terça-feira, 24 de novembro de 2009

O caçador de sombras — 2º lugar de prosa

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Esgotaram-se os pássaros e seus cantos fiaram-se num silêncio entrecortado por uma brisa vacilante que lamentava de vez em vez as vidas perdidas no campo de batalha. Misturado ao som ritualístico da Morte, abria-se para a platéia de um só espectador uma cortina de cheiro de sangue, que tingia o ar com notícias que chegariam desesperadoras aos ouvidos ansiosos e distantes dali.

Ele andava pelo palco formado por cadáveres e, por mais que seus passos estivessem tão pesados quanto sua cabeça, seguia o roteiro, segurando a respiração e com a espada ainda empunhada na mão. No entanto, a espada tinha sua ponta virada para a terra, desenhando nela, através do sangue de outrem que escorria por sua lâmina, seu próprio caminho. Acompanhavam-no ainda as risadas dos amigos e as carícias da mulher sonhada, que em mais uma noite alentou suas esperanças de um futuro calmo. Assombrações da noite passada, tão vivas e presentes em sua mente que faziam-no não esquecer do que era feita a dor.

Seus passos eram ritmados por uma música de câmara, tocada pelo órgão interno em seu peito, segundo as batidas de seu desespero seco e entalado. Assim foi seguindo, até virar trapo e tombar no chão. A boca ficou cheia de terra e sangue que entravam também pelos seus poros. Isso não mais o incomodava. Por favor, que abaixassem os holofotes agora. Queria morrer na escuridão do último ato e se tornar eterno nas bocas dos jovens atores que viessem depois dele.

A Morte, contudo, não tem dono. Ela vem quando quer e não quando é convocada. Então, vendo-se ainda vivo, abriu os olhos. Ali era o Inferno e em breve o demônio cantaria seu nome. E pode ouvi-lo, numa graça de Ave Maria, que o arrepiou por debaixo de sua armadura, outrora tão brilhante quanto o próprio escudo de Aquiles.

Levantou-se, apoiando-se em sua espada, e seguiu o chamado que mais parecia um choro baixo, quase miado, no meio dos sons da Morte, que lhe estalava a língua como se para seduzi-lo. Revirou alguns corpos, ou eram sacos de farinha trajados de pessoas?, até deparar-se com um homem que vestia o uniforme rasgado do inimigo.

Os olhos do ator coadjuvante, numa emocionante interpretação, estavam voltados para o céu como se por entre as roldanas, cabos de ferro, passadiços e contra-regras, pudesse ver um véu de estrelas cobrindo-lhe o túmulo.

O ator principal, aqui se faz necessária a explicação por questão de créditos e egos, notou que no peito rasgado do homem havia uma ferida feita por sua espada. Há incontáveis dias agora, num tempo perdido no espaço, seu mestre ensinou-lhe a arte de matar e assinar a presa ao mesmo tempo. E, pela primeira vez, ele se arrependeu de ver ali, inegavelmente, a sua marca no último homem vivo.

Caiu de joelhos ante a dor. Sabia matematicamente que o homem morreria, pois era o melhor soldado de seu batalhão e quando empunhava uma espada era para matar. Apesar da situação, teve que congratular o homem por ser bravo e continuar acorrentado a sua vida até o fim. Remorso misturou-se à admiração e inveja, criando uma mélange que o fez segurar forte o cabo de sua espada.

Antes que qualquer ato pudesse ser criado, alongando mais essa cena, seu punho foi agarrado pelo homem com uma força de quem ainda tinha vida e que não se entregaria antes da hora. Reverenciou-se com despeito, afinal era ele o personagem principal.

O homem encarava-o como se o céu estivesse traçado nas linhas de seu rosto. Veio à mente a possibilidade de ter sido reconhecido como o invocador da Morte calada. E essa já vinha cheirando o cangote do homem, bebericando a sua vida em pequenos e saborosos goles, que também iam deixando-o zonzo. Um balbucio vazio, quase bêbado, tentava se equilibrar nos lábios do homem, mas caíram por terra antes de chegarem aos seus ouvidos.

Não demorou muito. Nem para ele notar que em sua mão fora colocado o retrato de uma mulher. Nem para o homem ver Deus em seus olhos e não inspirar mais.

Sob os aplausos surdos de uma platéia fantasma morria o último homem vivo.

Um grito despertou o tempo e sacudiu os pássaros que voltaram a tecer seu luto.
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Enquanto o sol ia se pondo, ele via as marcas de sangue seco em suas mãos transformando-se em negras. Negras como o abismo diante de si, como o cheiro do seu futuro. Fechou os olhos e apertou firme os punhos doloridos e marcados. Quebraria a própria vida com aquele aperto se pudesse, mas a Morte era uma paqueradora que seguia suas próprias regras e, às vezes, parecia partidária apenas do amor platônico. Soltou a própria força sobre si, querendo sentir vida antes de morrer. Suas unhas sujas entravam na sua carne, fazendo-o sangrar, pela primeira vez, seu próprio sangue. Apertou mais a mão e voltou-a para o solo. Seu sangue era uma oferenda à Morte. Doce ou amargo, fosse qual fosse o sabor, que a Morte decidisse dele experimentar agora e o resto que sumisse no turbilhão das horas, engolfado pelos bicos dos críticos abutres que nos céus já desfilavam, ao som de asas tamborins, a sua plumagem de falso luto.
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As estrelas observavam aquela criatura sentada à beira do palco, provavelmente pensando se ele duraria ou não o suficiente para encontrá-la. E eles estavam mais próximos do que qualquer um poderia imaginar. Ela, a mulher por ele sonhada incontáveis vezes, estava ali, com ele, em suas mãos, sorrindo tristemente no retrato dado à outro homem.
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Ele olhou para as estrelas como se tivesse entendido seu sussurro e contemplou o retrato manchado de sangue. A imagem dela queimou seus olhos por um momento. Então ela existia de fato. Não eram sonhos numa imensa cama fria. Ele acariciou o rosto gelado dela. Era sua última visão da vida antes da Morte. Agora seres mortos faziam seu caminho por onde passava, prontos para ajudá-lo a não mais ser. Não poderia nunca mais voltar à sua velha vida, ao seu velho eu de atorzinho desconhecido. Ele também estava morto, apenas seu corpo é que não sabia disso, pois era regularmente possuído por outros que não ele. Não se diria um sobrevivente. Era apenas uma besta vivente caçando sombras, perseguindo a Morte, até ela dele se encantar e resolver entregar-se a ele como a um amante, deixando-se entrelaçarem num explosão definitiva.
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Esperar-se-ia ainda séculos de atos e desatados destinos para que este dia acordasse na memória de um autor. Um grito de esperanças e sonhos quebrantados, começado muitos séculos antes, quando os seres nem nome tinham e o título ainda não era “O Caçador de Sombras”. Por enquanto, não havia mais texto nas páginas do roteiro. Tudo em branco. As luzes deste ato foram apagadas. O palco verteu-se em escuridão. As cortinas foram fechadas e depois retiradas para lavagem. Mesmo assim ainda ouvia uma espécie de ovação ao longe. E o guerreiro, de volta à sua imensa cama fria, com lençóis de áspero cetim cor de sangue e terra, caçava mais uma sombra dentro de si. Esgotaram-se os sonhos com a mulher amada. Estava apenas à espera da Morte, pronto para enlaçar-lhe por entre as pernas e domá-la definitivamente, fazendo-a sua em meio as sombras com as quais ela tanto gostava de lhe provocar. O que pareceu ter acontecido por ínfimos segundos. A Morte chegou perto de dar-se por vencida, mas era apenas um truque para requentar a relação.
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Chamou-lhe o nome para que abrisse os olhos e emergisse de si desembocando num clarão branco que quase o cegou. Foi penetrando nessa branquidão dolorosa, caçando sombras que sobre ele se inclinavam, e pacientemente deixando que as assombrações se transformassem, ganhando os contornos de uma enfermeira a lhe sorrir numa triste alegria, coisa que só boas atrizes eram capazes de fazer. Era um sorriso extremamente fotogênico, notou.
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Chiara di Axox
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Chiara di Axox já publicou diversos textos no jornal Plástico Bolha. O caçador de sombras ficou em segundo lugar na categoria prosa do Prêmio Paulo Britto.
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