III. Minas além do som
Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo. (...). Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado. (ANDRADE, 1924)
Na segunda sessão da Antologia, Drummond aborda textos sobre sua terra natal, Minas Gerais. O autor trabalha as tradições e características socioculturais de seu estado, além de suas lendas e histórias populares, como visto nos poemas Canção da Moça Fantasma de Belo Horizonte e A Morte de Neco de Andrade.
O escritor se debruça sobre o modo de vida interiorano em seu celebrado texto Cidadezinha Qualquer,
que abre esta categoria da antologia:
Um homem vai devagar.Um cachorro vai devagar.Um burro vai devagar.Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
A religiosidade católica, basal na cultura mineira, é bastante presente. Em Romaria, é trabalhada a tradição católica dos Romeiros, grupo de fiéis devotos que realizam peregrinações a locais considerados sagrados. Em Estampas de Vila Rica, o autor versa sobre o tema utilizando-se de cinco pontos turísticos da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais: a igreja de Nossa Senhora do Carmo, a igreja de São Francisco de Assis, a igreja de Nossa Senhora de Mercês de Cima, o Hotel Toffolo e o Museu da Inconfidência. Percebe-se no trecho II: São Francisco de Assis:
Dai-me, Senhor, a só belezadestes ornatos. E não a alma.Pressente-se dor de homem,paralela à das cinco chagas.
Mas entro e, Senhor, me percona rósea nave triunfal.Por que tanto baixar o céu?Por que esta nova cilada?
Senhor, os púlpitos mudosentretanto me sorriem.Mais que vossa igreja, estasabe a voz de me embalar.
Em 1934, Carlos Drummond de Andrade mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a maior parte de sua vida. Drummond aborda nesta sessão a dualidade sentimental pela qual passava: sentir a dureza e orgulho de ferro herdados de sua origem, descritos em Confidência do Itabirano:
Alguns anos vivi em Itabira.Principalmente nasci em Itabira.Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.Noventa por cento de ferro nas calçadas.Oitenta por cento de ferro nas almas.E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,é doce herança itabirana.
Ao mesmo tempo, o autor relata a saudade da pátria imaginária que sentia vivendo no Rio de Janeiro, relatada em Prece de Mineiro no Rio:
Espírito de Minas, me visita,e sobre a confusão desta cidade,onde voz e buzina se confundem,lança teu claro raio ordenador.Conserva em mim ao menos a metadedo que fui de nascença e a vida esgarça:não quero ser um móvel num imóvel,quero firme e discreto o meu amor,meu gesto seja sempre natural,mesmo brusco ou pesado, e só me punjaa saudade da pátria imaginária.
Esta sessão da antologia dialoga com a categoria seguinte, A Família que Me Dei, que aborda a infância e vivência familiar do escritor. Nela, Drummond rememora suas vivências e dores, partindo da infância e seguindo para outros períodos da vida. Parte, em diversos momentos, da perspectiva de perdas diversas. Nos textos relacionados à sua puerícia, destacam-se Retrato de Família, A Mesa, Viagem na Família e Infância. O poema Os bens e o Sangue também integra essa categoria; nele, Drummond funde sua própria vivência com a história de Minas Gerais.
A morte também é uma temática muito presente nessa categoria, como nos poemas Perguntas e Convívio. Inclui-se também o poema Ser, dedicado ao seu filho, Carlos Flávio, que faleceu meia hora após seu nascimento.
Seguindo na exploração de declarações de afeto, na categoria seguinte da Antologia, Cantar de Amigos, Drummond versa sobre suas amizades com diversos artistas. Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Américo Facó e Federico García Lorca são alguns dos nomes sobre quem o autor se debruça; retrata sua admiração e estima por cada um. Vide trecho de Mário de Andrade desce aos infernos, originalmente integrante do livro A Rosa do Povo, de 1945:
O meu amigo era tãode tal modo extraordinário,cabia numa só carta,esperava-me na esquina,e já um poste depoisia descendo o Amazonas,tinha coletes de música,entre cantares de amigo.
Luisa Issa
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