- Tem me doido olhar para a mesa que você ocupava e não ver
mais sobre ela a sua pasta preta.
Esta frase, prenhe de emoção, fê-lo lembrar do fetiche da
mercadoria, de Marx, pelo qual as coisas se personificam e as pessoas se
coisificam. Ele a entendeu e sorriu de uma forma branda e terna. Estavam ali
havia mais de uma hora, entre uma cerveja e outra, com tantas palavras já
ditas, e somente no adiantado da conversação que ela se lembrou de lamentar sua
ausência, sabendo que a mesma fora decidida em comum acordo para o bem de ambos.
Fitou o seu copo de cerveja e depois fez o mesmo em relação
ao dela. Pareciam, ele e ela, dois copos de cerveja com cerveja, que se
esvaziam à medida que são levados à boca. Sabia que a frase dela só saíra
àquele momento adiantado por que vinha sob o efeito da bebida. Não viria,
cogitou, sem um acompanhamento prévio, sem uma causa, que buscasse fora de si,
uma força que não era dela, que não havia em si, simplesmente por que não a
possuía - a vida não lhe dera - e não a possuiria dali por diante; ela disso
sempre soube, por isso em um certo dia resolveram chegar a um consenso, segundo
o qual ambos perderiam, disso estavam razoavelmente cientes, mas o que mais
lhes importava era perder o menos possível, e o que perderam não foi pouco, tal
constatação estava incrustada na frase dela, pela qual metaforicamente a mesa
era ela e a pasta ele, que não mais estava nem estaria sobre ela, tampouco o
inverso acontecia e não poderia acontecer.
- Você sabe... Você sabe... - Ela tentou esboçar uma reação
que os levasse a reconsiderar a decisão que haviam tomado em comum acordo.
Ele baixou o copo sobre a mesa, após ter bebido um gole
longo, sem saber o que dizer nem o que fazer. Quis dizer-lhe aquela famosa
frase em francês, que houvera se tornado célebre como título e tema de uma não menos célebre canção:
c'est la vie. Não a disse. Fitou-a como se fosse a primeira vez. E era após
muitos anos. Quantos? Eles sabiam: doze. Verem-se após tanto tempo servia, no
mínimo, descontando-se tudo o que viveram, como referência para ambos.
Guardadas as devidas proporções, era como alguém encontrar um conhecido, com
quem nunca fora além de um bom dia ou boa tarde, e reparar que ele lhe servia
de espelho para verificar qual dos dois estava mais velho, mais gordo, mais
saudável, etc. A comparação seria útil para si mesmo, como uma bússola
interior. Ele está bem melhor do que eu, preciso me cuidar. Ou o contrário:
como estou conservado, pelo menos em relação a ele, que deve dormir tarde,
alimentar-se mal, levar uma vida sedentária... Vou continuar no caminho inverso
ao dele. Mas com ela, ele não conseguia referenciar-se. Quantos anos passei
dentro dessa mulher? O tempo o que é? É o homem como referência. Sem o homem
não haveria o tempo, pelo menos para o homem. O homem não criou o tempo,
tampouco o espaço. Lembra-se de Kant discutindo tal questão? Ela não interrompeu
a viagem do copo cheio de cerveja à sua boca; entornou tudo e depois, como não entendesse, perguntou: o quê? Por favor,
não beba mais; chega! Você não manda em mim! Ele nunca teve a pretensão de ser
o cabeça, ela sempre o fora mais. Sempre; há limitações para esta palavra. A
rigor, parece que não há sempre, salvo nos dicionários.
- Eu quero continuar
bebendo!
- Por que?
- Porque estamos
comemorando.
- O quê?
- O nosso reencontro.
Você não se dá conta?
- É evidente que sim!
- Infelizmente?
- Eu não disse
infelizmente. Disse que é evidente que sim.
- O que isso
significa?
- Não sei.
- Então por que
disse?
- Tinha que lhe dizer
algo; estamos conversando, não estamos?
- E também bebendo!
- Peço-lhe que pare
de beber!
- Por que?
- Você já passou da
conta.
- Tem me doido olhar
para a mesa que você ocupava e não ver mais sobre ela a sua pasta preta.
- Também me tem
doido, mas...
- Mas?
- Eu não gostaria de
falar sobre isso.
- Por que?
- Você sabe o porquê.
- Então vou continuar
bebendo!
- Por favor!
- Você não manda em
mim!
- Não se trata disso.
- Então, o que é?
- Vamos embora!
- Para onde?
- Você sabe!
- E depois?
- Você sabe!
Vinicius Bandera
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