segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

CISÕES E INCÊNDIOS


Acordei muito cedo. A luz que se filtrava
por entre as persianas era uma luz macia.
Estremunhada de sono, a gata mal miava
ou seja, metaforicamente não ardia.

E quem aqui não estava também não entendia
o estado de cisão em que eu tinha acordado
(não, não disse tensão, disse cisão, de facto,
que é esse estado lento entre mar e maresia).

Tomei café, fiz sumos, eu, a que acordou cedo,
e eu, que não acordou, observei fazer,
e fiquei-me encostada entre fascínio e medo
olhando-me de fora, desejando não ser

cindida como língua bífida de serpente.
E então olhei o sol, e o estado de fissura
não abrandou, tomou e invadiu a casa,
e o sol, antes só sol, escureceu de repente
tornou-se um anti-sol, como cindida asa.

E a gata ardeu, acesa, dentro da noite escura.

Ana Luisa Amaral

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