quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Do avesso


Não sei pra que viver cem anos. Se tivesse com quem, ia comentar, que bobagem um assunto desses na TV, só serve pra consolar as pessoas velhas que falam o tempo todo em morrer, do tempo que resta, essas coisas. Pelo menos duas vizinhas aqui no prédio são assim. Uma delas completa toda frase sobre o que vai fazer – mesmo se for na próxima semana – com se Deus quiser, porque na minha idade nunca se sabe.

Mas Silveira, que é como eu chamo o meu pai, não fala de morte. Não fala de nada, cada vez fala menos, só quando precisa mesmo, porque consegue quase tudo de mim com gestos. Por exemplo: ele inclina a cabeça em direção à cozinha, ergue um pouquinho a sobrancelha quando está com fome, e eu trago a bandeja. Isso tudo sem tirar o olho da televisão. Eu digo Silveira já vou trazer a sua comida e o seu remédio. Como eu cheguei tarde do trabalho, ele está morto de fome, aí esquento alguma coisa da geladeira. Mesmo cansada, não me importo, só não quero nessa hora da noite é desvirar roupa; o resto até distrai.

Só que não adianta ver a novela com o Silveira pra distrair, não adianta fazer sopa pra distrair, porque quando vou dormir desando a desvirar roupa. Nos sonhos, são pilhas de calças jeans, e agora tem uma moda de calça jeans skinny ainda mais difícil de tirar do avesso, então no sonho quase não tem blusa que é só pendurar, pra Rafaela apanhar logo e livrar espaço. A pilha que não acaba é de calças e roupas de inverno, e no inverno o limite de seis peças por cabine não faz muita diferença, porque as mulheres saem com aquela montanha dizendo não ficou bom, e raramente, raramente mesmo, uma delas devolve alguma coisa no cabide ou do lado certo.

Aquelas meninas que ficam horas experimentando calça jeans, talvez elas vivam cem anos. Nem são tão mais novas que eu, mas elas se olham tanto no espelho, sempre olham a própria bunda no espelho grande do corredor, e parecem tão felizes, que com certeza vão viver muito, apesar de nunca pensarem nisso; e talvez eu seja a única pessoa de 34 anos que sabe de verdade que um dia vai morrer.

Soube em dezembro do ano passado, faltavam poucos dias pro Natal. De lá pra cá, troquei a sopa por gelatina feita de véspera e biscoito. Não coloquei mais remédio na bandeja, e o ventilador de teto passou a fazer um barulho agradável na sala, que nem relógio. Ou então fui eu que comecei a prestar a atenção nos barulhos e nos silêncios depois daquela noite, quando finalmente consegui chegar em casa.

Era sábado e eu nunca tinha desvirado tanta roupa na vida, porque a loja ficou lotada o dia todo, a fila do provador chegava a uns vinte clientes. Não que eu tivesse tempo de contar, porque além de tirar do avesso, separar, ajeitar, eu tinha que responder que não, não estamos fazendo reserva de roupa, que outro tamanho só perguntando pra vendedora, tudo isso contando o número que interessa, o de peças antes e depois delas entrarem, porque na véspera dois alarmes tinham sido encontrados no chão da penúltima cabine.

Não gosto de ficar imaginando quem está querendo roubar, porque só quem julga é Deus, mas naquele dia eu pensava nisso, percebia as duplas de amigas se entreolhando na fila, o jeito que elas iam dar pra me enganar. Ninguém gosta de ser enganado, mesmo que a loja não cobre o furto de mim. Como a Rafaela não parava no provador, era chamada a toda hora pra ir ao estoque ver isso e aquilo, todos os funcionários irritados com o movimento, as roupas amontoavam que nem nos sonhos. Depois que a loja fechou, fiquei uma hora tirando do avesso, arrumando, limpando, observando os estragos pra depois relatar. Foi só então que eu soube da chuva, porque no shopping a luz deixa a gente atordoada, parece que de propósito, pra ninguém pensar no céu ou no relógio. Mas só acreditei de verdade no tamanho da chuva quando apagaram um pouco as luzes dos corredores. Eu ainda estava no segundo andar, e a penumbra combinou com a chuva e com a noite que deviam estar lá fora. Quando saio do shopping, sempre tenho a sensação de estar descendo de outro planeta.

Fiquei duas horas debaixo da marquise, vendo a água subir, e mais uma vendo baixar. Só percebi o celular descarregado quando já estava sozinha – a multidão tinha arregaçado a calça e metido o pé na água. Hoje fico pensando como não vi a hora passar. Foi como se eu tivesse saído de um planeta mas não chegado ao outro. Talvez me sentisse descansando, porque mesmo em pé não precisava desvirar roupas, e nem tinha vontade de sair dali pra um domingo cuidando do Silveira.

Só que de repente fiquei com medo. Deu um pavor de preferir morrer. A chuva não machucava mais, porém estava tudo escuro e deserto. Pra onde tinham ido os ônibus? Eu precisava sair dali e minha única lembrança de lugar talvez aberto era um botequim no quarteirão de trás. Com sorte, era daqueles que não fecham enquanto tem bêbado com dinheiro. Melhor bêbado do que chuva e escuro.

Na rua, a água estava pelas canelas, mas não havia correnteza e consegui chegar lá. As pernas e os sapatos pesavam, arrastando a água grossa. No bar aberto, o dono tirava a lama do piso com rodo. Eu só pensava na mendiga que vi mijando no caminho, na calçada do outro lado, muito gorda, abaixando as calças folgadas, tipo pantalona. Dá pra ficar aqui até amanhecer e os ônibus voltarem?, eu perguntei, e o dono deu de ombros num sim. Com o dinheiro da passagem quase contado, pedi uma Coca. Veio na garrafa de vidro, diferente do shopping, mais barata.

Coca-Cola tamanho família era hábito de fim de semana, espécie de alegria pequena, coisa bem típica da mãe, mas espatifou naquele dia. Não, naquela noite. Talvez chovesse. O sangue, o acidente, a mãe escorregou com a garrafa, disse o pai que ainda era pai e não Silveira. Isso, depois. Da hora, nunca tinha lembrado direito. Porque os cacos no chão, cuidado com os cacos a mãe sempre dizia, estavam espalhados, e eu, descalça. Só por isso não saí do lugar. Não podia sair. Do mesmo jeito que não podia mexer no fogão, criança não mexe no fogão, é perigoso. Fogão é perigoso. Mas o perigo não era o fogo nem o fósforo, era que a cabeça podia bater nele, bem na quina, com um safanão. E a garrafa podia espatifar, e os mil cacos confundiam tudo, porque só se podia olhar para o chão, pra não pisar neles, e não pro fogão nem para a cabeça sangrando da mãe, nem para os olhos do Silveira que ainda eram arregalados naquela época. E chovia.

Marta Barcellos


Marta Barcellos ficou em 2º lugar na categoria prosa do V Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio. 

Um comentário:

Pedro Du Bois disse...

É prazeroso ler um conto bem escrito. O desencadear do cansaço. O ver-se cansado. O cansativo esforço em permanecer (vivo). Parabéns. Pedro.