A primeira vez que ouvi falar dele foi no boteco.
Era um fim de tarde de domingo e eu tinha descido para ver o jogo do meu time,
você sabe, na rua é muito mais divertido. Cheguei cedo para garantir um bom
lugar. Foi aí que veio a velhinha corcunda me agradecer. Ela está lá todos os
dias, no almoço e no jantar. Deve ter uns duzentos anos e usa sempre um vestido
quadriculadinho, por baixo de uma camiseta enorme, daquelas de escola de samba
(“Você fez bem, meu filho. Esses garotos ficam na maior balbúrdia incomodando
gente honesta, realmente mereceram a lição. Afinal, aqui é ou não é um ambiente
família, um ambiente de respeito? É ou não é, rapaz?”). O balconista veio logo
abrindo uma cerveja (“Cortesia da casa, chefe!”), e, quando eu disse que não
bebia há alguns anos, ele soltou uma gargalhada e saiu repetindo para todo
mundo que eu era um brincalhão, tremendo brincalhão. Foi juntando tanta gente
(“Aquela sua capa é maneira, mermão!”) que achei melhor ir embora para assistir
ao futebol de casa mesmo. Minha mulher achou muito esquisito.
Outra vez, à noite, foi na passeata. Vinha voltando
da farmácia, mudei de calçada para cortar caminho e dei de cara com a multidão.
Eu nem sabia que haveria aquele ato, tão comum hoje em dia pela cidade. Um
monte de encapuzados me pegou no colo e me jogou para o alto comemorando não
sei o quê. Foi um jornalista que me contou, assim que me colocaram de volta no
chão: Eu acabara de botar para correr o pelotão de choque com seus cassetetes e
balas de borracha. Também havia aspirado o gás lacrimogêneo, filtrando o ar que
agredia os manifestantes. Ele exigia uma declaração quando policiais a paisana
tentaram me prender, alguns ninjas que estavam por perto me ajudaram a fugir.
Naquela manhã, já te contei isso, eu tinha saído
para comprar pão e umas revistinhas na banca do Aristeu. Estava passando pela
feirinha da praça quando senti a porrada. Um camarada partiu para cima de mim
berrando e me enchendo de sopapos. Na cabeça dele, aquilo era uma lição para eu
aprender a respeitar a mulher dos outros. Enquanto isso, uma periguete
fantasiada de ontem olhava para mim e não parava de gritar (“Derrete ele,
derrete ele! Joga o seu raio e derrete ele!”). Parece que eu tinha acabado de
dar em cima da maluca sem me preocupar com o namorado, que voltava do banheiro.
Talvez fosse um engano. Olhando bem de perto, arriscaram testemunhas, o cara
não era assim tão parecido comigo, principalmente pelo uniforme colante e a
cabeleira black muito alta na cabeça (“O outro era bem mais bonito que esse aí,
meu amor”). O valentão deu mais uma ou duas bordoadas, por via das dúvidas, só
para garantir. Depois disso saíram cambaleando abraçados; ela com ar de
profunda decepção, ele inchado de orgulho por defender a honra da amada.
Casos como esse eram cada vez mais comuns. Tinha um sujeito solto por
aí que era mais alto do que eu, mais forte do que eu, mais cabeludo do que eu,
só que todo mundo insistia que era eu. Chegava aos lugares e praticamente podia
ler o pensamento das pessoas (“Ué, mas não foi esse cara que acabou de sair
daqui, voando?”). Certa vez quase cruzei com ele. Podia jurar que era eu
dobrando, veloz como um raio, a esquina da rua da praia.
Aproveitei as férias e resolvi passar uns tempos na serra. Achei
prudente me entocar no mato enquanto a poeira abaixava, aquela história já
estava ficando perigosa. Foi o filho do caseiro, um bostinha de doze ou treze
anos, que me trouxe de volta ao inferno.
“É você, não é?”
“Eu quem?”
“O Vingador Negro, aposto que é.”
“Vingador o quê?”
“Negro. Eu vi você na televisão. Na internet também, não se fala em
outra coisa.”
Como só estávamos nós dois na varanda, resolvi dar corda para o moleque
e saber um pouco mais sobre esse outro.
“Vem cá, me diz uma coisa, esse cara aí, o tal Vingador, você tem
alguma foto dele em ação? Vídeo, sei lá.”
“Claro que não. Quando você usa seus poderes, cria um campo magnético
que impede a captação de imagens, dá pau em tudo que é aparelho eletrônico. Mas
você sabe disso muito bem, não é?”
“Sei... campo magnético. E o que mais? Qual é a desse Vingador Mascarado?”
“Negro, Vingador Negro. Você tem um cinto de utilidades. Quando
precisa, usa um de seus apetrechos para detonar com o inimigo.”
“Apetrechos?”
“É. Corda Invisível, Super Garra de Titânio, o escambau. Mas, na
maioria das vezes, você resolve tudo é no braço mesmo. Vacilou, leva cacetada. Trinta
segundos e o malandro já era.”
“Entendo...”
Enquanto o garoto delirava, o circo, de repente, se armou. Em um minuto
surgiu uma penca de agentes, todos de preto, vindos não sei de onde. E
helicóptero e fuzil e caveirão. Alguns usavam colete a prova de balas. Não se
identificaram, mas seus óculos escuros davam pinta de funcionários do governo.
Me jogaram para dentro de um furgão e me trouxeram para essas suas dependências
muito limpas. Antes de apagar, foi isso aí que eu pude ver. Já faz alguns dias,
não sei direito, perdi a noção do tempo. Fica difícil dormir com essa luz, que não
desliga, na minha cara. Gastei todo meu inglês de colégio com vocês e até agora
ninguém me explica nada, ficam aí anotando e anotando. Só o que deu para pescar
é que os seus colegas estão monitorando meus e-mails pessoais, e que, desde a
semana passada, cessaram as aparições do Vingador Negro.
Carlos Eduardo Pereira.
Carlos Eduardo Pereira ficou em 3º lugar na categoria prosa do V Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio. Parabéns, Carlos!!
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