domingo, 14 de dezembro de 2008

Canto XXIII da Odisséia traduzido e comentado por Rafael Huguenin

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Make it new
Pound
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E para cima foi a velha gargalhando
à senhora dizendo que o esposo voltou.
E os joelhos rangeram, pés pularam rápidos.
E postou-se-lhe então sobre a cabeça e disse:
“Ergue-te, filha amada Penélope, e veja
cos olhos teus as coisas que tu tanto ansiavas.
Pois Ulisses voltou, que há muito se perdeu.
E matou pretendentes que toda tua casa
e tuas posses comiam oprimindo-te o filho.”
Respondeu novamente Prudente Penélope:
“Ama, numes puseram-te louca, eles podem
tanto destemperado fazer o que é são
como sóbrio fazer o que tem pouca têmpera.
Decerto te enlouquecem, ama outrora sã.
Zombas-me, eu que tenho alma em polipesar
falando estas tolices e assim me acordando
do sono que meus olhos ata e brando enleva-me,
sono bom que eu não durmo desque ele se foi
para o Tróiço maldito que o nome não ouso.
Mas Eia! Vai-te agora e encerre-se no quarto,
pois se outra das escravas dentre as muitas minhas
vem aqui e falando tais coisas me acorda,
curta e grossa no quarto a poria em castigo,
mas disso com certeza a velhice te salva.”
Respondeu novamente Ama Amada Euricléia:
“Não zombo-te, querida, mas digo em verdade
Pois Ulisses voltou, em verdade declaro,
o estrangeiro, que muitos na sala insultavam.
E Telêmaco apenas há muito sabia
mas astuto ocultou os planos do seu pai
a fim de que aos varões cobrasse pelo crime.”

Odisséia, Canto XXIII - Versos 1 ao 31



Comentários

Nossa humilde tentativa, antes de tudo um esforço de um apaixonado pela poesia pouco afeito aos rigores que o estudo das línguas clássicas exige, é fruto de um estudo que realizamos acerca da poesia oral grega e da tradução de algumas partes da Odisséia. A transcriação que ora apresentamos, em versos alexandrinos, constitui apenas uma dentre as inúmeras possibilidades de invenção poética que o texto grego oferece aos poetas de língua portuguesa. Entre a condensação máxima da tradução decassilábica obtida por Odorico Mendes, que o obrigou a pular versos e a criar uma série de neologismos e novos arranjos sintáticos, e a tentativa de Carlos Alberto Nunes de buscar um metro equivalente ao hexâmetro grego, que, a despeito da fidelidade em número de sílabas ao original, não constitui um metro típico da poesia de língua portuguesa, optamos pelo verso de doze sílabas, o metro regular mais largo de nossa tradição.

A parataxe, isto é, relações coordenadas, é uma característica fundamental da poesia oral e, segundo alguns, da própria mentalidade de uma cultura de oralidade primária. A maioria das traduções contemporâneas de textos arcaicos tende a projetar sobre o texto antigo critérios discursivos que não se aplicam devidamente ao contexto da época. É mais cômodo ao ouvido moderno estruturar os enunciados de forma hipotática, isto é, estabelecendo relações subordinadas/lógicas entre eles, do que tentar ouvir o texto em toda a sua estranheza originária. No entanto, nossos critérios lógicos não se aplicam, de forma alguma, a um texto composto provavelmente por volta de 800 a. C. Sendo assim, tentaremos utilizar, sempre que possível, relações coordenadas.

Verso 7 – A parte inicial deste verso, êlth' Odyseùs kaì oîkon ikánetai, é repetida mais adiante no verso 27, o que caracteriza a utilização de uma fórmula, recurso típico da poesia oral. Cerca de um terço da Ilíada e da Odisséia é constituído por repetições, ipsis litteris, seja de versos inteiros, seja de partes menores de versos, chamadas fórmulas. O poeta homérico possuía um vasto repertório de expressões formalizadas, que ele utilizava em contextos métricos específicos, de modo a facilitar a improvisação. Qualquer semelhança com o nosso repentista não é mera coincidência.

Verso 10 – A parte inicial deste verso (tên d'aûte proséeipe) é repetida adiante, no verso 25, o que constitui outra utilização de fórmula. Traduzimos a expressão perífrôn Pênelópeia por Prudente Penélope, grafando com maiúscula o adjetivo de modo a caracterizar melhor o conjunto nome-epíteto, o tipo de fórmula mais comum nos poemas homéricos. Caso contrário, correríamos o risco de sugerir, na tradução, algum tipo de uso adverbial, certamente inapropriado.

Versos 12-13 – Os dois versos constituem um paralelismo, recurso largamente utilizado na poesia homérica e na poesia oral de modo geral. Fizemos uma tentativa de reproduzir, ainda que de forma provisória e um tanto arbitrária, a aliteração sugerida pelo emprego de quatro palavras com a mesma raiz: áphrona (acusativo singular de a-phrôn, palavra composta de um alfa privativo mais a raiz phrên, que pode ser traduzida, literalmente, por sem-entranha, mas também por demente, sem juízo, tolo, etc.), epíphrona (acusativo singular de epí-phrôn, que pode ser traduzido por pensador ou prudente), chaliphronéonta (particípio ativo acusativo singular do verbo chaliphronéô, composto por chaláô, que significa perder, mais a raiz phrên. Pode ser traduzido, literalmente, por que perde entranha ou perdendo entranha). E, por fim, saophrosynês (genitivo singular da forma poética de sôphrosýnê, palavra composta por sôs, que significa seguro, saudável, e phrên. Pode ser traduzida por temperança.) Um dos modos possíveis para manter a mesma raiz nas quatro palavras é utilizar os termos destemperado, têmpera, intemperante e temperança.

Verso 14 – Nossa opção (boas têmperas) para a expressão phrénas aisímê, que pode ser traduzida, literalmente, por entranhas corretas, soa esquisito em português. Tem obviamente o sentido de ter juízo, segundo o léxico Liddell & Scott. Isso explica-se pelo fato de que os gregos situavam nas entranhas, phrénes, o centro de atividades intelectuais, emotivas e intencionais. Phrên é equivalente ao termo latino praecordia, que pode ser traduzido por diafragma, coração, peito, vísceras, sentimento, etc.

Verso 15 – Polipesararosa, isto é, cheia de pesares, é nossa solução para polypenthéa, acusativo singular de poly-penthês, palavra composta de polýs (muito) mais pénthos (pesar). Acreditamos que o português é rico o bastante para traduzir qualquer expressão grega. O que falta é um pouco de esforço, e alguns quilômetros a mais de leitura dos nossos quinhentistas.


Rafael Huguenin é aluno do mestrado em Filosofia na PUC-Rio e, segundo ele mesmo, para sua desgraça, também é poeta e tradutor. Além disso, ainda acaba de terminar uma outra graduação em Letras (Português-Grego), na UFF.

Já publicou dois poemas no Plástico Bolha e, dessa vez, enviou essa belíssima tradução (ou transcriação) em versos alexandrinos do canto 23 da Odisséia, de Homero, seguida de alguns comentários.

Neste breve texto, podemos ver o quanto nosso amigo domina o assunto e o quão fascinante é a dedicação de algumas pessoas pelos textos clássicos. Sempre admirei muito pessoas que passam horas de suas vidas em frente à Ilíadas, Odisséias, Bhagavad Gitas ou Bíblias, destrinchando termos, analisando escolhas, chegando um pouquinho mais perto de outros tempos, de civilizações que já não estão mais por aqui. Esse tipo de estudo, que cruza os séculos, faz parecer que os 20 anos de espera de Penélope nem são tanto tempo assim.

Viva Junito Brandão e todos aqueles que usam o passado para nos fazer entender o presente e construir o futuro.

2 comentários:

Anônimo disse...

alegra-te Penélope:
Teu homem voltou!

Anônimo disse...

Bacana a tradução! Ficou com um ritmo legal...