Não sei pra que viver cem anos.
Se tivesse com quem, ia comentar, que
bobagem um assunto desses na TV, só serve pra consolar as pessoas velhas
que falam o tempo todo em morrer, do tempo que resta, essas coisas. Pelo menos
duas vizinhas aqui no prédio são assim. Uma delas completa toda frase sobre o
que vai fazer – mesmo se for na próxima semana – com se Deus quiser, porque na minha idade nunca se sabe.
Mas Silveira, que é como eu
chamo o meu pai, não fala de morte. Não fala de nada, cada vez fala menos, só
quando precisa mesmo, porque consegue quase tudo de mim com gestos. Por
exemplo: ele inclina a cabeça em direção à cozinha, ergue um pouquinho a
sobrancelha quando está com fome, e eu trago a bandeja. Isso tudo sem tirar o
olho da televisão. Eu digo Silveira já
vou trazer a sua comida e o seu remédio. Como eu cheguei tarde do trabalho,
ele está morto de fome, aí esquento alguma coisa da geladeira. Mesmo cansada,
não me importo, só não quero nessa hora da noite é desvirar roupa; o resto até
distrai.
Só que não adianta ver a novela
com o Silveira pra distrair, não adianta fazer sopa pra distrair, porque quando
vou dormir desando a desvirar roupa. Nos sonhos, são pilhas de calças jeans, e
agora tem uma moda de calça jeans skinny ainda mais difícil de tirar do avesso,
então no sonho quase não tem blusa que é só pendurar, pra Rafaela apanhar logo
e livrar espaço. A pilha que não acaba é de calças e roupas de inverno, e no
inverno o limite de seis peças por cabine não faz muita diferença, porque as
mulheres saem com aquela montanha dizendo não
ficou bom, e raramente, raramente mesmo, uma delas devolve alguma coisa no
cabide ou do lado certo.
Aquelas meninas que ficam horas
experimentando calça jeans, talvez elas vivam cem anos. Nem são tão mais novas
que eu, mas elas se olham tanto no espelho, sempre olham a própria bunda no
espelho grande do corredor, e parecem tão felizes, que com certeza vão viver
muito, apesar de nunca pensarem nisso; e talvez eu seja a única pessoa de 34
anos que sabe de verdade que um dia vai morrer.
Soube em dezembro do ano
passado, faltavam poucos dias pro Natal. De lá pra cá, troquei a sopa por
gelatina feita de véspera e biscoito. Não coloquei mais remédio na bandeja, e o
ventilador de teto passou a fazer um barulho agradável na sala, que nem
relógio. Ou então fui eu que comecei a prestar a atenção nos barulhos e nos
silêncios depois daquela noite, quando finalmente consegui chegar em casa.
Era sábado e eu nunca tinha
desvirado tanta roupa na vida, porque a loja ficou lotada o dia todo, a fila do
provador chegava a uns vinte clientes. Não que eu tivesse tempo de contar,
porque além de tirar do avesso, separar, ajeitar, eu tinha que responder que não, não estamos fazendo reserva de roupa,
que outro tamanho só perguntando pra
vendedora, tudo isso contando o número que interessa, o de peças antes e
depois delas entrarem, porque na véspera dois alarmes tinham sido encontrados
no chão da penúltima cabine.
Não gosto de ficar imaginando
quem está querendo roubar, porque só quem julga é Deus, mas naquele dia eu
pensava nisso, percebia as duplas de amigas se entreolhando na fila, o jeito
que elas iam dar pra me enganar. Ninguém gosta de ser enganado, mesmo que a
loja não cobre o furto de mim. Como a Rafaela não parava no provador, era
chamada a toda hora pra ir ao estoque ver isso e aquilo, todos os funcionários
irritados com o movimento, as roupas amontoavam que nem nos sonhos. Depois que
a loja fechou, fiquei uma hora tirando do avesso, arrumando, limpando,
observando os estragos pra depois relatar. Foi só então que eu soube da chuva,
porque no shopping a luz deixa a gente atordoada, parece que de propósito, pra
ninguém pensar no céu ou no relógio. Mas só acreditei de verdade no tamanho da
chuva quando apagaram um pouco as luzes dos corredores. Eu ainda estava no
segundo andar, e a penumbra combinou com a chuva e com a noite que deviam estar
lá fora. Quando saio do shopping, sempre tenho a sensação de estar descendo de
outro planeta.
Fiquei duas horas debaixo da
marquise, vendo a água subir, e mais uma vendo baixar. Só percebi o celular
descarregado quando já estava sozinha – a multidão tinha arregaçado a calça e
metido o pé na água. Hoje fico pensando como não vi a hora passar. Foi como se
eu tivesse saído de um planeta mas não chegado ao outro. Talvez me sentisse
descansando, porque mesmo em pé não precisava desvirar roupas, e nem tinha
vontade de sair dali pra um domingo cuidando do Silveira.
Só que de repente fiquei com
medo. Deu um pavor de preferir morrer. A chuva não machucava mais, porém estava
tudo escuro e deserto. Pra onde tinham ido os ônibus? Eu precisava sair dali e
minha única lembrança de lugar talvez aberto era um botequim no quarteirão de
trás. Com sorte, era daqueles que não fecham enquanto tem bêbado com dinheiro.
Melhor bêbado do que chuva e escuro.
Na rua, a água estava pelas
canelas, mas não havia correnteza e consegui chegar lá. As pernas e os sapatos
pesavam, arrastando a água grossa. No bar aberto, o dono tirava a lama do piso
com rodo. Eu só pensava na mendiga que vi mijando no caminho, na calçada do
outro lado, muito gorda, abaixando as calças folgadas, tipo pantalona. Dá pra ficar aqui até amanhecer e os ônibus
voltarem?, eu perguntei, e o dono deu de ombros num sim. Com o dinheiro da
passagem quase contado, pedi uma Coca. Veio na garrafa de vidro, diferente do
shopping, mais barata.
Coca-Cola tamanho família era
hábito de fim de semana, espécie de alegria pequena, coisa bem típica da mãe,
mas espatifou naquele dia. Não, naquela noite. Talvez chovesse. O sangue, o
acidente, a mãe escorregou com a garrafa,
disse o pai que ainda era pai e não Silveira. Isso, depois. Da hora, nunca
tinha lembrado direito. Porque os cacos no chão, cuidado com os cacos a mãe sempre dizia, estavam espalhados, e eu,
descalça. Só por isso não saí do lugar. Não podia sair. Do mesmo jeito que não
podia mexer no fogão, criança não mexe no
fogão, é perigoso. Fogão é perigoso. Mas o perigo não era o fogo nem o
fósforo, era que a cabeça podia bater nele, bem na quina, com um safanão. E a
garrafa podia espatifar, e os mil cacos confundiam tudo, porque só se podia
olhar para o chão, pra não pisar neles, e não pro fogão nem para a cabeça
sangrando da mãe, nem para os olhos do Silveira que ainda eram arregalados
naquela época. E chovia.
Marta Barcellos
Marta Barcellos ficou em 2º lugar na categoria prosa do V Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.
Um comentário:
É prazeroso ler um conto bem escrito. O desencadear do cansaço. O ver-se cansado. O cansativo esforço em permanecer (vivo). Parabéns. Pedro.
Postar um comentário