Era o funeral da minha família, pelo menos eu achava. Uma
chuva irritante e fina caía no meu rosto como agulhas finas. Eu não sentia
frio, só o estardalhaço dos meus sapatos no concreto agora encharcados de
poças. Ninguém prestava atenção, somente eu. Maldisse a quantidade de fumaça
que inalei todos aqueles anos e o ligamento frágil do joelho que fazia cada
aterrissagem sufocar um grito. Sabia que pintava as ruas de vermelho enquanto
vencia quarteirões daquelas casas iguais, mas não me lembrava de ter me
machucado.
Eu estava sempre ralado de um tombo do carrinho de rolimã e
descalço de fazer das sandálias marcações de gol. As ruas estreitas
atrapalhavam a logística do jogo se um carro precisasse passar, mas tinham bons
becos e esconderijos para jogos de perseguição. As telhas velhas e quebradiças
ainda eram as mesmas que as mães desesperadas imploravam para seus filhos não
andarem em cima.
Há lugares que gostaríamos de não lembrar que conhecemos. Ao
final da rua, a modesta casinha azul jazia com a porta aberta balançando de
acordo com o vento. Apertava e soltava o punho cada vez mais depressa, mas o
movimento me incomodava. Cada passo para frente significava um não voltar
atrás. Estava a caminho do meu passado, que havia prometido deixar. Não posso
ir embora, não quero voltar, preciso chegar e quero desaparecer.
Nunca terei filhos, pois ter Esperanza já era como ser pai.
Seus olhos de amêndoas eram iguais aos meus. Gostava de vê-la brincar ao sol, a
íris iluminada tinha cor de madeira velha e o cheiro também, se prestasse
atenção. Sempre estive mais com ela que meus pais, por isso quando fui embora
quis levá-la comigo, mas eles insistiram que ficariam com ela. Bom, que a levem
com vocês para o túmulo, pois é para lá que estão indo.
Mordo a língua para abafar o grito e o arrependimento. O
passado arrancou as lembranças de minha casa e chacoalhou até deixar tudo em
ruínas, o sofá onde costumávamos assistir televisão estava revirado e o
aparelho agora em pedaços, junto com cortinas rasgadas, mesas reviradas e a
parede das escadas com marcas de unha e sangue. A pressão no peito subia para a
cabeça e eu não conseguia trazer ar aos pulmões, a cena ia ficando turva e
embaçada conforme o absurdo se fazia sentir pela primeira vez.
Quando estava em casa, minha mãe era atenciosa. Deixava que
dormíssemos em sua cama e cantava para nós uma canção de ninar que aprendeu com
nossa avó. Se estava viva, não a conhecíamos. A música era um antídoto para os
pesadelos de Esperanza e ficávamos sempre os três abraçados enquanto ela
cantava, esperando nosso pai chegar. Sempre juntos e no escuro. Como se ela
pudesse me curar também deste pesadelo, murmurei um trechinho.
A mandíbula e os punhos destravaram, deixando o corpo
recobrar a sanidade. Quase não percebi que não cantava sozinho. A voz suave e
rouca ao fundo me fez buscar o ar novamente, agarrei o corrimão e corri os
degraus de dois em dois. O primeiro grito que dei, saiu entre um choro e um
engasgo, mas o segundo arrancou de minhas cordas vocais o nome que eu não
pronunciara por tantos anos. Talvez por medo, a voz se calou e meu coração
despencou para o estômago. Onde está, onde está? Eu abria portas sem realmente
ver, tentei uma, duas. Sua voz voltou a cantar enquanto eu encarava o quarto de
meus pais.
Os lugares que não gostaríamos de lembrar, são o que nunca
esquecemos. A cama desfeita, os quadros e o espelho quebrados, e, segurando a
porta do armário entreaberta, o par de amêndoas me encarava assustado, agachado
e cantarolando para mamãe. Aquele segundo ficou suspenso pois ela estava bem
ali e eu a tinha encontrado. Ela estava com o cabelo maior, talvez mais alta, e
o mais importante é que estava viva. A seu lado o militar apontava uma arma
para sua cabeça e me encarava, esperando uma reação.
Samyres Amaral Freitas
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