quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Pureza: uma alegoria brasileira

.
.
.
Não quero contar minha vida. Ela é tao pequena,
tão sem relevo, que não merece isso. Se escrevo
estas impressões, é mais para tomar o meu tempo.
.
O paraibano José Lins do Rego, sem dúvida um dos mais notórios e importantes escritores brasileiros – muito por escrever do Brasil um íntimo sem rasuras – traz na obra Pureza uma cronologia que remonta o nordeste e a formação coronelista sem ser, em momento algum, alheio a psicologia de seus personagens: coisa que faz como delicada composição neste romance.
.
Seu Lola, ou Lourenço, desde moço cresceu com a morte ao seu lado: muito cedo perde a mãe, em decorrência da tuberculose, e, logo em seguida, a irmã Guiomar - a mesma com a qual se abraçara quando a mãe agonizava no quarto ao lado. O pai, no desespero da vida, imprime-lhe o excessivo cuidado de quem viu a família desmoronar no átimo dos dias. Em seguida morre também, por vias cardíacas: “E desde esse dia meu pai começou a agonizar. Mais de um mês de dispnéia, arriado na cama, vivendo às custas dos remédios de Dr. Marques. Morte terrível. Uma vida comida com todas as dores”. Há ainda Felismina, “boa negra” que lhe acompanha desde os dias da enfermidade da mãe e lhe dá todo o afago e cuidado, muito em razão dos traumas; uma escrava sobre a alforria da confiança tutelar, repleta de esmero e resignação.
.
O início do livro, ou mais precisamente, suas primeiras linhas, são a conversa entre Dr. Marques e Lourenço. Os conselhos médicos lhe indicam ir para um lugar mais calmo, repousar, dando-lhe, mesmo assim, indicações que sua saúde estava de fato regularizada. O temor do jovem Lourenço, rapaz de 24 anos, é ser atacado pela morte em suas fraquezas, muito por ter sido domesticado ao lado das convalesças, o que faz o rapaz migrar para a longínqua e erma Pureza. Seu Lola, de malas prontas, muda-se para uma espaçosa casa na região junto com Felismina, a negra que lhe abastece de cuidados permanentes. A indicação do romance psicológico é, portanto, o que motiva a narrativa, mesmo que essa seja ocupada por imagens do Brasil nordestino repleto de historicidade. A fuga faz mais sentido como a busca de uma tranqüilidade que, pretensamente, não se encontraria nos grandes centros comerciais da época: o descanso enquanto isolamento. A aflição mental que desencadeia o deslocamento para Pureza, logo, o fio condutor da narrativa.
.
Pois é a partir daí que a narrativa se impregna de metáforas. A pureza é como um recanto de pasmaceira onde a vida corre numa alegoria teatral. Poucas pessoas convivendo isoladas em uma pequena cidade nos rumos dos trilhos do trem, trem esse que traz o que é novidade e que também a leva rapidamente, deixando o efêmero e o inédito conectados sobre a mesma forma metálica locomovida pro cima dos trilhos. Entre idas e vindas, uma dimensão de personagens se aflora no contexto, mesmo que esses sejam estáticos, moradores estanques de Pureza: Landislau, o cego pedinte que junta meticulosamente seu dinheiro enquanto toca sua triste rabeca na chegada do trem; Luís, o pobre negrinho que foge do engenho do coronel Zé Joaquim e vai viver sob os afagos de Felismina, até que o coronel vem reclamar o que lhe pertence por intermédio dos seus jagunços; Antônio Cavalcanti, chefe da estação férrea que perde todo seu dinheiro na jogatina pelas redondezas; D. Francisquinha, mulher de Cavalcanti, que vende cafezinhos para os recém-egressos em Pureza, e suas filhas, Margarida, a mais velha, e Maria Paula a mais moça. Ainda há Chico Bembém, o rapaz que trabalha na estação e por fim se torna noivo de Maria Paula. As duas, entretanto, acabam se envolvendo com seu Lola, que, mais a mais se aproveita separadamente da carne de cada uma. Mas é quando Margarida foge de Pureza (o movimento inverso de Lourenço), que ele começa mesmo a se envolver com Maria Paula, mesmo ela noivando-se com o humilde Chico Bembém: “A moça me amava. Da janela da estação ela vivia a comer com os olhos os passageiros, todos os dias, ora com um, ora com outro. E aparecia em Pureza um jovem rico, amante da irmã. Crescera os olhos, me conquistara, fazendo com que eu abandonasse Margarida. Que podia lhe valer Chico Bembém? Acalantei Maria Paula naquela noite e amei-a, fui dela com mais vigor. Aquela fraqueza me tocava, me despertara mais alguma coisa. E vi como ela se animou com as minhas palavras, fortificando-se com os meus carinhos. Aquela me pertencia. Mandava nela com mais segurança que em Felismina”.
.
Tudo, somado, acaba por construir um livro de sutilezas formidáveis. Um esboço do processo histórico nordestino, com um olhar sobre a questão escravagista; uma alegoria do processo coronelista e de políticas trocadas; um retrato do Brasil feito por um autor essencialmente brasileiro que, na maioria dos seus livros, insiste em contar ao seu povo mais a respeito do seu próprio país. E, ainda, uma pungente estruturação psicológica que mostra para além da historicidade de um povo, a fraqueza humana ante o perecível; tudo isso colocado num vilarejo na beirada dos trilhos de um trem, o trem que leva a isolada Pureza.
.
A vocação maior de José Lins do Rego é ser trovador de um Brasil visto do prisma sociológico, de um Brasil nordestino construído pouco a pouco nas chagas de um tempo usurpado. Entretanto não deixa de sê-lo sensível e dar personalidade a sua história, personalidade e personagens que são um retrato do Brasil personificado, descrito e delineado por um escritor que soube narrar com seu texto de um corrimento enxuto a série de complexidades que é e foi à desordenada formação brasileira.
.

Nenhum comentário: