segunda-feira, 24 de março de 2025

Forças


Centrífugas
Bocas
Transgridem no beijo
A gravidade


Rosália Milsztajn

domingo, 23 de março de 2025

água-forte


singrando fantasia qualquer
freme um risco
         olho azul
dardo ofegante rapto
de um lance
                   pego acaso
quanto mais faz-de-conta
vigília de bolas de gude
miramar miramar
                      lufada de cor
                      irrompe

                      — prova o Cais


Naila Rachid

sábado, 22 de março de 2025

Um poema de Numa Ciro


passarei a tarde toda
descascando cebolas
só pra chorar sem motivo


Numa Ciro


sexta-feira, 21 de março de 2025

Carrossel


de manhã na
praia eles combinam
o que farão à noite de
noite, na festa eles
combinam de ir à
praia amanhã


Ana Salek

quinta-feira, 20 de março de 2025

Um poema de Natasha Felix


logo farei 22 anos.
me recuso a ir embora antes.
até lá enterrarei um filho. isso não será triste.
não vou embora sem cruzar a fronteira
enterrar esse filho
    profundamente
    não ser triste.


Natasha Felix

quarta-feira, 19 de março de 2025

Rosa Luxemburgo


passei a maior vergonha
no dia que tu viesse me buscar
usando uma camiseta
rosa-choque
tu só usa preto 
e eu sempre reclamo
digo "aff Lukas que tédio"
e eu adoro rosa-choque
a cor o nome
não sei o que deu em mim
certeza que não foi inveja
foi outra coisa mais feia
olhei pra tu e disse
"oxe que cor é essa menino?
e tu
oito anos mais novo
millennial
anos luz à frente 
dissesse
"qual o problema? só quem pode usar rosa é tu?"
e eu não soube responder
porque de fato
não há problema
algum
cores são uma invenção
e não têm dono
"pertencem à vida"
(não fui eu quem disse, foi goethe)


Adelaide Ivánova

terça-feira, 18 de março de 2025

Querida


Queria ser homem político
Sujeito herói bom lutador.
Queria ser poeta maldito
Profundo gênio sofredor.

Pronto me Safo do burro querer
És filha da terra e mãe hás de ser
Toda poesia que te queira nascer.


Marina Laurentiis

segunda-feira, 17 de março de 2025

Teima, de Ana Elisa Ribeiro


Às vésperas do casamento, mandou-me um bilhete, re-
presentante máximo de sua franqueza presente e futura:
não lavo, não passo, não sei cozer nem desejo aprender,
não limpo, não seco, não espano. Baixei os olhos, verti
uns pequenos arrependimentos antecipados e me casei.


Ana Elise Ribeiro

domingo, 16 de março de 2025

Ungida


Vem,
Unge-me com santos óleos:
O corpo,
Os cabelo,
A pele,
O plexo solar.

Vem,
Unge-me
Com óleo bento:
A mente, 
O espírito
Sedento
De azeite quente.

Vem,
Unge-me,
De cada poro
Transpiro
Gotas de luz,
Toda pura
E poderosa.


Raquel Naveira


sábado, 15 de março de 2025

Para a mão que escreve


A pele soltando da mão
Parece um paço de dança
Parece doença
(embaixo da atadura
há vermes silenciosos
muito empenhados no seu trabalho,
seriíssimos decompositores)
Se for contagioso a esquerda
Escreve estrahno um pequeno desvio,
não se preocupe:
Fim de festa é sempre assim
Freezer vazio
E alguns corpos podres espalhados pela casa


Ana B.

sexta-feira, 14 de março de 2025

O assassinato de Marielle Franco


como apaga um corpo depois
de correr nele um vinho de tanta
fruta gorda e suculenta
você segura nas mãos da vida
e nela há respiração timbre
a pisada de um búfalo
o fôlego vindo das raízes
o vento que bate na areia da pele,
você vê os pelos eriçados
você inclusive se arrepia
e de repente um outro sopro
morde
onde tudo sangra
como que pode
morrer às vezes
ser tão lento
como apaga um corpo depois
depois de a pele que temos
ser tão consoladora
fica um pouco mais
poderia ter dito
mas o vinho por dentro ardia
e mesmo que o corpo ficasse
o elo de ser um animal
já tinha se desfeito
o visgo inteiro vazado
a ponto de nunca mais
poder ser recolhido
como que pode
um corpo inteiro
quebrado
a gente estendendo a mão
que fica mais no vazio
a gente também um corpo
esperando seu quebrado
como pode um corpo inteiro
sumir
mesmo desmembrado
sempre pode ou deve
o desencanto ser admitido
morrer como adormecer
entre as ruínas
as bombas
perder
sopro sangue ar
barco e mãos
atracados mas
pendentes
nos filamentos do espaço
a mão última que acena
sabe porque dói
o impossível
não pode mais.


Tatiana Pequeno

quinta-feira, 13 de março de 2025

Teima, de Laura Assis


Correr ao contrário
o caminho mais claro.

Ciência da escolha
em oposta direção.

Desacreditar a equação
precisa das respostas.

Insistir em tudo
que não tenha
o peso da realidade.


Laura Assis

quarta-feira, 12 de março de 2025

Escuro, de Marilia Kubota


o olhar ficou frio e duro
o mar sem movimento
ondas rápidas, gaivotas sujas.

o tigre ruge
no lençol azul-marinho.
nuvens de fuligem
sobre o pergaminho enrugado:

é inverno no atlântico

a vida tomba diante
do punho fechado.


Marilia Kubota

terça-feira, 11 de março de 2025

Quadrado Vermelho


de banhar também insiste
escorrer a mão ao sexo
cegar o pássaro pela metáfora molhada
você sabe bem
apanhar um número caído
estourar a bolha sociopata:
hoje eu menstruei em desesperos homeopáticos


Carla Diacov

segunda-feira, 10 de março de 2025

Espelho


Tirei as sandálias e, lentamente os meus pés tocaram aquela areia fofa e molhada. Os meus dedos sumiram em meio aos grãos. Como uma descarga elétrica, o meu corpo desligou e ligou. Certifiquei-me que estava de pé. As gotas de chuva caíram como diamantes e ao tocarem o mar transformavam-se em grandes e múltiplos aros de prata entrelaçados. Eu ainda estava de pé. Conectada àquela natureza, não consegui resistir. Caminhei delicadamente em direção ao mar. Mergulhei! Mergulhei mais fundo que pude e ao tentar voltar à superfície, algo impedia-me. Imóvel. Sem ar. Queria gritar! Berrar! Ar! Desliguei. Na tentativa de gritar pela última vez busquei forças. Acordei.


Indira Kupfer

domingo, 9 de março de 2025

Jogo de prefixos


Quero
unir
o inútil
ao agradável.

Os que
desejam
o útil

fiquem
também
com
o desagradável.


Bianka de Andrade

sábado, 8 de março de 2025

Mulher


À noite, tempestade,
amanheço nublada
à janela, manhã de inverno,
reflexos internos,
tantas minhas metades.

Espelho quebrado dá azar.

Há quem se mire
todo, inteiro de tudo?
— Não.

Eu nuca
bebo. Minto às vezes
para consolar o mundo
que anda triste.
Anoiteço toda inverno,
quente numas partes,
labareda noturna
sou, em toda parte, Mulher.


Jade Prata

sexta-feira, 7 de março de 2025

Poema Imemorável, inédito de Noélia Ribeiro


caligrafia de lapsos
língua geográfica em versos voadores
química de significantes
pai e mãe anímicos
profusão de pré-histórias

poema-platô: alecrim-vinagre-tinta-sal
tentativa de reaver o contorno original


Noélia Ribeiro

quinta-feira, 6 de março de 2025

Um poema de Nadiá Paulo Ferreira


Quando me abraças
mais uma vez
esse verbo amar
tantas vezes escrito
com surpresa
vem dizer algo
ultrapassando
qualquer verbo transitivo


Nadiá Paulo Ferreira

quarta-feira, 5 de março de 2025

PUTA DA BABILÔNIA


sou apenas como são os passarinhos:
não tenho entendimento do silêncio
mas
sou como são todas as mulheres
também:
mais fera que gente
ainda que por filosofia,
maldição ou benção
Fera de colo
querer de besta:
amar, matar e deitar, depois
beber água
cuidar das plantas
acompanhar uma vela inteira queimar
                            pensar eventualmente na morte

porque

se o apocalipse se deu
pela Puta da Babilônia
chama-me Babilônia
chame-me Puta


Ágatha Kreisler

terça-feira, 4 de março de 2025

Um poema de Roberta Lahmeyer


pa-
la-
vras
pe-
ri-
go-
sas
de
olhos
fu-
tu-
ros


Roberta Lahmeyer

segunda-feira, 3 de março de 2025

Eva, de Laura Liuzzi


Eva também é ave
palavra voo
desde cima
o cimo da pedra:
tártaro
dentista do limo
escalavra 
a pedra da palavra pedra.


Laura Liuzzi

domingo, 2 de março de 2025

Dama da noite, de Marilena Moraes


Naquela noite, não houve aula no curso supletivo. Os alunos comentavam, 
atônitos, a manchete do jornal popular que passava de mão em mão.

"Exorcismo na boate" — "Professora de dia, stripper à noite, Bernadete 
dos Santos, 30 anos, também conhecida como Lucimar, foi assassinada por seu aluno, José Tenreiro, inconformado ao descobrir a segunda identidade da professora do curso supletivo que frequentava. Apresentando sinais de desequilíbrio mental, Tenreiro foi preso em flagrante, tendo ainda nas mãos o punhal de prata que cravou entre os seios da bailarina/professora em meio ao show da boate Clamores."

Era o texto da notícia que um engraçadinho fizera questão de colar no quadro-negro, contando a morte trágica da professora, Bernadete de dia, de noite Lucimar.

Ar de beata, rosto lavado, poucas palavras, tinha nome de santa e cheiro 
de talco. Dava aulas no supletivo, num bairro de gente simples. Com os alunos, o relacionamento era apenas cordial.

Ninguém poderia imaginar que a professora pacata, de roupas discretas, 
saía dali direto para Copacabana, onde, às três da manhã, estrelava o show da boate Clamores.

"Sex alive" — anunciava o neon. Maquiagem pesada, óleo no corpo, 
Lucimar se roçava no parceiro, sem sequer olhar para o seu rosto e sem encarar a plateia de homens agitados, que gritavam palavras que ela fingia não ouvir. Uma amiga a levara para a Clamores, convencendo-a de que podia fazer bom uso do belo corpo. Se o dinheiro das aulas era pouco, as notas verdes dos turistas ajudavam bastante no orçamento.

Religião? Nunca tivera. Pudor? Há horas em que a necessidade fala 
mais alto. Ao fim de alguns meses, o prazer de estar no palco, nua e exposta, passou a ser a razão mais forte de sair toda noite do Méier direto para a Princesa Isabel.

Não poderia, no entanto, imaginar um aluno na plateia. Tenreiro 
voltou na noite seguinte e em outras tantas noites. Reconhecera a professora na mulher de roupa colante e meia arrastão que saía da boate quase de manhã, pendurada nos sete centímetros de salto, abraçada a um gringo qualquer.

Passou a segui-la, e a ideia de purificá-la, fazê-la voltar a ser apenas a professora, tornou conta dele. Limpar seu corpo, salvar sua alma foi a missão a que
se propôs.

Hoje, ele está internado no manicômio judiciário, constatado o problema mental.

A professora foi homenageada na entrega dos diplomas, mas os alunos preferiram louvar suas qualidades de dama da noite, a bailarina de pernas bem feitas, seios redondos e sexo depilado.

A comemoração, na Clamores, correu por conta da casa.


Marilena Moraes

Noite


saí tropeçando
fuligens.
rastro de pólvora
cola, descola
medo da sua língua
na minha — segurei.
a mão
quente
medrosas gotículas brotaram
do útero.
essa flor
é
para você.


Letícia Simões

sábado, 1 de março de 2025

Cartomante


tomar decisões
é a melhor forma
de prever o futuro


Luiza Mussnich

Mês da mulher no Plástico Bolha


No Plástico Bolha, todos os dias são dias para autores, autoras e autorxs. Mas nesse março de 2025, fizemos uma seleção especial no blog, juntando autoras parceiras do PB, com textos e poemas que mostram a marca da escrita feminina: uma pequena antologia de autoras de nossa literatura atual.

Confira, ao longo desse mês, a seleção de autoras parceiras, que selecionamos especialmente  para a celebração do mês da mulher. E não se esqueça que, independentemente do seu gênero, o Plástico Bolha está de portas abertas!

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Clypeasteroida


Sob o rumor das ondas
irisadas pelo vento
uma bolacha-do-mar
oferece em seu centro
a solidão quase nua
despida pelo tempo.


Alexandre Bruno Tinelli

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

capítulo curto


releu Dom Casmurro:
todo patriarca é um corno


Lucas Viriato

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Incoerência


A tartaruga
chegou.

O passageiro
do avião
não!


Débora Novaes de Castro

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Quando chove


Em São Paulo, quando
chove,
chovem carros.

Tudo para:
pontes, viadutos, Marginais.

E a água retoma
seu curso original:
Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu.

Ruas onde eram rios,
ex-rios, caminhos de rato, canais.
Rios sobre ruas,
Elevado, Via Dutra, Radial.

Em São Paulo, quando
chove,
chovem apocalipses
de quintal.


Frederico Barbosa

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Toda escola devia ser samba, a canção


Toda escola devia ser de samba
Toda escola devia ser assim
de cantar
de trazer você pra mim
Toda escola devia ter essa ginga
trazer essa parte
que é mais vida
que é arte

Toda escola devia ser criança
ensinando adulto

Toda escola devia ser silêncio
sussurrando música

Toda escola devia ser noite
tramando dia

Toda escola devia ser samba
toda semana devia ser seu
carnaval


Paulo D'Auria

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Goela


fale o que quer te venha a boca
com a certeza de quem só diz a verdade:
sou um ser sensibilíssimo, sim
até as estrelas me influenciam
passei a desconfiar mais
depois que o sino da igreja atrasou:
mas isso são só meus dentes
que se quebram sozinhos
se afiam nessa língua quase minha
em tempos de paz
guardo meu coração na goela
em tempos de guerra
guardo meu coração nas mãos
quando na goela sempre
embaixo das cordas vocais
para que não saiam sons
apenas engasgos
para que não saiam nomes
mas gemidos
aí sim
reparar no
brilho da faca
preso na minha retina
procurar na faca
justa-causa
retina minha


Ágatha Kreisler

sábado, 22 de fevereiro de 2025

A tempestade


Canibal, palavra latina,
à maneira de canis, animal
de fidelidade canina.

Nas Bermudas, sublime ironia,
será um vento cão e vai se chamar hurracán.

E quando o mar de lã
de repente apontar terra à vista
Então será Caliban.


Rodrigo Garcia Lopes

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Hanishira e a moto amarela sobre a mesa do imperador


Hanishira ouviu o ronco do motor e isso fez com que ela saltasse da cama, de um só pulo e 
se pusesse em frente ao espelho do banheiro. Jogou, com as duas mãos, água gelada no rosto para ativar-se.

Era ele, tinha certeza, acabara de dobrar a primeira ladeira, virara a esquina lá em baixo. 
Subiu e ela o ouviria mais uma vez quando contornasse a segunda curva. Ele contornou. Estava mais perto. É ele! Sem dúvidas é ele: ele e sua moto amarela. Pensou apertando involuntariamente as pernas. Que sensação gostosa que fazia o motor da possante amarela enquanto pousava nela sua buceta! Só de pensar nisso ficou com muito desejo. O que esse cara havia feito com ela? Que tipo de feitiço era aquele?

A água fria escorreu pelo seu peito que enrijeceu. Ela tirou a calcinha e a camiseta de malha e colocou uma camisola transparente e um roupão com motivo de gueixa, queria deixar bem entendido, que estava ali para servir. 

Ouviu o motor silenciar em frente à casa. Rapidamente aplicou um blush e um rímel, 
apenas para ressaltar o olhar e ganhar uma cor. Ele assobiou. Isso é bom, lembrou que a campainha está com defeito. É sinal que pensou em mim, que tá ligado. Hoje, nada daquele papo tântrico, hoje eu parto pra cima dele e com sorte ele será o cara que terei coragem de falar: Vai, come a minha buceta! Abre ela todinha! Pronunciar essas coisas lhe enchia de tesão. Mas raras foram as vezes que ousou pronunciar na hora do ato sexual a palavra buceta. Só na cabeça, pensava, mas sempre usava outra nomenclatura: periquita, pão doce, preciosa, nomes assim. Talvez porque julgasse que uma mulher não deveria gostar de buceta, que pega mal. Que esse é um direito apenas dos homens. Mas ela adorava essa palavra, ficava louca. Mas até então só conseguia pensar nunca falava.

Uma amiga dizia que quando ela encontrasse a pessoa certa ela teria coragem de ser ela mesma. De se entregar. E aí você não vai ter mais vergonha de nada. Pensava todas essas coisas que lhe traziam um sorriso tímido e safado à cara enquanto atravessava o corredor em direção a porta de vidro que deixava vazar a luz do sol, ela caminhou em direção a claridade até que nada mais pudesse ser visto. Ficou cega completamente ao abrir a porta. Ele entrou, ela abriu os olhos.

— Você me disse que acordava cedo.

— Tô acordada. Tava lendo na cama.

— Tem hoje tempo pra praticar?

Tomou Hanishira nos baços e a beijou. Quando esses lábios se desgrudaram ela pôde 
sentir, o gosto do abacaxi com hortelã e o celular de João vibrar no bolso. Ele desligou automaticamente o que fez com que ela se sentisse muito importante.

— Quer um café?

Ofereceu ao passar pela cozinha.

— Vim te levar até a Mesa do Imperador.

Ela teve um sobressalto. Não esperava sair, esperava voltar para cama e se enroscar com ele.

— Eu devo me trocar.

— Só se você quiser.

Ela adoraria ter coragem de montar na moto daquele jeito, mas não era assim tão 
descolada. Correu até o quarto e teve vontade de colocar o guarda roupa abaixo. Uma saia e uma blusa surgiram como num passe de mágica, meias e a calcinha. De volta à sala. João a tomou pela mão e a conduziu até a moto. Ele sabia a pressão certa ao lhe dar a mão. Na noite do último encontro enquanto dissertava baixinho em seus ouvidos as maravilhas do sexo tântrico. Ele segurava pressionando sua mão de tal maneira que a fazia delirar. E também teve aquele momento dos pés, onde se tocaram, pé com pé. Que só em pensar já fazia Hanishira ficar totalmente molhada. Ao sentar-se na moto, a sensação do motor
ligado, vibrando. Que delícia!

Sentiu sua buceta ser pressionada levemente como se no assento tivesse ali um encaixe perfeitinho então tudo que ela pode fazer foi prender seu condutor levemente com as pernas que sofriam pequenos espasmos e Hanishira abraçava João passando a mão em seus peitos peludos. O vento na cara e a sensação de liberdade. Ela usava uma saia de malha fina. Cortaram as ladeiras como quem corta nuvens. Cruzaram as montanhas das paineiras. As montanhas do Rio e seu cabelo sobrando em seu capacete coquinho amarelo. Ao vento. E Hanishira recebendo o perfume de seu shampoo de ervas.

João era um tipo diferente, parecia um indiano, tinha aquele moreno, negro meio cinza, meio cravo, meio canela. Um indiano mesmo. Só que brasileiro. Desde a primeira vez que Hanishira depositou os olhos nele, já ficou interessada. Seu palpite era de que ali tinha uma coisa gostosa.

De vez em quando ele falava algo para ela gritado para tentar ser ouvido apesar do barulho 
infernal que produzia a possante como ele mesmo a havia apelidado.

— Respira, deixa o ar entrar! Lembra da primeira lição do sexo tântrico?

Ela repetia.

— Deixa o ar entrar!

— Deixa tudo entrar!

— Aí que delícia!

— Vou te comer hoje todinha.

E ela tremeu. Pela primeira vez sentiu uma pontadinha de medo, mas tratou de afastar de si a síndrome de patrulha da cidade, de que todos os homens incríveis que se aproximavam de mulheres comuns são psicopatas em potencial, ou ao menos tem potencial para ser. E para aplacar o medo apertou mais forte seus peitos contra as costas de João, afastou-se um pouco e ficou lhe roçando os bicos e o pressionando com as pernas, aproveitando aquela trepidação do motor que para ela: Não vou esconder aqui, estava há alguns meses sem trepar, poderia gozar a qualquer momento. O que seria um milagre, por que ela não era assim de gozar rápido. Isso nenhum homem podia falar dela. Sempre dera trabalho aos amantes mais dedicados. Precisava ser trabalhada para gozar. Mas aquele a quem ela agarrava pela cintura agora, já havia lhe trabalhado toda uma noite, e nem se quer a tocara. Havia lhe revelado em segredo as doze lições do sexo tântrico. Em um livro de bolso que ele sacou da pochete. Esse sabia mesmo do que gosta uma mulher. Havia estado a ponto de derreter nos braços daquele homem, só de toques nas mãos, massagens energéticas. Hoje ela sentiria o gosto dele.

Assim que chegaram à pedra do imperador, o sol estava quente. Nem mesmo os lagartos, que são atração do lugar, se atreviam a transitar pelo local.

Ele lhe ofereceu um pouco de água que trouxera em um cantil. Eles beberam e beijaram. E aquela água que a princípio gelada pareceu transformar-se em ardente. Ficaram ali pegando fogo. Ele meteu a mão pela blusa de Hanishira e colocou seus peitos pra fora, enquanto os lambia. Seus peitos eram fartos, mas de bicos pequenos que ao enrijecer quase desaparecia. João dava pequenas mordiscadas puxando os bicos para fora.

— Pode chegar alguém.

— Se chegar alguém eu arranco a tua roupa toda.

Ele já falou isso metendo a mão por debaixo da saia e puxando sua calcinha para baixo pelo fundo, riu de satisfação ao perceber que aquela bucetinha já estava bem molhadinha em ponto de bala, como dizem os mais safados. Pediu que ela colocasse as mãos no chão, só pra que ele pudesse olhar por esse ângulo.

Porque contou para ele a fantasia de se exibir? Sentia-se amedrontada e excitada pela possibilidade de realizar uma fantasia. Nunca imaginou que tivesse coragem, mas estava ali, pronta.

Ele era muito safado e ela adorava aquilo. Não estava sentindo medo ou vergonha e ela estava ali na rua. Tudo bem uma rua deserta, mas é rua. E ela estava com as mãos no chão, sua bunda para cima com um cara safado passando mão nela. Será que teria coragem de contar para alguém? Mas se não o fizesse teria valido a pena? De certo suas amigas mais íntimas teriam dificuldades até mesmo de acreditar no acontecido. E até o momento quase nada havia acontecido. Mas o que ela esperava? Sua cabeça estava quente como se tomasse doses de cachaça ao meio dia. Estava vermelha de estar naquela posição que no fundo era ridícula, mas que não tinha mais saída a partir do momento que aceitou a brincadeira, estava com a cara toda vermelha e por certo também vermelha estava sua querida companheira buceta. Que pulsava ao sol, após ter sido raspada quase que por completo logo após o término do primeiro encontro. João havia dito que raspadelas eram de sua preferência, permitiam sensações mais próximas, deixou escapar fingindo sem querer. Fazia parte, esse sabe como jogar. Ela não se arrependeu, podia sentir o sol lhe queimar e as mãos de seu motoqueiro, dedo a dedo deslizando por sua buceta e agora não parava de repetir para si: Vai, desliza na minha boceta inchada e quente.

Falava baixo, mas desejando falar para fora, enquanto se mantinha de bunda para cima 
abriu os olhos e deu de cara com os olhos de João. Ele estava agachado olhando para ela, o mundo de cabeça para baixo, ela o via e sentia a sua mão. Ele colocou na própria boca uma folha de louro que tirou do bolso e levou uma outra a boca de Hanishira. 

Ela percebeu que ali, ele dava um salto a mais em suas etapas da conquista. O que ele 
poderia querer mais? Já estava semi nua, entregue. É por isso então, ele quer magia! E teve as mãos dele dentro dela. Enquanto mastigou o louro amargo.

— Vai te libertar.

Ele sumiu da sua vista e lhe chupou forte e demorado. Antes de ajudá-la a levantar, sorriu ao perceber que ela estava muito vermelha e teve vertigem quando o sangue voltou a circular para o corpo. Ele a aparou e a carregou até a mesa, a grande mesa do Imperador. Levou a mão de Hanishira em seu pau.

— A grande pedra!

Ela não teve tempo de falar nada, Ele tapou lhe a boca e ela gostou. E pedia para ela 
manter os olhos abertos e ela fazia esse esforço. E se esforçou tão bem que suas pálpebras pouco se mexiam, estavam fixadas nos olhos negros de João, que agora tinha olhos e pau. Para ela, ele tinha apenas olhos e pau. Ela deitada na pedra, ele segurou suas pernas no ar e com jeitinho nem muito delicado, nem muito bruto, certeiro, meteu seu pau que entrou deslizando, encaixando em cada curva por dentro dela. Momento já sonhado por Hanishira.

Ela então não conseguindo mais conter falou em boa altura: Mete na minha buceta! E ter 
dado esse grito à fez jorrar para fora, como se ele despertasse nela sua verdadeira vocação. 

— Tô metendo!

E meteu. Direitinho, encaixadinho como nunca houvera sido. Ela cravou os dedos sem unhas pelo vício de comê-las, nas costas dele. E acompanhava seus movimentos como se já tivessem dançado aquela dança muitas vezes. Os olhos dele brilhavam. Ela concentrada neles e dançando em movimento continuo com o pau de João dentro dela. Teve a sensação de estarem sendo vigiados, olhos para todos os lados. Ele dizia para que ela não se preocupasse. Seus olhos fecharam e se deixaram levar. Ele era como um polvo estava dentro dela, na cintura, na bunda, no peito, estava em suas orelhas, no pescoço, pressionava levemente os dedos em movimentos circulares passeando ora em seu clitóris, ora em seu prêmio, como fez questão de apelidar na primeira vez que tocou nele ainda quando estava com bunda para o alto.

O sol quente sobre a pedra e ela com suas costas sentindo isso como uma dose extra em seu prazer. O movimento foi ficando intenso e mais ritmado, era a primeira vez que mesmo por baixo tinha liberdade de se mover. Como ele conseguiu a aquilo? Metia nela e ela mexia esfregando-se de maneira que os dois foram levados ao momento mais sonhado dos amantes, morrerem juntinhos a sua pequena morte. Ela soltou um gemido agudo e abriu os olhos num estímulo ao êxtase daquele momento e percebeu os olhos na árvore que pendia sobre a ponta da pedra, um punhado de olhos de lagartos os olhando. Uma árvore de lagartos. E foram abrindo os olhos um a um com o grito de Hanishira e se sentindo acuados mudaram de cor e saltaram sobre as costas de João e sobre as pálpebras coladas desta moça, e sobre suas pernas e braços e pisotearam o casal, numa chuva de lagartos. Os dois ficaram ali petrificados. Demorou ainda um pequeno tempo para que conseguissem levantar. Ele saiu de cima dela em silêncio. Ela colocou a roupa, mas não achou sua calcinha. Ele ligou a moto e a chamou para subir. Quando ela colou seus peitos nas costas dele, ele virou sua cabeça levemente para traz. E perguntou se estava tudo bem. Hanishira balançou a cabeça afirmativamente. Ele colocou o braço para trás e segurou-a na buceta. Deu três leves tapinhas. Hanishira sorriu.

— Isso nunca tinha me acontecido. Não tão assim.

— Você é esquisito. Adoro o medo que sinto de você, Imperador.

Ele arrancou a moto ladeira abaixo. De vez em quando entre uma curva e outra ele dava 
gritos.

— Lagartos filhos da puta! Eu sou seu imperador e lhes ordeno que cada um procure sua própria mulher para comer!

Hanishira ouvia essas besteiras e se apaixonava cada vez mais. Ria e sentia João escorrer de dentro dela, ia chegar em casa com a saia toda suja. O amor é sujo.

Na Jardim Botânico engarrafada, ela continuava seu ritual de roçar os peitos nas costas de 
seu condutor. Os dois riam de prazer.

Depois desta trepada nunca mais voltaram a praticar nenhuma das doze lições de sexo 
tântrico, mas enquanto juntos, mantiveram o habito de se devorarem em lugares públicos.


Luciana Bezerra

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Tormento


Coisas que hão de te atormentar:
as reminiscências de um passado que
remoídas foram, muitas e muitas vezes;
lembranças de uma vida que você nunca teve;
oráculos sobre os sonhos que nunca vai realizar.
São essas as coisas que, para sempre, 
irão te assombrar.


Thais Vicente

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Um poema de Roberta Lahmeyer


    O céu desce
fica a dez centímetros de mim
    Acho que se eu levantar a mão
posso alcançar uma estrela
     Mas continuo imóvel
Pensando


Roberta Lahmeyer

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Um poema de Iuri Mello


Eu odeio a métrica
porque o verso quebra
e eu fico na merda

uma hora penando
e a palavra não cabe 
a métrica que se dane


Iuri Mello

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Angra I


teu sono
que eu levo na esportiva
esse brinquedo de me deixar a sós
interpretá-lo

como as confusas placas que vão brotando
pela Avenida Brasil

por muito tempo indo
estávamos voltando


Ismar Tirelli Neto

 

domingo, 16 de fevereiro de 2025

CANÇÃO DO DESESPERO


Um homem bateu em minha
porta e eu abri. Senhoras e
senhores deitados no chão,
senhoras e senhores eu não
estou só, senhoras e senhores
meu filho está com fome e eu
moro na rua.


Daniel Viana

PLÁSTICO BOLHA: CHAMADA DE TEXTOS 2025!!!


O Jornal Plástico Bolha está com Chamada Aberta para o recebimento de textos para 2025! Todos os poemas, contos, ensaios, narrativas curtas, charges, divulgação de projetos serão bem-vindos. Estamos perto de entrar em nossa terceira década de vida com a alegria de seguir de portas abertas para autores, sem distinções! Leia, divulgue, escreva, envie, comente, participe! Ploct! 

Envie seu material pelo e-mail: jornalplasticobolha@gmail.com

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Adeus ao grande Cacá Diegues




Ontem, o Brasil foi surpreendido com a notícia da perda do cineasta e pensador Cacá Diegues. Em meio a tantas — e devidas — homenagens a este alagoano, ícone do cinema brasileiro, nós do Plástico Bolha nos sentimos no humilde dever de acrescentar esta nota de pesar, mas também de muita gratidão. Assim como muitos na cultura brasileira, o Jornal Plástico Bolha também teve a alegria de ser ajudado por Cacá na época de nosso financiamento coletivo. Para além do valor doado, a honra de ser apoiado por Cacá e de contar com sua confiança em nosso projeto é o que ficou de mais precioso para nós.

Fora isso, não podemos deixar de mencionar que sua filha, Isabel Leão Diegues, que hoje brilha nas edições da editora Cobogó, fez parte do time de autores/editores que fundou o Jornal Plástico Bolha, na PUC-Rio, nos idos de 2006. Nossa querida Bel participou com a publicação de seus textos, sua colaboração editorial, seus conselhos e inúmeras parcerias. Como o tempo sempre anda para frente, há poucos anos, tivemos uma nova alegria, ao passarmos a receber em nosso espaço, os textos e poemas de José (Diegues) Bial, filhote de Isabel e neto de Cacá, que hoje mantém a terceira geração desta linhagem viva e atuante nos espaços do nosso jornal.

Ao Cacá, nossa gratidão como brasileiros. À Isabel, ao José, e a toda família, o nosso sentimento e amor neste momento.

Um poema de Clara de Góes


Origami de silêncio
dobradura incomunicável
da morte _ a folha
em branco


Clara de Góes

O Céu da Língua, com Gregório Duvivier



Nosso querido parceiro e amigo, o poeta, escritor e ator, Gregório Duvivier estreia a peça O Céu da Língua, no Rio de Janeiro. Todos estão convidados para este espetáculo poético e imperdível!

O Céu da Língua

Local:
Teatro Carlos Gomes

Data/Hora:
até 23 de fev de 2025, 19:00h 

Classificação:
- Verifique Classificação -

Não é permitida a entrada após o início do espetáculo.


 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Os Ratos Embaixo da Cama de Selma


Encontrei Selma sentada no primeiro banco do Parque. Olhava fixamente para o portão, o braço sobre o encosto, os dedos com um cigarro espetado que se tragava sozinho, as pernas cruzadas, com uma sacola de compras, onde estavam suas roupas, repousando no assento. Apesar do rosto enrugado do tempo e dos abusos, seus olhos cor de mel lembravam uma beleza que ainda não havia se despedido por inteiro. Parei a sua frente, seus olhos continuaram no portão. Retornou de seus pensamentos quando o cigarro queimou seus dedos, mesmo assim, não expressou dor, havia superado a sensibilidade física desde muito tempo; arremessou o cigarro longe, puxou da sacola mais um, acendeu e não me olhou.

É de se entender porque não me olhava. Eu havia saído de casa há 2 semanas, sem despedida, sem comunicado, apenas o covarde desaparecimento. Correu os bares e muquifos por onde andávamos atrás do meu paradeiro. Me encontrou saindo do Cine Ópera, um cinema decadente no centro antigo da cidade, onde os desocupados iam para passar o tempo, praticar suas insanidades e enganar o suicídio; aliás, foi lá que nos conhecemos. Selma me seguiu até o quarto que eu estava ficando, colocou por debaixo da porta um bilhete escrito local, data e hora do encontro, “Sem reminiscências, Selma”. Quando a conheci, não era tão velha como agora, coisa de 8 ou 15 meses atrás. Se sentou ao meu lado por engano, me chamava de Herleson, os olhos a meia pálpebra, a cabeça mole caindo para os lados, o balbucio, a saliva seca nos cantos da boca... Me mantive ao seu lado conversando, chamado de Herleson. Quando nos entediamos, a levei para comer uma quentinha a 2,50 no restaurante na entrada do cinema, ela estava faminta, eu também. Em uma das colheradas, recobrou a consciência, me analisou por um instante e voltou a comer. Depois que terminamos, caminhamos em silêncio até a Praça da República. No caminho entramos em um depósito de bebidas, ela pediu duas buchudinhas e duas carteiras de cigarro e me olhou, consenti com um piscar de olhos. Sentamos em um dos bancos da praça e ficamos observando o movimento. Ainda era cedo, o trânsito ainda tumultuava, as travestis que circulavam pela praça ainda eram em pequeno número. Algumas passavam e nos davam boa noite ou pediam um gole da bebida, atendíamos a ambas solicitações. Quando aumentaram de número, eu e Selma começamos a brincar imaginando seus nomes, ela era muito boa nisso; me confessou que frequentemente tinha sonhos eróticos com travestis e que quando o realizasse, desejava que a chamasse de Cyla Summer; e também contou sobre um sonho estranho em que ela dava um seminário em um navio naufragando, sendo que ela não poderia terminar a palestra até que todos estivessem afogados, disse que isso lhe havia concedido a habilidade de respirar sob as águas. Selma tinha doutorado em Semiótica, e não importa como ela, ou eu, chegamos até ali.

Depois, novamente entediados, fomos atrás de um quarto para passar a noite. Perambulamos um bocado até encontramos um que os dois pudessem pagar, esses lugares eram abarrotados de pessoas que queriam apenas esticar as costas com a devida atenção, e assim fizemos. Nos deitamos, Selma se virou para o seu lado, eu para o meu, e adormecemos com as costas grudadas. Ao acordarmos, decidimos permanecer no Sete-Sete – esse era o nome do lugar –, dividindo as contas igualmente, nos despedimos e cada um foi cuidar da sua vida aquele dia.

Nunca me interessei em saber o que Selma fazia para conseguir dinheiro, ela também não me perturbava com o assunto, desde que ambos cumprissem com sua parte no acordo. Nosso relacionamento se resumia a companhia – nos admirávamos mutuamente – e uma fuga quase que incessante de ter que morar na rua. Talvez isso nos aproximasse. Sabíamos que a solidão, o abandono, às vezes são inevitáveis, isso não nos preocupava, talvez fossemos espécies que sabiam lidar com quase todos os tipos de adversidades – isso até mesmo nos alimentava – sem colocar em cheque nossa sanidade, mas inexplicavelmente ficávamos intimamente receosos com a chegada do momento em que nos sobrasse as calçadas e as marquises. Mesmo que não fosse uma situação inédita para ambos, a ideia nos deixava como crianças apavoradas e tínhamos vergonha de nos sentir assim. Quem sabe até merecíamos. Selma se dizia merecedora do infortúnio, que era um destino traçado a ela do qual não conseguiria fugir, não importava o que fizesse, estava jurada à rua, talvez por isso gostasse tanto de estar em bancos de praça.

Por semanas, meses, seguimos nosso acordo sem atrasos. O quarto do Sete-Sete, apesar das paredes mofadas e do banheiro alagado, era um bom lugar. Tinha um cheiro inusitado, as quintas e sextas cheirava a água sanitária, que eu passava por todo o quarto para que nos desse alguma impressão de limpeza e uma mínima noção de higiene; a partir do final da tarde de sexta às madrugadas de quinta, cheirava uma mistura de cigarro, amônia, éster, cerveja e buchudinha. Nosso lar, meu e de Selma.

A intimidade e a rotina, nos criou algum tipo de elo, passamos a nos preocupar um com o outro. Às vezes quando nos excedíamos ao ponto de prever a morte, acordávamos no dia seguinte com uma necessidade urgente de praticar exercícios. Dávamos longas caminhadas, evitávamos o cigarro, a bebida e qualquer tipo de entorpecente durante a semana, o que culminava em um final de semana desregrado e infindável. Certo dia, Selma voltou animada da rua, havia descoberto no parque aulas grátis de aeróbica para idosos, deitou a cabeça no meu peito e me aconselhou a ir, que eu precisava, que iríamos juntos. A joguei para o lado e tivemos uma briga ferrenha, a chamei de velha, era ela quem beirava os 70, eu estava no meio dos 50, ela quem precisava de muletas e filas preferenciais. Selma chorava copiosamente me chamando de covarde, de iludido, mentiroso. Nas duas semanas seguintes fomos religiosamente as aulas, eu me dedicava por uns 20 minutos, o restante buscava algum banco próximo e ficava lendo até a aula terminar; mesmo assim Selma ficava satisfeita, entendíamos o limite um do outro, assim como as implicâncias e as ilusões também.

Não demorava muito e voltávamos para nosso ciclo de sextas e quintas, e sextas às quintas. Assim como também, o tédio não demorou a nos atingir novamente. As caminhadas embriagados pelas praças diminuíram, as sessões de enlouquecimento em casa também ficaram rarefeitas. As preocupações diminuíram ao ponto de “até logo mais”. Não nos destratávamos, muito menos discutíamos, passamos a ser desdenhosos, mesquinhos, irritantes. Começamos a criar hábitos horrendos. Algumas vezes quando chegava da rua de madrugada bêbada, Selma tinha mania de mijar no meu sapato enquanto eu dormia, às vezes eu até estava acordado, abria um dos olhos e assistia a tudo, em outras até mijava propositalmente na cama. Eu respondia me excedendo cada vez mais, deixando a podridão no sanitário sem dar a descarga para que fermentasse, batendo eventualmente a bagana de cigarro em suas roupas. Não tínhamos coragem de aceitar nossas boas aventuranças, acreditávamos fazer parte de um desalinho que merece ser ejetado, e assim nos dedicamos.

Em um último suspiro, Selma apareceu um dia com um rapazote na casa dos 20 anos. Dizia que ele tinha um rosto familiar, ela aproximava seu rosto do dele, esbugalhava os olhos, e lentamente admirava cada detalhe. O chamávamos pelo apelido, Breu. Era um galego franzino de olheiras roxas sem hormônio suficiente para lhe criar pelos no rosto. Lhe servimos bebida, esquentamos os pratos, conversamos madrugada a dentro. Selma parecia feliz, nessa noite dançou.

Nos afeiçoamos ao garoto. Breu passou a morar com a gente, ia para todos os programas que eu e Selma fazíamos, como antigamente; mesmo assim eu não sabia dizer que tipo de relação era aquela. Eu sabia que Breu roubava Selma, eu não o repreendi, apenas o avisei que não me deixasse pegá-lo no flagra. Selma estava mais jovem, gargalhava à toa, cada vez mais se encantava pelo garoto. Ele, que antes dormia em cima das roupas no chão, passou a dormir com a gente na cama, entre eu e Selma, os três abraçados. Ela acordava fazendo carinhos no rapaz adormecido, brincava o colocando no colo lhe dando de comer, passou a chama-lo de molecote. Em uma noite em que eu estava me vazando por todos os orifícios, os dois saíram, não os vi chegar. Ao acordar, ainda fraco do dia anterior, vi Selma nua ao meu lado, o garoto dormia no chão sobre as roupas, também nu. Me levantei com muito esforço, arrumei as poucas roupas que tinha em minha sacola de compras e fui embora.

No reencontro do Parque, Selma disse que ficaria com o rapaz. Consenti em silêncio e perguntei onde ele estava, segundo ela, a esperava nos brinquedos do parque. Se despediu de mim ainda com o olhar fixo no portão. Esperei que ela tomasse certa distância e comecei a segui-la. Ao chegar nos brinquedos, Selma se sentou em um dos bancos e ficou observando as crianças que por lá brincavam, senti que sorria, Breu não estava lá. Selma começou a apalpar a trouxa de roupa, parecia cansada, a colocou na ponta do banco, olhou mais uma vez em volta, aconchegou a cabeça sobre a sacola e, finalmente, deitou.


Fabrício Pinheiro

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Um poema de Iuri Mello


O desejo é minha maldição
desejo tudo
desejo todo
desejo tonto


Iuri Mello

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Poeminha de Knorr


no dia D
na hora H
tudo ficou uma M


Knorr

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

POETINHA, de Daniel Viana


Tinha seis anos e recitava poesias
nas festas da escola, mas  se
escondia atrás da mãe quando
alguém desejava bom dia.


Daniel Viana

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

A minha heroína


“De meu padrasto lembro o gosto
Colher, isqueiro, pedra, agulha
De minha mãe o sangue exposto...
E um fluido branco que borbulha,
Na vida eu creio, na virtude,
Feitos do escárnio deste mundo
Mas como a vida nos ilude!
Ferem, mas quietam o Eu mais fundo...
Fugi de casa, fui surrada
Os dedos fortes, mas tremendo
Porque, bem, sempre fui ousada...
Uma seringa vão enchendo...
Mas tudo passa, e eu logo esqueço
E pouco a pouco o vidro aviva...
Que a morte é só um recomeço!...
Por ter o braço em carne viva,
Garoto, a dor, se é grande, some;
Encontra um canto em seu pescoço,
Sei que perdi meu próprio nome,
Onde se fura, num caroço,
Mas me arde, da época de criança,
Ali, no meio dos inchaços,
Uma sagaz perseverança...
Dobrando o cotovelo em laços,
Necessidade, e o meu vazio,
Se dá ao fluido da seringa...
São por que aos clientes só sorrio...
Bem sob o queixo, então respinga
Olha, eu nem sonho, nem escolho,
Seu sangue, como o meu, vermelho,
Mas quando canso me recolho!
Que escorra, ruim, até seu joelho!
Eu sei que me acham vagabunda,
E a perna, um tanto amolecida,
Carne passada, de segunda...
Arqueia, trôpega e sem vida...
O mal, lembranças e o abandono
Suas palavras já confusas
Se vão conforme vem o sono!
Se erguem como entre exaustas musas...
Prefiro no êxtase as flebites
O seu torpor lhe leva ao chão,
Do que me atar a meus limites!
E ela descansa o coração...
Não sou vilã... nem sou Iansã...
Vai balbuciando a tal pequena
Não sou Iansã... nem sou vilã...”
- Por isso a vida vale a pena,
E tu, ó minha fiel menina,
Cais como toda boa heroína!


Guilherme Ottoni

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sintonia


Dentro de um profundo espaço,
Busco no fundo
De um grande vazio
Sua presença,
Que guardo em silêncio.

Nesta mansa manhã de verão,
Em que alguém que
Vagava sozinha,
De repente, encontrou
Você no caminho,
Com a doçura
Suave de uma grande melodia.

Eu, que bailava sem destino
No grito silencioso
Em busca de carinho,
encontro a felicidade
De ficar ao seu lado
A fim de aprender
A sintonia do amor


Marlene Reis

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Caligrafia, de Paloma Roriz


Ninguém via,
mas aqueles siris na praia
correndo, de toca em toca,
com as patas (pinças, remos, estilógrafos)
riscando a areia lisa, lousa em grânulo —
escreviam.


Paloma Roriz



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Pixo, de Iuri Mello


O livro dos hieróglifos
se abre
nas sacadas altas regulares
como textos cuneiformes
runas, escrita disforme
nomes mágicos
que só é dado a ler
aos iniciados
culto rupestre de jovens calado
marcam seus nomes
no templo de asfalto


Iuri Mello

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Um poema de Roberta Lahmeyer


    Quando a poesia
atravessa a matéria e ilumina
    certos subterrâneos


Roberta Lahmeyer

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Para vovó, de Guilherme Ottoni


''_Vocês são_...'' - li-te, em meu primeiro verso -
Logo teu papo, qual de sapos-bois,
Tua risada, de um amor perverso,
Me advertiram: ''Um poeta põe _vós sois_!''

Posso ser o teu único reverso,
Aquele que buscou vadiar depois
De cair ao teu rigor incontroverso
Num poema onde negamos a nós dois!

Fossem outras as tuas mil certezas
E das minhas ridículas fraquezas
Sirvam a amorfa cinza do teu pó!

Mas hoje, escrevo tudo que me ulcera,
Muito apesar da tua luz severa,
Que se ora brilha, brilha aqui tão-só!


Guilherme Ottoni

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

E POR FALAR EM AMOR


Sebastião e Lourdes estavam casados
há exatos 27 anos. Amor? Não,
pirraça mesmo.


Daniel Viana

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Poeminha de Rodrigo de Souza Leão


será que eu sou tão claro
claralho


Rodrigo de Souza Leão

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Confidências Líricas


O que vou dizer
quando me perguntarem 
quanto vale a palavra proferida
por uma boca falaz e ambígua,
mesmo que seja minha  a boca?

"Não se fie no que diz a língua maldita.
Não dê valor a coisa tão vã e infeliz.
O ínfimo do infinito se fala,
mas o que se versifica
é aquilo que mais diz."


Thais Vicente

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Os pais devem seguir tentando, novo texto de Eduardo Moraes

Fui acampar neste último feriado. Na barraca ao meu lado do camping tinha um pai com seu filho de 14 anos. 


A dupla era simpática, educada, gente fina. O coroa me disse que era a segunda vez dos dois naquela praia. E notei o carinho dele com o garoto. O apreço que ele tinha por ensinar coisas valiosas ao seu “filhão”, como ele o tratava.

Não fiquei prestando muita atenção no conteúdo, mas fiquei imaginando o que eu falaria pra um moleque que um dia eu possa vir a chamar de filho. Ou filhão.

Falaria pra ele deixar o celular de lado e olhar um pouco o céu. Dar um mergulho, uma corrida, jogar uma altinha, trocar ideia com alguém.

Falaria para ele que as coisas custam dinheiro, normalmente não são baratas e que o presente momento é fruto do trabalho duro.

Falaria que tudo bem ele pintar o cabelo de roxo. Azul. Verde. Laranja. Porque o tempo passa, a cor vai embora, a vida acontece, novas cores aparecem e dá sempre pra colocar algo novo na cabeça.

Falaria pra ele que a vida não é fácil, mas que pode ser mais simples.

Falaria que o amor é complicado. Porque às vezes a pessoa não te ama de volta. E às vezes mesmo que ame, o amor não é suficiente.

Falaria que sentir alguns sentimentos é doloroso. Mas que outros são gostosos demais de experimentar.

Mas que amar é bom. Sempre bom, mesmo quando parece ruim.

E tudo isso entraria por um ouvido e sairia pelo outro.

Os pais tentam. E vão (e devem) seguir tentando.


Eduardo Moraes

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Ópera de pássaros

 
A objetividade de fotografia é uma falácia.
Erra quem acha que ela retrata o real.
O que há é que quando o fotógrafo diz:
— olha o passarinho!!
Uma ave de asas oblongas sai de dentro da câmera
com uma paleta de cores e um embornal de pinceizinhos.
Sobrevoa a cabeça do fotógrafo... sobrevoa a cabeça do fotógrafo
e de lá, pinta a cena.
Em suma, a fotografia é uma ópera de pássaros.


Chacal

sábado, 4 de janeiro de 2025

prova real

no final das contas
se não tiver escapado
por entre os dedos
não podia ser mesmo
o que se estava
procurando

Lucas Viriato

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

¿Cómo es tu familia?

pedra preta de dominó.
dividida em duas partes,
com seis pontos coloridos,
tem um ponto que está só.

Lasana Lukata

domingo, 29 de dezembro de 2024

Fim de ano com poema inédito de Fred Coelho

A vida expande
A vida acaba
A vida insiste
A vida é festa
A vida infesta
A vida ensina
A vida é brecha
A vida mina
A vida avexa
A vida é amiga da vida
A vida cobra
A vida muda
A vida escola
A vida curta
A vida vasta
A vida urge
A vida arrasta
A vida ruge
A vida avia
A vida arrebenta
A vida aguenta
A vida, espia:
Cinquenta.lá


Fred Coelho

sábado, 28 de dezembro de 2024

SONHAREI CONTIGO

Fecho os meus olhos
e posso até imaginar você,
deitada ao meu lado
e eu te pedindo "faça devagar"...
Te sufocando com as minhas coxas.
Você com a voz rouca pede pra eu não gritar.
Trêmula, me jogo em seu corpo.
Ainda me recuperando do gozo,
quero também te amar.
Você luta, se esquiva...
Mas não consegue
E em meus lábios deixa escorrer
o melhor do teu prazer.

Fernanda Otoni

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Um poema de Omar Salomão

Britadeira no ombro
Sem camisa
Coberto de poeira
Devagar
Desce a ladeira

Omar Salomão

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Do Cerne

Não me apavora
o que vem de fora.

Mas o que vai por dentro
me devora.

José Irmo Gonring

domingo, 22 de dezembro de 2024

mirabel


você passa e fica
figura contra o sol
colada na retina

de repente quando
você me  ultrapassa
fica a impressão
que se eu piscar o olho
presa você fica

você passa e brilha
farol na minha neblina
quando você passa
seu ectoplasma fica


Chacal

sábado, 21 de dezembro de 2024

PARTO NORMAL

o céu brilha
mas não são as estrelas de alegria
é um avião que parte
levando uma parte de mim
viver assim?
não sei se faz sentido
como partir pra vida
de coração partido?

Jonas Worcman

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Lei da engravidez

— é grave doutor?
— não, é gravidez

fim da vida a dois
...somos três...

Luis Turiba

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Um poema de Raïssa de Goés

Eu cuido de manchinhas na parede. Cuido para que permaneçam mais claras. O sol pode camuflá-las. Queimaria a cor. Voltariam a ser parede. Não. Eu cuido das manchas.

Raïssa de Goés


sábado, 14 de dezembro de 2024

Um poema de Matheus Hotz

o rosto do búfalo perdura entre
os retratos
o bicho é a memória da caça
é a memória do tiro é a memória do rosto
do bicho caçado
um, dois, três a largada
de novo é o dia do búfalo
teu sonho de homem
já não gosta da presa
mais do que gosta da caça

Matheus Hotz

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

cão

como se o cão
como tudo o cão
como come até a sombra
come a fome como tudo
e cobre uma cena como
o que está prestes a comer
como um cão qualquer

Gustavo Nagib

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Prezado cidadão


colabore com a Lei.
colabore com a Light.
mantenha luz própria.


Chacal

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

inutensílios praga do pragma

poesia é inútil? sim,
como o amor, como o latim,
a esperança e o esperanto.
e tão necessária quanto.

Cairo de Assis Trindade

sábado, 7 de dezembro de 2024

Canção, um poema de Sergio Cohn

tanto passou
tanta paisagem

agora só sei
por terceiros

vez por outra
você rompe

e recomeça
o mesmo

espero que
ou

Sergio Cohn

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Nomes

Riscos lentos se fazem necessário
Nas fraudes dos meus olhos
Lista com os dedos já feridos
As feridas que te cobrem
Agulhas encravadas em minha íris
Fermentam lágrimas de amônia
Longe de serem anônimas
Nomes

Marilene Vieira

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Golpes

Golpes delicados
peles arranhadas
vísceras comprimidas
mãos aflitas
se esforçam no crime perfeito.

Ligeiros sorrisos
infinito desdém
coração doendo
vingança chegando
voz amada e inimiga
dizendo
— vem!

Sergio Barcellos

sábado, 30 de novembro de 2024

mania

roer as unhas morder os lábios
beliscar os pulsos se você não ligar

estar sempre eu contra mim mesma

mas para não matar não morrer
preferir as palavras
com seus cumes prazeres
enigmas

Marcella Mahara

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

e as couves


e as couves de bruxelas?
quem
— a não ser eu —
ouve elas?

ninguelas
ninguelas


Chacal

deixa pra lá


sabe essas unhas do pé
que a gente tira com a mão
pra ficar brincando? pois é,
naquela loucura toda
perdi a que mais gostava


Chacal

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Preguiça

E assim me pego
replicando bocejos,
adiando concretas experiências,
anestesiando existências.
O tempo passa em slow motion
nessa tarde vazia e sem nome.

Waldecy Pereira

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Mercadoria

Metal banido pelos céus
As notas indigestas
se estampam nas vitrines
subindo e descendo
na corda-bamba
Olhos se seduzem
pela mercadoria
em fatias de ilusão
O mendigo, alheio a tudo
esculpe sua face no céu.

Alexandra Vieira de Almeida

sábado, 23 de novembro de 2024

roubo morno

é que o fogo
do isqueiro
dos outros
é sempre mais
caloroso

Lucas Viriato

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Músculo

[...] 

tua predileção por grão-de-bico e Di dançando
porque finalmente há ritmo. Se nós não morremos
de tédio
é porque existe o fluxo das fragatas
e se Deus
não for o fluxo das fragatas
eu não sei o que mais poderia
ser.

Catarina Lins 

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Um poema de Reynaldo Bessa

o silêncio
do meu irmão
doía mais
que as pancadas
do meu pai

Reynaldo Bessa

sábado, 16 de novembro de 2024

O primeiro dia

vendavais de amplictil
acalmam o silêncio

etílicos deitados
bebendo seu gardenal

o cérebro sufocado
a química cerebral

antenas recebendo
doses de fenergan

masturbam-se velas
pílulas bailarinas

a noite flutua
horrenda tarde

aqui a dentadura
me fala sombras

Rodrigo de Souza Leão

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Um poema de Daniel Rolim Rocha

gosto de conversas dosadas

por isso, quando vou falar com você,

tomo três doses de tequila

com sal e limão na borda da língua.

Daniel Rolim Rocha

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Drama familiar


mais um berro histérico
e mato um


Chacal

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Andorinhas

Têm chovido andorinhas
umas mortas, muitas vivas
Têm caído segredos do céu
algumas facas, muitos vidros
Mas nenhum me conta mais
minha dor voou para longe
deixou aqui andorinhas
várias, porque é verão

Raphaela Ramos

sábado, 9 de novembro de 2024

ZULMIRA, 2013

Mesas,
cadeiras.

Ninguém.

Manuel de Freitas

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Um poema de João Paulo Gonçalves

Insisto
no rastro de quem tempos atrás
passou pela minha vida. Chego
perto apenas da sombra do abajur.

João Paulo Gonçalves

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Um poema de Jonas Worcman

Não tem escolta
Anda sozinha
Minha revolta

Jonas Worcman

sábado, 2 de novembro de 2024

Um poema de Yassu Noguchi

in your eyes
encontrei motivos
pras contas de luz, água e gás

Yassu Noguchi

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

tragédia doméstica — 1º ato

— tô ficando maluco!
digo com ar grave de quem enxerga luz
no escuro

ela me encara e bebe suco

Caio Carmacho

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

bem-vinda


ressarcir
engendrar

a toda hora
em todo lugar
nasce uma palavra

— bem-vinda!

quando perderes o sentido
esvoaça daqui
descansa em paz


Chacal

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Crepuscular


Ainda poder
escutar a Musa,
embora já imerso
na sombra difusa

que vai se adensando
para se fazer
uma treva de
nunca amanhecer.

Ainda poder
Chegar à extrema
duração do dia
na voz de um poema,

mesmo humilde, apenas
suspiro da Musa
num adeus à beira
da noite difusa.


Ruy Espinheira Filho

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Som

Gosto de ouvir
o som dos seus dentes rangendo
quando sobre mim e junto a mim
procura a explosão do gozo.

Rosilene Jorge dos Ramos

domingo, 27 de outubro de 2024

Roda


Enrubesci.
Peguei a raiva
e rodei o mundo
que cabia debaixo da minha saia.

Ela virou pó,
Eu — movimento


Jade Prata

sábado, 26 de outubro de 2024

Um poema de Bruna Escaleira

sexualidade
ou imensidão

no oceano da pele
nado em águas livres

Bruna Escaleira

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Um poema de Ana Chiara

Beija-flor parado
Tremor de asas
Também viaja
Suga alegria
Por deslocamentos mínimos

Ana Chiara

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Operando a manhã


Um saco pleno de gemas,
algo assim como um câncer luminoso,
E um bisturi afia a ponta da sua lâmina sobre a fina pele.

Repente
Amarelo!

Não é preciso nenhum galo
Para anunciar o amanhecer.


Lucas Matos

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Miramar


Pôr-do-sol em Miramar.
A faixa de areia é ampla, branca.
As mulheres indianas, floridas, coloridas.
O mar aquietado do sul, azul.
O sol que encosta no espelho, vermelho.
Momentos para serem lembrados, dourados.

Miramar.
Sem trocadilhos, sem referências.
Somente o sol se pondo na praia


Lucas Viriato

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Bumerangue

As palavras,
lancei-as
ao mundo.

O vento,
agressivo,
trouxe-as
de volta.

Me golpearam!

Bianka de Andrade

domingo, 20 de outubro de 2024

Naná


silêncio das estrelas
fumaça branca
que atravessa o céu
fumaça d'água
que jorra forte de dentro do estreito de uma pedra

sopro divino do céu
duas estrelas
me miram
como dois olhos
sinto a presença dela
meu coração se inunda
e transborda
pelos meus olhos embaçados
fumaça que escorre pelo canto da minha face


Mônica B. Alvim



sábado, 19 de outubro de 2024

Trinta e nove no ibope

O playground no jardim.
A menina no jardim.
Seu corpo não brinca no playground.

Israel Antonini

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Elemento


Palavra nenhuma existe.
Existem o fogo, a pedra, a água, o ar.
E a dor, dissimulada no verso.


Paloma Roriz

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

CASO HOUVESSE OUTRA SAÍDA

faria bom uso da garganta
usaria bem o que foi violado

Natasha Felix

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Lucidez


Estou perdendo a visão, mas não estou perdendo você. Tenho sua aliança junto à minha, lado a lado, em meu dedo. Com isso sinto que o nosso amor está cada vez mais vivo. E assim será até a hora do nosso reencontro, quando estaremos juntos para sempre. Em breve, na eternidade.


Marina V. Medeiros

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Um poema de Nadiá Paulo Ferreira


Gotas rubras
no vértice
do meu corpo

Sou vaga sísmica
entre mulheres azuis

Onde o nada me espreita
espedaço-me flamejante
na imensidão da areia branca


 Nadiá Paulo Ferreira

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Colapso

não restou nem poeira
da rotina de folhas e caminhadas

necessidade não é fraqueza
necessidade é necessidade

não sei o que dá mais medo
encontrar algo
ou não encontrar nada

Mauro Santa Cecília

domingo, 13 de outubro de 2024

Vento vadio


ás  vezes vem um vento
e levanta a aba do pensamento
jogando meu chapéu
pra lá da possibilidade.


Chacal

sábado, 12 de outubro de 2024

AMANHÃ

dorme agora
que amanhã
vamos embora
de nós mesmos

Tiago Rattes de Andrade

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Azul mar


Sinto muita saudade
de você, tem dias que eu sinto
que sou ilha perdida
no meio de tanto mar
como fui me separar?
de um continente tão forte
deixei pra trás
muita terra segura
passei por tempestades
tormentas, chuvas imensas
e agora uma calmaria
em que paro tudo
e observo do mirante
o oceano, atlântico,
pacífico, gigante


Rafael Magalhães

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

COLOMBO

O pinto
se sai do ovo
pode achar
um mundo novo?

Graça Rios

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Fênix

Como fênix renasço
voo alto no céu
compartilho da chama
que se forma canção
música vibra na alma
o milagre da transmutação


Marcela Sperandio

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Se livrando das pulgas sem pesticidas


No meu ouvido
Entrou uma pulga
Narrando a rota de fuga
Convenceu a mente que julga
E isso quase me derruba
Deus que me acuda, me dê arruda
Pra esse perigo
Quase que eu me torno
Meu pior inimigo
Mas não, sou meu melhor amigo
E digo:
Não embarque nessa viagem
Tendo o medo como bagagem!


Jonas Samaúma

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

descrição alguma

essa escritura calada
essa tamanha bebedeira
esse arrependimento de matar
essa falta de assunto
essa vontade finita
de sair daqui

André Monteiro

domingo, 6 de outubro de 2024

O amor mudou-se


Agora possuo uma mancha escura
As praças já não possuem os portões abertos de quando cheguei aqui
O amor mudou-se
A estrada de ferro eu abandonei
As fotografias que tirei na Central do Brasil
Foram arquivadas para chorar depois
Eu vesti a roupa devida
Mas não disse a palavra certa


Marilene Vieira

sábado, 5 de outubro de 2024

Fogo

Uma fogueira
De amor
De amizade
Paz de aprender.

Alice Jobim

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Um poema de Lorena Martins


a noite no sofá
é pele
cascata
que não alcança
a janela.

as tardes
se trancafiam
nos cantos da sala:

desperto
meu bonde abandono
a mão no parapeito
e minha garganta

que voa.


Lorena Martins

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Yôga

De pé.
Tire um pé do chão.
Agora o outro.

Lucas Viriato


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Às vezes , ócio

 
às vezes choro,
pois no choro lavo a alma.

ás vezes, oro,
pois a fé me acalma.

às vezes, calmo,
em profundo silêncio,
não preciso falar a vivalma,
apenas viver meu ócio.


Giovani Miguez

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Um poema de Paulo D'Auria

Feito um menino que levantasse a lona do circo,
espiava debaixo da linha do horizonte.
Aprendeu a dar risada do destino.

Paulo D'Auria


segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Vilarejo

Pessoas apenas passam
Assim como os ventos
No vilarejo
Do esquecimento

Arnoldo Pimentel

domingo, 29 de setembro de 2024

Vozes do cerrado

brasília, brasília,
onde estás
que não respondes?!

em que bloco,
em que superquadra
tu te escondes?!

Nicolas Behr

sábado, 28 de setembro de 2024

Fósforo

Breve pedaço de madeira,
em atrito contra a superfície áspera,
dura, impassível.
Não ceder, mas romper-se, incandescente.
O fogo, o lume,
que súbito se apaga.

Paloma Roriz

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A DANÇA DOS TEMPOS POSSÍVEIS

O passado não dorme
nem jazz.

Recusa a quietude
da memória
mas sem me chamar
para dançar.

Gira mudo e sozinho, sozinho,
entrecruzando meus caminhos
presentes, lançando ao ar
o perfume em torvelinho
de passados outros, e presentes, e futuros
que poderiam ser, e ter sido, e contudo...

Thássio Ferreira

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Um poema de Danilo Diógenes

[...]

digamos
que todo poema
é aquilo que sobra
de uma pessoa;
almoçar, então, ao lado deste poema
é almoçar ao lado de qualquer pessoa
é construir as rampas que nos guiam para o alto
e as escadas que nos levam para baixo

Danilo Diógenes


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Shopping Trem Tudo


Ilustres passageiros,
Chegou o passatempo
para a sua viagem!
Pastilha de eucalipto
Cura sua garganta e
Refresca o seu hálito
Uma é vinte, "seis é real".
Pilha, esponja, "super bond"
Barra de cereal.
Isqueiros, calculadoras
Dois "cotonete" é real.
Bananada é dez.
Paçoquita é dez. 
A SALVAÇÃO É JESUS!
Dois amendoins é cinquenta
Laranja com acerola é cinquenta
Dez tempero é real
Cinco batom é real
"PRÓXIMA PARADA: ESTAÇÃO DE SÃO CRISTÓVÃO.
DESEMBARQUEM PELO LADO ESQUERDO".
A SALVAÇÃO É JESUS!
Novalgina é real
Dipirona é real
Sabão pra piolho é real
Skol lata é real 
SÓ JESUS PODE SALVÁ-LO DESSE MUNDO DE PECADO.
"Salvou-o O RHUM CREOSOTADO".

Solange Valeriano Pinto

terça-feira, 24 de setembro de 2024

poesia

a minha poesia é lírica

tem a beleza bucólica
do voo de uma andorinha

tem o latido melancólico
de um cachorro campestre

tem a solidão jururu
de uma galinha ciscando

mas o que ela queria mesmo
era ter...

a força do tigre
a astúcia do coiote
a agilidade do jaguar
e o mistério do morcego

Jovino Machado

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

"shakespeare"

se nós escrevêssemos
tudo o que sentíssemos
estaríamos sempre sós
e para sempre ocupados
porém não tão infelizes.

Leonardo Marona

domingo, 22 de setembro de 2024

DESPEDIDA

Quando eu morrer,
filhinho, não se
esqueça de colocar água
com açúcar no potinho.
Te visitarei disfarçado
de beija-flor.

Daniel Viana

sábado, 21 de setembro de 2024

AUTREMENT

ecos do dia
num caleidoscópio
movem-se lentas larvas
entre palavras e coisas

In other words:
ninguém sonha em prosa.

Patrícia Lavelle

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

easy come easy go

me despedaço
esta manhã 

              será que alguém escutou?

Pedro Tostes

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Um poema de Nicolas Behr

o poema
é área pública
invadida
pela imaginação

Nicolas Behr

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

CADA VEZ MAIS

com o tempo
minhas dúvidas se tornam
pétalas.

Beatriz Bastos

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Viento ligero

Un viento de recuerdos
atravesó mis sueños,
ha traído su olor
rojo, sin dueños.

Mi dejarte
sola, embarazada
de calidez y libertad.

Jade Prata

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Destino

Eu sou um trem de ferro
Que leva minérios
No coração.

Eu sou um trem de ferro
Que traz histórias
No vagão.

Eu sou um trem de ferro,
Seguindo os trilhos
Da palma da minha mão.

Petrônio Souza Gonçalves

domingo, 15 de setembro de 2024

A LENDA

Pouco se sabe dos Passarinhos Verdes.

Apenas que eles nos procuram
para se alimentar das surpresas.

Pousam em galhos discretos
e se escutam:

— Olha! Um pass...

Voam para longe, felizes por
terem completado seu destino.

Pedro Lago

sábado, 14 de setembro de 2024

PERDEU-SE

dançarina baiana perdeu o rebolado nas areias de copacabana. quem encontrá-lo, é favor devolvê-lo.

muito mais que monetário, ele é de inestimável valor afetivo para sua dona.

mary saravá
7407-0198

Letícia Féres

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

contração do fim de um mundo

No opositor me encontro,
encontro eu, você e a fera.

No opositor me escondo,
escondo eu, você e a fera.

No opositor penso que penso,
mas na verdade é fera, fera e fera.

Luiz Fernando Priamo

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Hemingway e os lugares seus


Gabriel García Márquez diz em sua crônica “Meu Hemingway Pessoal” de 1981 - fácil de encontrar online - que só teve a oportunidade de ver Hemingway uma única vez, este já Nobel e nos finalmentes desta existência. Foi em Paris quando ainda não era o Gabo Nobel de Literatura.

Gabriel traz neste texto, dentre outras coisas, a ideia de que todos os instantes vividos por Hemingway, continuaram a lhe pertencer para sempre porque ele tinha um “inexorável poder de apropriação”, ou seja, que ele tinha a capacidade de tomar posse de certos lugares simplesmente por frequentá-los e mencioná-los em seus textos, pela força da sua passagem por eles. Deixava sua marca.

No entanto, essa ideia contradiz uma das minhas passagens favoritas do próprio Gabo no livro “Doze Contos Peregrinos” de 1992, um dos meus favoritos. No texto, ele diz que, inevitavelmente, depois de um tempo os lugares que haviam sido seus e sustentavam suas nostalgias eram outros e alheios. Gabo, 10 anos após o 1º texto, acha que até Hemingway está sujeito a isso.

Pensei nisso enquanto andava pelas ruas de Havana e fui aos bares que Hemingway mais frequentava na cidade quando morava em Cuba. Os famosos “Bodeguita del Medio” e “La Floridita”, onde ele gostava de tomar mojito e daiquiri, respectivamente, bares estes que foram também visitados por Gabo. Atualmente as biroscas não são mais biroscas e estão lotadas de turistas, grupos tocando “Guantanamera” e Buena Vista Social Club, cobrando preços acima da média nos drinks e celulares tirando fotos de tudo (o meu também, assumo).

E talvez esses lugares não sejam mais de Hemingway mesmo. Mas é realmente maravilhoso pensar no que ele fazia por ali enquanto tomava todas e fumava um charuto Cohiba, quais ideias teve, que contos iniciou e quantos rasgou naquelas mesas. Pensei nisso e acredito que, no final das contas, prefiro pensar como o Gabo mais novo, que talvez fosse menos amargo:
“Na realidade, Hemingway continua a estar onde menos se imagina 20 anos depois de morto, tão persistente e ao mesmo tempo tão fugaz como naquela manhã, que talvez fosse de maio, em q me disse adeus, amigo, da outra calçada do boulevard Saint-Michel.”

Afinal, como disse Hemingway: “o homem não foi feito para a derrota, pode ser destruído, mas não derrotado".


Eduardo Moraes