II. A antologia poética
Em 1962, completando seus 60 anos de vida e mais de 30 anos de intensa produção literária, Drummond publica pela Livraria José Olympio Editora uma síntese em cima de sua própria poesia: a Antologia Poética. O autor divide sua produção poética em nove sessões, que definiu como seu espelho mais fiel (ANDRADE, C. D. 1962):
Ao organizar este volume, o autor não teve em mira, propriamente, selecionar poemas pela qualidade, nem pelas fases que acaso se observem em sua carreira poética. Cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel. (DRUMMOND, 1962)
Estão presentes na obra poemas de doze de seus livros: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Boitempo (1968), Claro Enigma (1951), Fazendeiro do Ar (1954), José (1942), Lição de Coisas (1962), Corpo - Novos Poemas (1984), A Rosa do Povo (1945), Sentimento do Mundo (1940), Viola de Bolso (1952), e A Vida Passada a Limpo (1959).
A divisão e seleção da obra não seguem um critério cronológico, nem a divisão dos livros. O próprio autor agrupou os textos em nove categorias: Um Eu Todo Retorcido, Uma Província: Esta, A Família que Me Dei, Cantar de Amigos, Na Praça dos Convites, Amar-Amaro, Poesia Contemplada, Uma, Duas Argolinhas, e Tentativa de Exploração e de Interpretação do Estar-no-mundo.
A primeira categoria, Um eu todo retorcido, aborda as questões do indivíduo, seus desconfortos, estranhezas perante si e o mundo. Entre os destaques está uma de suas produções mais conhecidas, Poema de Sete Faces, onde Drummond relata sua gaucherie ou gauchismo perante a vida:
Inicialmente, o gauchismo aparece como característica do eu lírico. Porém, a abordagem subjetiva cresce por representar os marginalizados como um todo. Assim vão-se desenrolando os assuntos da poesia em Drummond: partindo de um “eu retorcido”, vislumbra-se uma sociedade “torta”, na qual o sujeito não consegue encontrar nenhuma expectativa. (...) Nasce o gauche mais famoso de que a literatura brasileira tem notícia: “um eu todo retorcido”, documentado por um poema que o apresenta ao mundo, como sua certidão de nascimento. Esse é o primeiro poema do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade; um dos que compreende a síntese das características da sua obra, como a psicologia, os procedimentos formais e estilísticos que serão desenvolvidos mais tarde. (ERTHAL, S. p. 185, 2016)
O caráter inquieto do autor, seja no âmbito individual, político, social ou espiritual, é uma constante, não só nessa categoria, mas em toda sua obra. A solidão e a melancolia (observada em A Bruxa e Estrambote Melancólico), o desamparo (Soneto da Perdida Esperança, Consolo na Praia e José), as inspirações e aspirações (A Música Barata), a intensidade das emoções (Poema Patético) são alguns dos assuntos abordados. A passagem do tempo e da idade é um dos temas mais fortes dessa sessão, sendo temática de poemas como Dentaduras Duplas, Últimos Dias e Idade Madura. Isso se percebe também em Versos à boca da noite, integrante do livro A Rosa do Povo:
Sinto que o tempo sobre mim abatesua mão pesada. Rugas, dentes, calva.Uma aceitação maior de tudo,e o medo de novas descobertas.
Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? Sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?
Apesar de ter uma sessão inteira dedicada ao choque social e político (Na Praça dos Convites), o escritor também explora essa questão nessa categoria, como nos textos Idade Madura e José. O texto que exemplifica isso com maior intensidade é o poema A Flor e a Náusea, publicado originalmente em 1945, ano em que o autor se aproximou do Partido Comunista Brasileiro:
Preso à minha classe e a algumas roupas,vou de branco pela rua cinzenta.Melancolias, mercadorias espreitam-me.Devo seguir até o enjoo?Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:Não, o tempo não chegou de completa justiça.O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.Quarenta anos e nenhum problemaresolvido, sequer colocado.Nenhuma carta escrita nem recebida.Todos os homens voltam para casa.Estão menos livres mas levam jornaise soletram o mundo, sabendo que o perdem.
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