quarta-feira, 18 de outubro de 2023

A gota, um conto de Vicente Valle



Em queda livre, totalmente berserker, eu corto a massa de ar frio que vem do sul, sem capacete, nem paraquedas. Sem medo de altura, eu miro a bola amarela que se projeta dois metros e quinze acima do asfalto. Logo antes da hora de cair, bate um nervoso. Mas se até a Fernanda Montenegro fica com frio na barriga antes de pisar no palco, por que não posso eu?

Ufa. Aterrizo sem grandes dispersões de massa, e, rapidamente, sou puxada para baixo por uma força estranha que me junta num fio vertical com várias manas. O tempo é curto demais, e não conseguimos colocar o papo em dia devidamente antes de sermos jogadas nos mares de morros cinzas, todas lutando para não ficar presas em bolsões de irmãs, onde, amanhã, se criam filhotes de zzzzz voadores.

Conseguimos nos desviar, eu e Maria Marta, com as irmãs lá da área dela, para a cascata que nos lança na rota da alegria, que me lembra a saída do Rock in Rio — igualmente em direção, o mais rápido possível, ao bueiro.

Prefiro, ao invés de me irritar com a demora, aproveitar o caminho. Olhar o céu, as irmãs em queda livre, agarradas nas marquises, brincando de mergulho. A fachada das lojas. As luzes.

A queda no bueiro, como todos que já viram Ratatouille sabem, é um momento arriscado. Pois, logo a frente, haverá uma fatídica bifurcação, que mudará o curso da história inteira.

Esquerda, direita? Sempre pego a esquerda. Tudo sereno. A essa altura, meu corpo está sujo, cheio de poeira, terra e bactérias. Espero logo virar fumaça para me limpar. Mas calma! Esse não é o caminho que eu conheço. Essa parede aqui era de uma cor meio atijolada. Hm, talvez seja um cano no-- ahá! Está ali a marca TIGRE, sem manchas. É um cano novo. Aonde ele dará?

Pela estrutura do poliéster, suspeito PVC. Maria Clotilde confirma. PVC. Isso tem cara de invencionice, daquelas que se vê em palestra ambiental, e ninguém nunca faz em casa. Pois é, alguém faz, pondera Clotilde. Bem pensado, Clô. Bem pensado. Opa. Começamos a ouvir um ruído, e o PVC de tigre começa a vibrar sutilmente. Eu me viro para Clô, e, sem precisar falar, entendemos: a rota é para cima. Há uma bomba, em algum lugar aqui.

Schuuuum! Segura minha mão, Clotilde! Estamos juntas nessa. A gente devia ter ido pela direita. Você e a direita, Clotilde! Me poupe! Segura forte que vai virar! Ueeeee, aaa, ihhh! Uhuuuul-- ah!

A serenidade de um decantador sempre me agrada. Contanto que não acrescentem aquele corno do Cloro à festa. Você sempre cirúrgica, Clotilde. Obrigado, irmã. Mas acho que hoje não. Esse daqui, pela cor atijolada, tem cara de...

Saint Johnny! How are you my friend? Very nice, very nice! Uh, let me see the ring! Beautiful. Et comment se passent le cours de français? Très bien. Au revoir, je t’aime!

Vem Clotilde, vamos logo pro andar de baixo que eu quero me limpar. Depois a gente volta. Eu me esfrego nas paredes pretas de chapisco, que absorvem pra fora as impurezas do meu corpo. Eu nunca entendi como isso não faz sair tudo preto no final, mas acho que certas coisas nesse mundo simplesmente não batem lé com cré, e essa é a graça.

Tomp, tomp. Já estou terminando de me limpar. Tomp, tomp, tomp, ẽĩr! E você, Clotilde? Já está cristalina? Tlin, tlin. Blup, blup. Toca a corneta. Chamado à guerra. Abre a torneira. Esse é meu momento favorito!

Daqui, onde caímos, um cilindro transparente, eu e a Clotilde julgamos a mobília do indivíduo.

Poltrona Sérgio Rodrigues! Você sempre cirúrgica, Clotilde. Panela Le Creuset. Um a um. Tem adega. Dois a um Clotilde. E caixa de delivery de japonês no lixo! Três a um. Perdi. Aponta o centro de campo, e game over. Vai, Clotilde, agora segura vem aqui, que ele vai erguer a gente.

A Clotilde fica nervosa na hora do escorrega, pois tem medo de escuro. Eu gosto. O escuro me faz repousar como nunca. Esse camarada aí tá com a garganta inflamada. Tudo bem, essa parte é rápida. Bom daqui a umas seis horas, eu vou ter uma conversa... privada, se é que você me entende. A Clotilde entendeu. Cirúrgica.

Podem me levar, pois sou culpada de crime. Matei a—glub, glub. Tchau, tchau.

Vicente Valle

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