quinta-feira, 7 de novembro de 2013

...par de sapatos


Menina Ariela não sofre de esquizofrenia. Senhora Doutora Psiquiatra pensa que sim, bem ouvi, que imbecil. Sei eu, ser não-vivo, forma presa, que não. Vi tudo por detrás do quadro; vi o que aconteceu a menina Ariela, Deus me perdoe.

Mal completou os onze anos, fê-lo há dezoito dias, ou vinte, ou dezenove, já com isso que tenho que ver, nada. Chegou do liceu por volta dumas quatro horas, da tarde, pois que ainda estava claro o dia, e sozinha ficou, é praxe, às segundas-feiras chega por umas quatro, muito mal enxergo os números indicados no relógio de parede, pela posição dos ponteiros é bem por aí, nunca soube contar horas nos ponteiros, quiçá dali do quadro, é longe.

Vi que a menina entrou pela sala de visitas e de imediato cerrou a porta, duas giradas de chave na fechadura de baixo, duas na de cima e ajuste do ferrolho, como mãe lhe ensinou, e tirou dos pés os sapatos, e largou-os por lá mesmo, e se foi para a esquerda, e... - com mil perdões, que meu campo de visão Dali do quadro dos relógios esquartejados é limítrofe –. Foram-se uns instantes – o tempo derrete -, quantos não sei precisar, ponteiros passeiam, tique, passeiam mais, taque.

Só tornei a enxergá-la quando voltou àquele canto da sala, onde está a poltrona de couro cor-de-caramelo, a andar de meias pelo carpete, carregando pela asa uma xícara enfumaçada, vai ver estava cheia de café fervente.

Menina Ariela se sentou na poltrona e depositou a xícara sobre a mesa à frente, com cautela, mesmo assim derramou umas cinco gotas, não as contei, por sorte não lhe tocaram a pele, foram direto ao chão. Emanou um ar de “Raios!”, e um suspiro de frustração lhe escapuliu da boca, há de ser pedante ter de levantar logo depois de sentar. Deu uns segundos e impulsionou duma vez o corpo para fora do assento, e caminhou uns passos, e..., e mais uns segundos, tique, outros, taque, e regressou com um trapo molhado na mão esquerda, sim, pelo que me lembro era a  esquerda.

Agachou a Ariela e esfregou o pano no ponto onde creio que havia entornado o líquido, devia ser ali mesmo, ou qual o sentido de sair esfregando pano no carpete, nenhum. Umas quatro esfregadas, dum lado ao outro, vai-e-volta duas vezes, e lá foi ela levar o troço a...

Voltou de novo à cena, e por reles acaso, acredito, virou a cabeça à sua direita - a minha fronte - e ficou ali estática naquela posição por muitos instantes, tique, mais outros muitos instantes, taque, com exceção da cabeça, movida em pequena escala. Foram muitos, disso tenho absoluta certeza, digo-o porque vi o que a menina viu.

A visão do Inferno acometeu a Ariela, e me acometeu junto, porém em meu caso já não é tão grande problema, ora, que poderia me assustar mais que a não-vida, nessa condição já perduro, não há nada que me meter mais medo que isso. Menina Ariela, dela já não poderia afirmar o mesmo.

O incompreensível atemoriza, e não é para menos, onde já se viu escola não ensinar a lidar com o que foge à lógica. Certo que assim nasce um desastre, o primeiro desconhecido ataca a psique envolta pela parede firme da racionalidade, o desconhecido vem que nem martelo e bate, bate com força contra a parede, e a parede desmorona, claro, é firme e frágil. A parede da Ariela, como toda boa parede, desabou, e junto desabou a criança.
Ela virou a cabeça à sua direita, a minha fronte, e ali ficou focada sua visão, decerto não foi só virar para a direita, teve também de abaixar um pouco a cabeça para olhar o chão, do contrário não sei como veria o que viu, e que eu também vi.

Estava o carpete pisado pelo par de sapatos atirados ali de qualquer maneira, o par de sapatos com o qual Ariela fora às aulas, e o qual tirou tão logo chegou à casa. Cenário mediano aquele, um piso carpetado, uma poltrona de couro cor-de-caramelo, uma porta trancada, paredes brancas, um relógio de parede sobre as paredes brancas, um par de sapatos no chão. Nunca fui dum brilhantismo épico, mas creio que é justamente quando o ordinário abriga o extraordinário é que a percepção desse extraordinário pende para o terror. Foi o terror que destruiu a parede da Ariela.

Com a cabeça virada à direita, decerto levemente inclinada para baixo, com o par de olhos encaixados nessa cabeça, aliás, é que menina Ariela viu o fenômeno. O par de olhos viu o par de sapatos. O par de sapatos andou.

Um, dois, três, cinco passos. Esquerdo flutuando, posicionando-se meio palmo à frente do direito, direito flutuando, posicionando-se meio palmo à frente do esquerdo, foi assim, um andar comum, exceto sem pés, sem corpo que andasse o andar dos sapatos. Cinco passos eles deram, Ariela paralisada, movendo apenas os olhos em conformidade à trajetória. Eles andaram, andaram, e pararam. E Ariela paralisada.

Bem sei que o extraordinário existe independentemente da lógica, que a lógica engloba não mais que o ordinário, e que o ordinário por vezes abriga o extraordinário. Sei disso, porque o pós-morte já é em si mais do que o racional comporta, e pós-morta muito bem estou, obrigada. Bem sei. Ariela não sabe. Ou sabe, mas finge não saber. Só sei que naquele momento não o sabia, e disso tenho certeza, ninguém familiarizado com o desconhecido com ele se atemoriza, que absurdo.

Paralisação da menina Ariela durou um ângulo menor que noventa graus nos ponteiros do relógio de parede, isso deu para ver, por conseguinte arrisco afirmar que foram menos de quinze minutos, tique, será que a conta é essa mesmo, taque, vá saber, nunca fui dum brilhantismo épico. Quinze minutos fossem; quinze minutos duma eternidade do mais profundo desespero.

Depois de menos-de-quinze minutos de paralisia Ariela cedeu aos joelhos e caiu sentada, cabeça apoiando na parede, e a expressão no rosto de incredulidade misturada com medo misturado com dor de barriga.

Olhos arregalados, boca entreaberta, sequer uma palavra emitida, só silêncio, o silêncio aterrador de quem viu um assassínio violento ou um fantasma mal encarado. E foi só isso.

Ponteiros passeiam, tique, passeiam, taque, nada. Olhos piscam, brisa vai, brisa vem, ponteiros passeiam mais, a tarde escurece, os mosquitos sobrevoam a sala de visitas, encontram refeição, picam-na por toda a pele, ela urina por ali mesmo, nada. Nada.

Mãe da Ariela chegou por volta das dez, era praxe, e viu o carpete urinado, e a filha sentada, encostada à parede, silente, amedrontada – não necessariamente nessa ordem -, sacudiu-a, sacudiu-a, nada. Menina Ariela muda, mãe chorosa aos berros, deve ter chamado ambulância, pouco depois entraram uns homens vestidos de branco com uma maca nas mãos, e ali posicionaram a criança emudecida, e saíram porta afora todos, e foi o último resquício de Ariela.
Não sei que sucedeu, não vi mais nada, só mãe já não aos berros voltando para fazer não-sei-o-quê, inexpressiva, ninguém se deu ao trabalho de limpar a urina, moscas rondam por ali todo o tempo, o dia clareia, a noite escurece, o tempo passa, tique, dança dos ponteiros, taque, e não há mais o que se ver.

Fosse eu forma livre e falante, diria à menina que não pode, não é prudente que se cerre no próprio senso de racionalidade. O ordinário, repare bem, eu o vi, eu o presenciei, abrigou o extraordinário.

Não é esquizofrenia. Senhora Doutora Psiquiatra o diagnosticou em recado na secretária eletrônica, ecoou na casa inteira, porque é uma imbecil.


Menina Ariela não sofre de esquizofrenia. Menina Ariela sofreu de choque com o intangível, que tudo que não é tangível parece que apavora. Algo a fez catatônica, e não foi enfermidade. Não foi alucinação, não foi delírio, não foi o ordinário, Deus me perdoe. Foi o...  

Helena Mussoi 


Helena Mussoi foi a primeira colocada na categoria prosa do V Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio. Parabéns, Helena!

Nenhum comentário: