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Se alguém pudesse ver tudo que eu penso provavelmente não acreditaria. É um parque de diversões sem bilhete pra entrar, e assim fica lotado. Eu sou mais fraco que eu. Minha fragilidade se abre para um mundo que pouco conheço; escrevo para conhecê-lo melhor. Ao fim de cada frase agradeço como no fim de uma oração.
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Na minha fragilidade o mundo entra em mim e é uma avalanche. Morrer seria desperdício. Sou a bola de neve que cresce quase que ao infinito e fica mais forte. Despenco pelas ladeiras. Viver me acumula tanto.
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Queria dizer que escrever é como tirar leite de vaca. É a alma nua ajoelhada diante daquele animal sagrado e o cumprimento do ritual: espremer, puxar. Limito-me a um balde a cada dois dias.
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Há certos dias que parecem uma anunciação. É assim: você levanta da cama e lembra de novo dos raios de sol. Escrever é colher esses raios de sol em dias de anunciação: inventa-se mundos. Aprecio as tatuagens, embora com uma certa distância. Mas é que queria ir escrevendo minha história em meu próprio corpo. Palavras escritas na carne. Palavra-corpo. O horizonte amarelo que esmaece vermelho no fim de tarde.
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As palavras formam jogos complicados em minha mente. Barulho de cartas espalhadas. Minha recusa em agir é um tanto consciente e irreal. É o portão que se fecha segundos antes do carro chegar e a frustração. O vaivém do balanço naquele fim de tarde.
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Tudo o que escrevo são jatos de tinta na parede e não há ninguém com um pincel para alisá-los. São meus esforços incompletos que se estiram pelo chão gritando. Sinfonia. A lâmpada e dentro dela um inseto morto há algum tempo (já o havia visto antes). Estala e incandesce: viver e suas surpresas dentro.
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Não saber sobre o que escrever já se tornou constância. A parede lisa e os borrões de tinta. Total que – não achei expressão semelhante em português a esta em espanhol que parece trazer tudo a um clímax e encerrar um resumo – total que já não sei. Sinfonia, não – rapsódia.
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Por isso escrevo mundos e escrevo vida e vivo. Vivo porque escrevo – o absurdo. O clique do gatilho prestes a explodir e o clique das teclas uma após a outra em ritmo descompassado. I’ve never loved nobody fully, always one foot on the ground. Custa escrever a palavra amor. A-mor. É que lembra morte. Amar é morrer-escrever, talvez. O teclado encharcado de lágrimas.
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Se escrever é só metaforizar então melhor parar (bem como parar de rimar ar com ar). Amor, a morte, a continuação. Escrever é também citar, às vezes. Já duas em apenas dois parágrafos. E o coração cheio de pulsação por vida mas a incapacidade. São mil citações de fora, palavras gestos continuações. Continuar vivo parece prescindir o esquecimento das citações. Mas quem sou eu, esse conjunto de citações e um pouco de originalidade? Senão. Escrevo parecido com alguns escritores que admiro. Nada se crea, todo se transforma (mais uma). Eu me transformando em mim.
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Melhor escrever para crianças. A criança em mim. Infância e rancor. Palavras que ficaram contidas. Explosão. A pétala da flor que não conseguiu se abrir e murchou. A lagarta que nunca saiu do casulo e as asas que não ruflaram de par em par.
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A pior das dores é aquela que não é sua. É entrar dentro de um filme e sentir-se personagem. Não quero escrever por identificação. Ser autobiográfico ou não, dane-se, não importa, importa enxergar. Venha ver o pôr-do-sol. Palavras-espelho. Palavras e paisagens e pores-de-sol. Escrevo porque me faltam as palavras e de repente aparecem.
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E o fim do texto. Imaginei que seria um happy end. Escrevo rápido e releio às vezes. Escreviver. Melhor deixar assim em aberto: a possibilidade: pisar no pedal e fixar a nota do piano: a flor que renasce: o reino que está por vir e a esperança: o dia que se chama hoje: meu caminho em direção ao mar
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Miguel Del Castillo, que foi o grande vencedor na categoria Prosa, também conquistou o segundo lugar de Poesia com este Escreviver. Parabéns Miguel!
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