segunda-feira, 18 de maio de 2009

SARAMAGO: anticristão ou humanista?

(por Ana Couto Paiva)
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A despeito de todas as críticas feitas ao livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do autor supracitado, resolvi eu mesma fazer um registro das minhas impressões sobre alguns pontos da obra, sem o objetivo de discutir a veracidade de seu conteúdo (até mesmo pelo seu caráter de ficção).
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Não obstante Saramago, o famigerado autor português, seja um cético, este conseguiu relatar, de maneira peculiar, a vida de Jesus Cristo, mártir das igrejas cristãs, reduzindo, por assim dizer, sua vida em todos os seus aspectos a uma passagem humana e improvável pelos seus seguidores.
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As passagens bíblicas, tangentes à vida de Jesus, não pormenorizam sua porção “humana”, mas traçam o perfil do “filho de Deus”, envolto de uma santidade irrefutável.
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Os pontos mais polêmicos do livro, a meu ver, são a relação de Jesus e Maria de Magdala (hodiernamente tão discutida por agnósticos e mesmo por historiadores), e o malfadado fim de Judas de Iscariote.
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O “Jesus” de José Saramago é renitente, lacônico (já o era antes, biblicamente), taciturno; amarga uma culpa herdada pelo pai terreno, José, e cede às tentações da carne, quando opta por viver em concubinato com Maria de Magdala.
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Não se fala, como outros autores o fazem, na descendência dos concubinos, mas na forma mais humana possível de uma relação entre um homem e uma mulher, sem geração de frutos.
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Jesus, após alguns anos passados distante da família, retorna ao lar com o intuito de revelar aos seus a sua condição suprema de filho de Deus. Contudo, no caminho de volta, passando por Magdala, bate à porta de Maria, sem saber quem lá morava ou de que ofício tirava seu sustento. Tendo os pés feridos pela caminhada, procurava tão-somente quem pudesse aliviar sua dor.
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Impressionado com as formas da mulher, de idade superior à sua, com seu perfume, com o tratamento que dela recebe, acaba cedendo aos seus encantos de meretriz; impressiona-se ainda com sua cama luxuosa e com a estranha intimidade que cria com ela.
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Retornado ao lar, e diante da descrença de sua família em relação à sua origem divina, termina por voltar ao seio de Maria de Magdala, donde fica por algumas semanas, vivendo com ela até o fim de seus dias.
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Nada surpreendente para os tempos modernos. Todavia, pensar numa relação primordialmente carnal, sobretudo há dois mil e nove anos (um pouco mais), é quase impossível! Jesus teria tirado Maria Magdalena da vida até então prostituída para viver com ela em prostituição.
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Inimaginável tal situação, não pelo fato em si, mas pela época em que teria ocorrido. Amavam-se, entendiam-se como amigos; mas viviam em concubinato. À exceção de qualquer influência religiosa, nem nos meus pensamentos mais liberais conseguiria admitir a hipótese de Jesus viver essa relação com Maria Magdalena.
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Não seria menos louvável o Nazareno se com ela se tivesse casado. Mas repito: inadmissível seria naquele contexto histórico, e, portanto, improvável, que vivessem ambos tão liberada relação e, cumpre-se dizer, tão humana (mais, impossível).
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No tocante a Judas de Iscariote, este teria se resignado a ser eternamente condenado pela humanidade.
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Prestou-se o discípulo à árdua tarefa de denunciar Jesus às autoridades romanas, para que fosse preso, julgado e condenado. Observe-se: a pedido do próprio mestre, quando os demais se recusaram a fazê-lo. E ao praticar tal ato, mesmo provando sua lealdade, tão arrependido ficou, que pôs fim à própria vida, suicidando por enforcamento.
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Aqui, concordo com o autor, pois me parece impossível pensar que, já sabendo Jesus de seu destino, fosse surpreendido pela traição de um dos seus seguidores.
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Foi Judas o grande traidor ou o fiel incondicional? Mais pertinência tem a segunda hipótese, e mister ressaltar a valorosa coragem do apóstolo, não só a de cumprir a difícil tarefa, como a de suportar para sempre a condenação póstuma.
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Por fim, a leitura dessa obra tão polemizada e alvo de censura até, é das que eu recomendo para quem ainda não a fez.
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O aspecto totalmente humanizado — e concomitantemente anticristão — que Saramago confere ao personagem principal, a completa diferenciação desta história à já conhecida versão bíblica, nos remete a um outro universo, desconhecido, e nem por isso, menos intrigante.
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Um comentário:

Daniel Rolim Rocha disse...

Saramago valorizou a vida de Cristo em todos os seus aspectos trazendo-o para perto de nós.
Para mim, de longe seria um dos pontos mais polêmicos do livro o fim de Judas e as relações de Jesus e Maria de Magdala. O livro já começa revelando relações sexuais entre José e Maria; o pastor professor que diz a Jesus não se assutar se cortar Deus ao meio e lá encontrar o Diabo ou cortar o Diabo ao meio e lá encontrar Deus; a relação de mártires em prol da igreja; a fala final do crucificado dizendo perdoai Ele não sabe o que faz. E apesar de tudo Saramago nos apresenta um homem imbuído dos mais sinceros sentimentos que a escência do cristianismo prega.
Este livro confirma a genialidade de um escritor capaz de dar nó em pingo de letra, para não falar de sua escrita moderna e experimental.