eu, a minha veia de repórter
pulsou e me fez querer ouvir suas impressões a quente.
Heric Carvalho é de Fortaleza
(CE) e Karen Poletti, de Chapecó (SC). Eles nunca tinham ouvido falar de
Barrão, nem do Parque Lage, mas entenderam a jogada. “Me chamou a atenção que
são coisas que poderiam estar na casa da minha avó”, disse Karen.
“Eu gostei muito, achei interessante a forma como ele pega coisas cotidianas, do dia a dia, restos, lixos, resíduos, e transforma elas em obra de arte com ‘valor último’, entre aspas. Eu não conhecia o Barrão. Dá pra ver que ele trabalha com bastante coisa diferente. Essas colagens que ele faz, elas não partem de uma ideia de molde, mas de quebra. Ele vai quebrando e construindo”, relatou Heric.
Heric Carvalho (CE) e Karen Poletti (SC)
Um belo resumo da
arte do mestre da bricolagem que, entre outras coisas, está em Curitiba para
ensinar “onde a coruja dorme”, nome de uma de suas instalações mais fodas.
Outra instalação bem impressionante
é aquela em que ele usa plintos — ou qualquer que seja o nome dado a supedâneos
que sustentam pias — entrelaçados, que formam uma espécie de hashis de bambu
gigantes de porcelana.
Minha peça preferida, porém, é o quintessencial “peixe boca de xícara”. Se tivesse dinheiro sobrando, eu investiria uma grana nela.
Peixe boca de xícara, Barrão
Como já morei no Rio
de Janeiro, sei que um artista como Barrão só poderia ter acontecido por lá. Em
que outra cidade haveria tanta matéria-prima oriunda do comezinho domiciliar de
casas tijucanas de classe média baixa, que se acopla a jogos de chá de famílias
decadentes do velho Rio, tudo misturado à sucata dos anos 90 e ao epóxi dos
nossos dias?
Me parece bastante apropriado, contudo, que ele esteja por aqui, diante dos olhos de muita gente que ainda não o conhece. Barrão é um daqueles artistas que transformam as coisas e seus destinos históricos. É reconfortante pensar no que ele pode fazer pelas cabeças e almas que o encontrarem até final de novembro, quando termina a exposição.
Sandro Moser em Teia à Toa
Exposição Teia à Toa
Artista: Barrão
Curadoria: Luiza Mello
Data: 10 de julho a 30 de novembro de 2025
Local: Museu Oscar Niemeyer, Sala 3, Curitiba, PR
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
o poeta de Pondicherry
terça-feira, 12 de agosto de 2025
Recolho
Recolho
e escondo
entre os escombros
o fito
de manter intacto
o que, num abalo
num tremor
espatifou
depois,
me recolho
Mariana Teixeira
Falsa Novela
falsa novela:
pretensa cena de cinema.
— corta! recortes,
pedaços. inteiro
prossigo.
tudo isso. somos feitos
assim,
meio tortos mesmo.
Pedro Tostes
A coragem do morto
O morto, quanta coragem,
mantém os olhos fechados
justo no momento em que
o devoramos
o deciframos e,
como se não bastasse,
debochamos de seu
silêncio
ornado de flores
igualmente mortas.
Alexandre Brandão
os sós
Na praça de gente corcunda
vendo os stories, um homem
ereto conta à árvore sua história
Noélia Ribeiro
Krasis, de Lasana Lukata
sou um cão no inverno
encostado às cinzas do que foi.
uma garça de pescoço retraído,
ferido por anzóis.
garça-verde de pescoço comprido,
intuindo botes.
poeta atracado com o deserto,
impaciente por oásis.
Lasana Lukata
segunda-feira, 11 de agosto de 2025
Marília por Alice — depoimento homenagem
Alice Sant'Anna
domingo, 10 de agosto de 2025
Brilho de Gregorio se expande no céu com Camões entre o humor e a poesia ✨✨✨

foto de Raquel Pelicano
Gregorio Duvivier roça a língua de Luís de Camões (1524–1580) em monólogo que estreou em novembro do ano passado em Portugal, pátria do poeta nascido há cinco séculos, e que circula pelo Brasil desde fevereiro deste ano, estando de volta em agosto à cena do Rio de Janeiro (RJ), em temporada que se estende até 31 de agosto no Teatro Casa Grande.
“O céu da língua” é um solo autoral do ator e escritor carioca Gregorio Duvivier sob direção de Luciana Paes. Mas Gregorio não está sozinho em cena. Habita o palco com ele o instrumentista Pedro Aune, contrabaixista e diretor musical desse monólogo que transita entre a poesia e a piada.
Há momentos em que a apresentação soa como recital de poesia, com direito ao canto de “Livros” (1997), música de Caetano Veloso cuja letra tem versos alusivos aos da canção “Chão de estrelas” (1939), clássico da parceria do cantor e compositor carioca Silvio Caldas (1908–1988) com o compositor Orestes Barbosa (1893–1988).
Caetano também é, cabe lembrar, o compositor de “Língua”, tema de 1984 que parece nortear a viagem de Gregorio Duvivier pelo idioma de Camões com escalas na música e no humor. Até porque há momentos em que “O céu da língua” resvala no formato popular de um stand-up de humor mordaz, como “Z.É. – Zenas emprovisadas”, espetáculo de 2003 com o qual o ator pôs os pés na profissão.
No palco nu, à frente de imagens manuseadas pela irmã Theodora Duvivier, Gregorio mostra que a língua portuguesa está viva. E que línguas mortas podem ser reanimadas, trazidas da tumba diretamente para o papo de bar. Entre uma piada e outra com a reforma ortográfica de 2009, o artista põe em debate palavras ressignificadas, como “sinistro”. Nesse sentido, a peça é sinistra!
De início, Gregorio entra em cena recitando versos de Camões, poeta nascido há 501 anos em Portugal, quando surgia com Gil Vicente o teatro português propriamente dito e onde o monólogo do artista brasileiro cumpriu temporada consagradora.
Do solene ao coloquial, o fluxo verbal de Gregorio Duvivier mantém o espectador atento à trama e ao trema. Sim, trema! Que outro ator consegue discorrer sobre a desvalorização do trema na reforma ortográfica de 2009 sem entediar o espectador? Ou partir em defesa emocionada de decassílabos, o verso mais clássico da poesia de expressão portuguesa, composto de dez sílabas poéticas, que caiu em descrença para parte da poesia brasileira atual e costuma estar ausente de conversas de bar? Ou então enfatizar o quanto de repulsa é gerada pela simples menção de uma palavra como afta, dita em cena com toque de humor, mas sem perda de respeito pela língua-mãe? Aplausos para Gregorio, portador de um discurso repleto de ironia, sarcasmo e sentimento.
Em “O céu da língua”, o espectador é surpreendido pela palavra. Palavra orquestrada para a cena, já que Gregório assina a dramaturgia do monólogo, roçando sem pudores a língua de Camões, às vezes como poeta de um passado remoto, outras como humorista do stand up mais popular da temporada.
Contudo, não há apelações. Chega-se ao céu da língua em voo de brigadeiro, sem turbulências. As fricções são das palavras, convulsionadas pelo ator para expor a elasticidade de uma língua que, na realidade, extrapola Camões, sem apego ufanista a um idioma que fez travessia intercontinental até aportar no Brasil como imposição da coroa portuguesa. A senhora da cena é uma língua que descende tanto de Camões quanto de indígenas e de africanos escravizados, que a transformaram com sua cultura e sua riqueza linguística.
Dedicado a criar no palco “confusões de prosódias” e uma “profusão de paródias”, sem deixar de realçar a devoção à língua-mãe, Gregorio Duvivier roça o céu para quem defende a presença da poesia no teatro.
Mauro Ferreira
sábado, 9 de agosto de 2025
Comissária de Bordo
Mei Santana
sexta-feira, 8 de agosto de 2025
Um poema de Paulo D'Auria
breviário:
do outro lado do espelho
o mundo ainda é feio
só que ao contrário
Paulo D'Auria
quinta-feira, 7 de agosto de 2025
Vazio, de Soéli de Souza
Quando penso que
penso, não sei se pensei.
Minha mente, por horas,
vazia se abastece de
poesia
e sustenta meu silêncio.
Como é bom esvaziar-se
em si mesmo...
Experimenta!
Soéli de Souza
quarta-feira, 6 de agosto de 2025
Legado
a grande lua de fogo
revelou a sua face agrestia
e, devagarosamente,
foi indo, foi indo
gravitando
na incandescência.
Com a lua cheia
um véu de estrelas espantou a neblina.
Na agrestidade do ser
cavamos os sonhos
contra a desesperança
que circunda nossas vidas.
Graça Graúna
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Jovenzinhos
Paulo Vitor Grossi
segunda-feira, 4 de agosto de 2025
FUMÓDROMO ANTITABAGISTA
coração na boca
dedos largos
percorro correndo meu caminho vertebral
vértebra osso cartilagem gordura
cigarro em cigarro agradecida
pelas leis antiantitabagistas
cigarro atrás de cigarro atrás de cigarro
eu porta afora distância ínfima
casa meticulosa carpete anos 80
medo de ir
medo de vir
dor de chegar e
a dor de não chegar
criaturinha ridícula garganta afora
saliva análoga dente
análogo língua
análogo boca
análogo faringe
análogo voz
análogo a EU NÃO FALO
sinal divino de que meus sinais são outros
rasgar teu céu da boca com
meus dentes e unhas
e garras
e língua
e te falo
voz análoga à voz
reprovada na tradução de
todos os meus sinais telepáticos
meu corpo extraviado de tempo
pescoço pesado de destino
a forca me aperta pré-sentença
já morri antes
morreria de novo
belíssimo carvão incandescente
tem medo da forca
coração na boca
dedos largos
agarro o que me resta:
Ágatha Kreisler
domingo, 3 de agosto de 2025
olfato interior
o interior dos
livros com cheiro da estante
de meu pai
o interior dos
lençóis com cheiro do armário
de minha mãe
o interior de minas
fedendo à passagens subterrâneas
do eixão
Felipe Rezende
sábado, 2 de agosto de 2025
racha
de que me serve acelerar
se o que corre é meu sangue
em fuga desesperada
na sua direção
nem toda velocidade das rodas dos carros alcança meu
querer-te
Bruna Escaleira
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Trivial I
No varal penduro a roupa
para secar meus lamentos.
O vento bate, de agosto
leva dor, traz sentimento
Nos vasos em flor na janela
brotam desejos e tormentos.
Nazareth Fonseca
quinta-feira, 31 de julho de 2025
Recado
Não dizer que a voz veio do vento
ou que o vento tornou-se voz
Nem que era um sussurro mudo
que como alma pairou entre nós
Não sou alguém para supor
o que o suor dos olhos diz
Só sinto pena dos nãos
quantos deles já existem
Mariana Teixeira
quarta-feira, 30 de julho de 2025
Platão e a Metáfora
noite a adubar o mar
estrelas cadentes no cio,
garças brancas prometiam...
fragueiro, faroleiro,
Platão fazia sinais, tocava sinos
para a palavra unhar naquelas águas.
lua cariada de desejos,
parar não podia, respondeu a palavra:
havia perdido as âncoras.
Lasana Lukata
terça-feira, 29 de julho de 2025
Um poema de Cesar Kiraly
antes da soltura
ímpar
o que nos resta é sândalo
sonhâmbulos
encordela
meu pescoço
peço para não ter ruídos
Cesar Kiraly
segunda-feira, 28 de julho de 2025
escarlate
Meus dias se tornaram vermelhos
viscosos, delirantes, difíceis de interpretar
nem meus pés, sempre ardentes
são efetivos em me fixar
uma realidade escorregadia me engloba
e eu deslizo
dançando pelo salão
Marcela Sperandio
A Arte de Perder, poema de Elizabeth Bishop — tradução por Paulo Henriquess Britto
A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas
coisas contêm em si o acidente
De
perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca
um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A
chave perdida, a hora gasta bestamente.
A
arte de perder não é nenhum mistério.
Depois
perca mais rápido, com mais critério:
Lugares,
nomes, a escala subsequente
Da
viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi
o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar
a perda de três casas excelentes.
A
arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi
duas cidades lindas. E um império
Que
era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho
saudade deles. Mas não é nada sério.
—
Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que
eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que
a arte de perder não chega a ser mistério
por
muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Elizabeth Bishop
Tradução de Paulo Henriques Britto
Poema de Lucas Viriato
como atingir o espaço sideral
sem ter meu habitual
Cabo Canaveral?
como cumprir o que se fala
ir à Meca dar três rodadas
sem ter ao centro minha Kaaba?
como sentir o vento leve
Iansã outros seres na pele
sem uma guia que preste?
Lucas Viriato
GORDO
Sou um sapo tocando sax
Um baiacu excitado
Os remédios me engordaram
Remédios fazem muitas coisas
E ainda não curam
Mas não há melhor companhia
Para uma noite vazia
Alguns miligramas de você
Talvez mudassem tudo
Rodrigo de Souza Leão
domingo, 27 de julho de 2025
Brasília, de André Giusti
Materiais
A utilidade da pedra:
fazer um muro ao redor
do que não dá para amar
nem destruir.
A utilidade do gelo:
apaga tudo que arde
ou pelo menos disfarça.
A utilidade do tempo:
o silêncio.
Paulo Henriques Britto
sábado, 26 de julho de 2025
A paixão de Nelson Rodrigues ecoa em cena na voz e na alma de Fernanda Montenegro
Quem conta esse episódio é a própria Fernanda no palco do Teatro Multiplan, onde a artista carioca fica em cartaz até este sábado, 26 de junho, com a leitura do texto “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, antes de partir em turnê pelo Brasil. O espetáculo vem arrebatando multidões desde 2014, em apresentações alternadas com a peça em que a artista lê texto da escritora francesa Simone de Beauvoir (1908–1986), ícone do feminismo.
Essa passagem do texto “Nelson Rodrigues por ele mesmo” adquire humor involuntário, uma fina ironia, por ser contada pela própria atriz que protagonizou a ocorrência dramatúrgica. Escrita por Nelson em 1960, “O beijo no asfalto” chegou à cena em 1961 em marcante montagem dirigida por Gianni Ratto (1916–2005) para o Teatro do Sete, grupo integrado por Fernanda com Sergio Britto (1923–2011), Ítalo Rossi (1931–2011) e o companheiro de vida, palco e coxia Fernando Torres (1927–2008), entre outros dos grandes pioneiros do teatro brasileiro.
Quatro anos depois da estreia da peça “O beijo no asfalto”, Fernanda Montenegro cruzou novamente seu caminho profissional com o de Nelson Rodrigues ao estrelar, em 1965, o filme “A falecida”, dirigido pelo cineasta Leon Hirszman (1937–1987), a partir de outro texto para teatro escrito pelo dramaturgo com o rótulo de “tragédia carioca”.
Contudo, na leitura de “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, essas interseções biográficas importam menos do que a habilidade extraordinária da atriz para captar todos os sentimentos do mundo impressos nas linhas e sublinhas do texto em que Nelson Falcão Rodrigues (23 de agosto de 1912–21 de dezembro de 1980) recorda trechos fundamentais da vida gerada no Recife (PE), mas vivida desde a infância no mesmo subúrbio carioca que pariu Arlete Pinheiro Esteves da Silva, nome de batismo de Fernanda Montenegro, nascida em 16 de outubro de 1929, há quase 96 anos.
Arlete virou Fernanda em cena, a partir de 1950. É com a técnica e a alma distintivas de uma atriz inigualável que Fernanda lê Nelson Mas ler é verbo insuficiente, impreciso, diante da imensidão da cena, do vasto mundo amplificado pelas palavras do dramaturgo na voz grave da atriz. Mesmo que o espectador desconheça por completo o universo da obra de Nelson Rodrigues, ele sairá do teatro com a percepção de que o escritor foi um espírito em desassossego, atormentado, entre outras coisas, pela “visão já conhecida” do assassinato do irmão Roberto Rodrigues (1906–1929), falecido com 23 anos de idade. Então, Nelson tinha apenas 17 anos.
A sombra da morte permeou a vida de Nelson, aquele cujo destino parecia ser exaltar o pecado na escrita. Fernanda diverte o público ao contar do tema da primeira redação escolar do futuro escritor (o adultério), comove a plateia ao mencionar os retiros do escritor em cidades como Campos do Jordão (SP) para tentar escapar da sanha assassina da tuberculose e surpreende os espectadores ao realçar a vaidade aflorada do dramaturgo a partir da aclamação unânime com a segunda peça, “Vestido de noiva”, marco da modernidade do teatro brasileiro na encenação de 1943 orquestrada sob direção de Ziembinski (1908–1978).
Todos esses acontecimentos parecem ganhar vida na voz, no corpo, nas inflexões e nos olhares de Fernanda Montenegro. Não é uma leitura o que se vê e ouve no palco, mas uma intepretação enriquecedora da obra escrita pela filha de Nelson, Sonia Rodrigues, e apresentada em 2012 com a reunião de declarações do dramaturgo em entrevistas.
A seleção de Fernanda Montenegro torna ainda mais fina a costura da obra. Há princípio, meio e fim na transposição de “Nelson Rodrigues por ele mesmo” para o palco. Há sobretudo o ritmo dado pela atriz, senhora dessa cena aliciante em que desvenda obsessões e delírios de Nelson Rodrigues, cujas angústias dores e lágrimas podem até gerar na plateia nervosos sorrisos de ironia, como sugerem os versos da ária “Vesti la giubba” (1892), tema da ópera italiana “Pagliacci” ouvido em cena como espécie de prólogo para tudo que será lido pela atriz.
No circo de ilusões e horrores da vida, Nelson Rodrigues nunca foi um palhaço, mas um escritor de alma atormentada e assumidamente reacionária que se redimiu pela obra magistral, pela revisão da postura política (a partir da prisão e tortura do filho Nelson Rodrigues Filho na década de 1970) e que, no resumo da ópera, deu o máximo de si mesmo, como sublinha ao fim Fernanda Montenegro, dama da cena, ao alimentar a eternidade do escritor na magia do palco.
Mauro Ferreira