O escritor Antônio Torres, autor 13 obras, entre elas o premiadíssimo Essa terra, esteve na PUC-Rio no início deste mês, quando bateu um papo com o Plástico Bolha. O resultado da conversa é essa entrevista, na qual o autor fala sobre seu estilo, suas referências e o que há de biográfico em sua obra. Tudo com muito bom-humor.
Em seus relatos biográficos, você sempre diz ter escrito, quando jovem, alguns versinhos, até descobrir sua vocação para a prosa. Ficou algum eco de poeta na sua escrita?
Espero que sim. Porque sou um prosador movido por poesia e música. Na minha infância, se você me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, eu lhe responderia, cheio de fé e orgulho: “Castro Alves!” Só não queria era morrer aos 24 anos, como ele. Acho que me tornei prosador por ser incapaz de escrever um único poema, unzinho que fosse, à altura, por exemplo, do invejável Ossos do Ofício, de Paulo Henriques Britto, que este Plástico Bolha publicou na capa da sua edição de maio passado. E que dizer da minha falta de talento musical? Ai se eu pudesse escrever com a sonoridade do violão de Baden Powell, do piano de um Tom Jobim, ou o de Bill Evans, numa valsa de Bach, ou de Luiz Eça tocando Melancolia – que ele compôs aos 15 anos, imagine -, ou do trompete de Miles Davis, em seus uivos ora líricos, ora lancinantes! Mas aí é pretensão demais, não é, não?
Que autores, além do tão citado William Faulkner, o influenciaram?
Você começa elegendo os seus príncipes. Querendo ou não, acaba tendo ressonâncias deles no seu próprio texto. Minhas influências são uma mistureba da poesia romântica às guarânias e boleros – melosos cantores, por favor, cantem outra vez Mujer, si puedes tú con Dios hablar... -; e da literatura de cordel a Vinicius de Moraes, do baião de Luiz Gonzaga ao mexicano Juan Rulfo, o autor de Pedro Páramo e Chão em chamas; de Chico, Caetano & Gil a Guimarães Rosa; dos cantadores das feiras interioranas ao cosmopolita Scott Fitzgerald; de Graciliano Ramos ao jazz de Thelonious Monk e John Coltrane; de Faulkner e Truman Capote, sobretudo o Capote do conto Memória de um Natal, uma pequena obra-prima. Também bebo nas fontes dos mais admiráveis estilistas do continente americano: Machado de Assis e Jorge Luis Borges. As influências variam de livro para livro. Não escapei da de James Joyce em Os homens dos pés redondos, o meu segundo romance. Tudo que espero é que tenha sobrado para mim, pelo menos, um lampejo do talento que tanto admiro nos outros.
Alguns estudiosos atribuem à sua obra um fator autobiográfico, como em Essa terra. Há alguma empatia entre Antônio Torres e Totonhim? Que acha dessas leituras?
Essas leituras vêm desde a minha estréia, em 1972, com o romance Um cão uivando para a lua. No princípio, isso me incomodava. Depois passei a gostar, achando que elas conferiam uma certa veracidade aos meus romances. Claro que sinto empatia pelo personagem Totonhim, tanto que ele acabou fazendo parte de uma trilogia (Essa terra/ O cachorro e o lobo/ Pelo fundo da agulha). Não nos esqueçamos do que disse Gustave Flaubert: “Madame Bovary sou eu!” De alguma maneira, há traços do autor por trás de seus personagens, até os femininos.
Essa terra é anexado à tradição da literatura sertaneja, embora seja um livro contemporâneo. O romance é escrito em lugar de discussão urbana: o êxodo dos nordestinos para os grandes centros. O que dizer do arcaico e do contemporâneo na nossa literatura?
Parece-me que esse tipo de conflito não está mais na relação campo- cidade, e sim no transe entre as periferias e os centros das metrópoles, que no caso do Rio de Janeiro envolve também um outro, morro-planície. Isso tem gerado uma literatura de alta voltagem, como a do carioca Paulo Lins e a do paulista Marçal Aquino, só para citar os dois exemplos que me ocorrem.
No seu conto Por um pé de feijão, assim como no romance Balada da infância perdida, percebemos uma memória melancólica da infância atrelada à vida rural. Há alguma relação estética nesse recurso com a perspectiva de fracasso que envolve muitos personagens em Essa terra?
A atmosfera melancólica que você percebeu nesses textos pode ter algo a ver com a memória que tenho da minha infância, quando éramos todos, lá no sertão, envolvidos pela melancolia, a cada pôr-de-sol, ao ouvirmos a voz de Augusto Calheiros a cantar, no Serviço de Alto-Falantes, que se propagava pelas redondezas do povoado do qual estávamos próximos. “Cai a tarde, tristonha e serena...” Era a hora da Ave-Maria. Piores ainda eram os fins de tarde dos domingos, quando as visitas pegavam o caminho de volta às suas casas, deixando-nos a esperar, melancolicamente, a escuridão da noite, quando só teríamos por visitantes as almas penadas dos nossos mortos. É por isso que tenho uma profunda relação estética com o Pedro Páramo, de Juan Rulfo, cujo cenário é tão fantasmagórico quanto o nosso noturno sertão era, no tempo em que eu vivia nele.
Em Essa Terra, as vozes de muitos narradores se confundem com as de outros personagens e, em alguns casos, com a sua própria voz. Há alguma intenção política nesse modo de narrar?
Sinceramente, não tive tal intenção. O que tentei captar foi, primeiro: o estado de choque de Totonhim, a partir do momento em que ele vê o seu irmão mais velho, o Nelo, enforcado na sala da casa em que ele morava e na qual hospedava aquele que voltara de São Paulo, com toda pinta de herói, mas que – viu-se isso quatro semanas depois de seu regresso à terra em que nascera -, lá chegara de mala e bolsos vazios. Segundo: o suicídio do herói enlouquece o lugar, cujo sonho era o de partir. Aquele que partiu, voltou e se matou, também matou esse sonho. “A tragédia está na volta”, já dizia Nietzsche. De alguma maneira, fui por aí, ouvindo as vozes que se entrecruzavam até a loucura (como no caso da mãe do trágico Nelo, uma das personagens mais fortes do romance Essa terra, no meu entender).
O que você tem produzido em literatura? Algum projeto específico?
Em setembro do ano passado, publiquei o Pelo fundo da agulha, que, como disse antes, fecha a trilogia iniciada com o Essa terra, em 1976. Neste 2007 saiu o meu primeiro livro para crianças (Minu, o gato azul), belamente ilustrado pelo jovem artista gráfico Adriano Renzi. No próximo mês de setembro, estarei lançando um livro de crônicas, perfis e memórias. Título: Sobre pessoas. Mas, sim, querida galera do Plástico Bolha: acabo de começar a escrever um novo romance, já batizado de Todos os filhos, no qual o protagonista é o Totonhim, em outro tempo - este em que estamos vivendo -, e numa nova história.
Teria algo mais a dizer aos nossos leitores?
O que tenho a dizer mais é que gostei da entrevista. Boas perguntas. Espero tê-las respondido a contento. Por fim, mas não por último, muitíssimo obrigado pela honra da sua atenção e apreço.
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