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Quando se observa a vida de cada indivíduo,
de modo geral, destacando apenas seus traços
mais significativos, percebe-se que ela não
passa de uma tragédia; porém, se examinada
em seus detalhes, tem o caráter da comédia.
Arthur Schopenhauer
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Você sai do trabalho com o corpo dolorido, mas não sente a mínima vontade de ir para casa. Como todos os dias, você resolve ficar um tempo a mais na rua, ignorando os apelos de seus músculos e ossos que clamam por descanso. Você sabe que já está velho e não deveria travar esta batalha contra o seu organismo, mas o faz mesmo assim. Faz de tudo para não ter que retornar ao inferno que um dia foi chamado de lar. Mas, ultimamente, o que não tem sido um inferno para você?
Você senta num bar, mas não tem sede nem fome. Você pensa na sua casa, no seu emprego, na sua família, mas só distingue lugares e rostos estranhos. Lugares e rostos que ainda há pouco tempo você enxergava com afeto. Agora tornaram-se todos cinzentos, descoloridos. Como a sua vida. O jogo está para terminar. A derrota é inevitável. Você percebe, a cada segundo, o efeito do tempo que te destroça sem qualquer piedade. Logo não restará qualquer vestígio físico nem lembrança sua. Você deseja apenas que aconteça rápido e não cause uma dor ainda maior do que essa que te assola agora. Você aprendeu a desejar pouco. Você só queria viver a sua velhice em paz. Paz? Que grande piada! Você sabe que a paz não existe. A vida é um eterno estado de guerra. Os inimigos estão em toda parte, sempre à espreita. Você é capaz de percebê-los pela respiração e tem certeza de que eles também identificam a sua. Eles se multiplicam como protozoários, a cada instante surgem milhares. Mas... você nunca quis fazer inimigos. Não importa. Se você não os fizer, eles se fazem mesmo assim.
Você se recorda da época em que foi jovem. Existiam os ideais, as certezas, a esperança e o amor. Ilusões. Antes elas do que o agora, esse simulacro de existência, embrutecida e acinzentada, que você há pouco chamava de vida. Você não é mais o mesmo. Mas não foi só você que se transformou. As outras pessoas também. Não são mais as mesmas. Elas te olham diferente, agem de maneira estranha. Por quê? O que pode ter acontecido a elas? E a você? E a mulher que um dia você amou e que, de repente, cedeu lugar a uma estranha, disforme e insuportável? E os seus filhos, que, a cada dia, vão se tornando mais estranhos, agressivos e, sobretudo, mais feios?
Nesse exato momento, sentado num bar no meio da rua, você já não consegue reconhecer ninguém, nem mesmo a si próprio. Quando você pára em frente ao espelho não enxerga mais do que um espectro. Perfeita cópia da realidade. Há tempos você era. O quê? Será que você, de fato, já foi algo em algum momento?
Você procura motivos e só encontra malogros. Mas foi tão repentino. Era tudo de um jeito e, de repente, tornou-se diferente. Onde está a beleza? Sumiu dos seus olhos, como num passe de mágica. Negra. O horizonte já não existe. Tiraram tudo de você. Até mesmo a dignidade. A sua existência, o simples fato de respirar, converteu-se em bruto, monolítico, desespero. Mas nem sempre foi assim. Ou será que foi e você não percebeu?
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O que te incomoda? Será a falta de sentido? Mas já houve um dia algum sentido? Será que só você não o compreendeu? Ou o sentido, como tudo o mais, não passa de criação? Será você apenas mais uma criação? É quase certo. Mas quem será o criador? Alguém que cria para se divertir? Alguém que se diverte à custa dos teus infortúnios? Olha para cima e busca esse manipulador de marionetes, esse histrião perverso. Corta esse fio que te prende. Mas onde está o fio? Você já o busca há muito tempo. Em vão.
Você sente falta da verdade. Onde foi parar a maldita verdade? É provável que não esteja ao seu alcance, pois você não seria capaz de suportá-la. Aquela outra era mentira. Mas se tudo é mentira, deve haver algum grande mentiroso por trás. Você ainda não o conhece de verdade, o que não impede que ele conheça você.
Mesmo sabendo que seus apelos jamais voltarão a ser atendidos, você ainda insiste em clamar por justiça. Que justiça? O que significa isso? Apenas um conceito vago, assim como você e sua vida. Absurdo. Você vive para ele. É o motor que te anima e te condena. Nada parece real, apenas a dor. A dor que, nesse exato momento, trespassa todos os seus músculos e ossos. Você clama ao vácuo para que ela cesse. Não deseja mais do que isso. Quando a maldita dor acaba? Se acabar, decerto, acaba junto com a brincadeira. Mas que brincadeira? Para você a brincadeira já terminou. Há muito tempo. Porém, alguém, em algum lugar, ainda continua brincando. Alguém que faz você de palhaço. Alguém que faz de tudo para se divertir. Será que é apenas você o alvo dessa brincadeira?
Você continua sentado no mesmo lugar, imóvel, numa cadeira encardida de um botequim infecto. Você enxerga demais. Mesmo com os olhos fechados. O mesmo de sempre. Chega! Você não suporta mais. Você deseja a escuridão.
Você observa, indignado, a vida que brota de todos os cantos e não cessa de proliferar. Para quê tanta vida? E que vida é essa? Apenas transição e sofrimento. E a dor segue aumentando. Um garoto. Você vê um garoto. Ou garota? Um sorriso. Para você. Um anjo? Não há sorriso. Apenas escárnio. Você virou motivo de galhofa. Inimigos. São todos seus inimigos. Você nunca quis fazê-los. Eles que declararam guerra a você. Manipulados. Como você. Tudo por diversão. Você precisa reagir.
Você levanta da cadeira e se dirige à criança. A dor é insurpotável. Um estalo. Em instantes você se vê rodeado por uma pequena poça de líquido escarlate que escorre em direção à beira da calçada. O riso parou. Acabou a brincadeira? Ou é só por enquanto?
Silêncio. Mas não por muito tempo. Logo, você começa a distinguir alguns ruídos, que não são exatamente os habituais. Um risinho, a princípio discreto, vai, aos poucos, aumentando de volume, até se tornar ensurdecedor. A ele, junta-se outro, ainda mais potente e terrível. Agora já são muitos. Uma sinfonia de risos. Tão desafinada quanto diabólica. Sua cabeça está prestes a explodir, mas ninguém parece interessado em atenuar o seu sofrimento, pelo contrário. Continuam rindo de você. Por que fazem isso? Você só queria paz. Mas quem é você para querer alguma coisa?
Você está cercado por uma multidão. Estranhos. Todos estranhos. Seus inimigos. Uma matilha de bestas sanguinárias aguardando apenas o momento ideal para o bote. Você não tem outra saída senão se antecipar. Mas há a dor que te impede. Essa maldita dor. Não importa. Você deve superar a dor! Você deve superar tudo! Ataque! É necessário se defender!
Consciente do perigo, você ataca com ferocidade, como um animal acuado. Apesar de tudo, você ainda é um guerreiro bravo e não vai se entregar tão facilmente. Mas eles são muitos. Parecem milhares. E possuem uma ferocidade ainda maior do que a sua. Legião. Emissários do teu único e real inimigo. Uma massa disforme de braços, pernas, troncos e cabeças se amontoa sobre você sem lhe conceder qualquer possibilidade de reação. E o coro de gargalhadas continua, cada vez mais ensurdecedor. É impossível resistir. Você sabe que nunca será páreo para eles. A dor aumenta ainda mais. Será possível? Dor! Dor! Dor! Lanças afiadas perfurando cada milímetro do seu velho e cansado corpo.
Aos poucos, tudo vai ficando escuro. Você não enxerga, não sente mais nada. A dor cessou. O fio de consciência que ainda se manifesta não tardará a te abandonar. Dentro de poucos instantes, graças, tudo estará acabado.
Todas as luzes já se apagaram, todos os risos já silenciaram e você está, enfim, contente, aguardando a redentora comunhão com o nada. Você não faz idéia da grande surpresa que te foi reservada e reage com assombro no momento em que o maior dos risos se revela. Um riso que você nunca tinha ouvido antes. Mais terrível do que a soma de todos os risos anteriores. Um riso que permanece. Como num sonho mau. Certamente é um aviso. Um aviso dele. Daquele que te criou. Que te manipula e te faz sofrer. Apenas para se divertir. Ainda não é o fim da linha para você. O fio não foi cortado. E nunca será. A brincadeira está apenas começando. A dor é...
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Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta
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Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta conseguiu o 3º lugar na categoria prosa e é o primeiro dos vencedores do Prêmio Paulo Britto publicado no Blog do Bolha.
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