segunda-feira, 3 de novembro de 2014

As grandes dores são mudas


As grandes dores são mudas. Eu vi escrito no braço de um senhor. Parecia antiga a tatuagem, estilo de cadeia, onde a pele enrugada absorveu e sugou toda a força da tinta azul, que agora é quase verde. Fiquei pensando no tamanho de uma dor que te faça gritar até cansar, a ponto de você imprimir na pele o berro, por não ter mais voz. Eu poderia fazer outra tatuagem, e não seria de flor. Escreveria no braço: as grandes paixões são mudas. O silêncio diz mais que as palavras. Seis horas da manhã, o alarme já está no sétimo ou oitavo soneca, não podemos, mas queremos muito ficar na cama ao invés de levantar, em alguns segundos pensamos em tudo que queríamos fazer e não poderíamos: os carinhos de bom dia, a transa que acorda o corpo, o banho junto, o café da manhã, o mel no queijo, e aí estaríamos preparados para tudo que a vida nos reserva na esquina seguinte. - Eu te amo, poderia falar pra ele toda vez que abro o olho de manhã, e vejo seu rosto iluminado pela luz que invade o quarto, as vezes só uma metade fica iluminada enquanto a outra é sombra, sempre sereno e bonito, a respiração alta e sofrida, até que em algum momento abre os olhos. Eles são mais claros e menores de manhã. É nessa luz que consigo enxergar os pequenos detalhes: o desenho dos olhos parece ter sido feito com pincel fino, as minúsculas pintas que parecem surgir no pescoço e no peito e os pelos loiros perdidos na barba escura. - Mas não falo, grito em silêncio, e acho que ele escuta. Eu falo muito, ele fala menos. Achei que não conseguiria estar com alguém que não fala, mas hoje prefiro mergulhar do que nadar na superfície. Estamos sempre dizendo. Nessa manhã, ele abriu os olhos e olhou o céu, como sempre, seu olho castanho fica com cor de tronco de árvore, os pelos das sobrancelhas despenteados, e é possível escutar os estalos do corpo com as primeiras alongadas do dia. Ele me olha, não sorri e não fala, só olha. Seus olhos são mudos como a minha paixão por ele. Com os rostos grudados no colchão nos olhamos na distância mínima que a visão permite sem distorcer a imagem. Puxo o travesseiro por cima de nossas cabeças, e já não estamos mais nesse mundo. Agora somos só nos dois, numa dimensão particular entre o colchão e o travesseiro. Nossas pernas se tocam e nossos olhos também, estamos longe, nas profundezas de um e do outro. Atentos ao que o silêncio diz. O soneca dispara mais uma vez, sentimos a volta antecipada ao mundo que naquela hora não queríamos estar. Talvez se apaixonar seja isso também: olhar nos olhos de alguém e ter certeza de que aquela pessoa pode te levar para outros mundos que não esse. Quando aterrissamos eu disse, ainda debaixo do travesseiro: se tivesse que te pedir em namoro, pediria aqui e agora. - mas não sei se essas coisas ainda acontecem - Ele me deu aquele abraço que nem o melhor ator do mundo conseguiria dar com tanta sinceridade. Nos agarramos e desgarramos no alarme do soneca seguinte. Para encarar o mundo naquele dia tivemos que parar de nos olhar. Toda grande paixão muda, reserva uma grande dor muda. E ambas passam como êxtase do canto de uma cigarra. Mas aquele senhor fez questão de não esquecer do dia em que escutou pela primeira vez uma cigarra cantar, e teve vontade de que ela nunca mais parasse. Depois que a cigarra pára de cantar, só se escuta o silêncio.

Carlos Meijueiro

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